24/03/2024

[Artsy Log] "Made in the same mould; but she was woman, he was dog."

[ — Virginia Woolf, Flush]

Primeira série temática de minhas pinturas, um projeto de 2024 para tentar pintar mais e com intenção. [*A inspiração para pintar em temas surgiu sobretudo a partir das postagens no instagram do artista brasileiro Odyr Bernardi e da obra da artista americana Mayra Kalman.]

 SÉRIE #01 [2024]

 Mulheres deitadas na companhia de cachorros/gatos (*Guache)

[*referência: cena do filme Folhas de Outono (2023), de Aki Kaurismäki]


[*referência: cena do filme Baronesa (2017), de Juliana Antunes]


[*referência: cena do filme Pequeno Bosque (2018), de Yim Soon-rye]


[*referência: Ig Anonymous Photo Project]


[*referência: cena do filme O que está por vir (2016), de Mia Hansen-Løve]

🐱🐶

O primeiro tema desta série surgiu por acaso, a partir da bela imagem que encerra o filme Anatomia de uma queda (2023), de Justine Triet: livre da acusação de assassinato do marido, a protagonista retorna para casa, deita-se no sofá e o cachorro espontaneamente junta-se a ela. Semanas depois, assisti ao filme Folhas de Outono (2023), de Aki Kaurismäki, e me surpreendi com uma imagem especular àquela do filme de Triet, ocasião em que o tema restou definido — e incluí gatos. Fiz oito pinturas, porém gostei apenas das cinco aqui publicadas. [😓]

A temática também me instigou a ler os livros Flush, de Virginia Woolf, e The Friend/O Amigo, de Sigrid Nunez, e gostaria de anotar breves devaneios.

🐱 A narrativa de Nunez faz referência às pessoas contrárias ao ato de dar nome a animais, inclusive contrárias à ideia de chamar um animal de "pet" ou de se dizer "dono" de um bicho, opinião sustentada pelo sentido de dominação e posse implícito na nomeação. Isso me chamou atenção porque, na conversa em vídeo sobre a relação entre Doris Lessing e a série coreana Porque esta é a minha primeira vida, eu havia destacado que o protagonista da série não dá nome à gatinha com que vive. Ao abordar esse ponto da trama, ressaltei que, embora não fosse um problema em si, a recusa da nomeação era um dos elementos usados pela narrativa para destacar o embotamento afetivo daquela personagem — ele não dava um nome à gata porque não queria se afeiçoar ao animal. O retorno à questão também me fez recordar que, em prévio post do blog, eu havia confessado não me sentir digna de dar nome a uma árvore. Ou seja, por que a nomeação de uma gata me parece algo natural, enquanto a nomeação de uma árvore me parece impensável? Refleti acerca da aparente controvérsia, e a resposta não tardou: a árvore não vive dentro da minha casa e não depende de mim para viver, enquanto cachorros/gatos, animais domesticados, convivem com um ser humano que, por livre e espontânea vontade, assumiu a responsabilidade por aquela vida. 

Esses devaneios foram relevantes à minha série de pinturas porque atinei que a poética na imagem de mulheres correndo com lobos deitadas ao lado de cachorros/gatos — animais domésticos — possivelmente difere-se daquela na imagem de mulheres deitadas ao lado de animais selvagens (possibilidade para tema futuro). Na releitura do ensaio Why Look at Animals/Por que olhar para os animais, observei que John Berger defende que a domesticação de animais se distanciou da inicial finalidade utilitária e, nos dias atuais, se aproxima do mero adorno, reles memorabilia do mundo externo que a classe média decide manter dentro de casa. Nesse contexto, impõe-se uma vida e realidade humanas ao animal que, então, transforma-se numa extensão do dono, torna-se um espelho que reflete o próprio dono, eliminando-se o estranhamento de um outro. Dessa maneira, confabulei que a imagem de uma mulher deitada ao lado de cachorro/gato — sobretudo quando presente o olhar mútuo — implica um olhar para dentro de si própria, e não de um outro. 

Em Flush, Virginia Woolf explora essa tese abordada por Berger, na medida em que o narrador do livro reiteradamente destaca que Flush, um cão que nasceu livre no interior da Inglaterra, se viu obrigado a viver a realidade da poeta Elizabeth Barrett Browning, a realidade dos londrinos ricos no século XIX. Flush vira uma extensão da poeta. [Curiosamente, ele retoma sua liberdade e as rédeas da própria vida quando Browning se muda com a família para a Itália. Indireta, nem tão indireta, de Woolf?]

🐶 Quero destacar uma passagem linda na qual o narrador de Woolf discute a relação do animal com o mundo. Assim nos diz:

"Not a single one of his myriad sensations ever submitted itself to the deformity of words."

Quer dizer, ao contrário de humanos, as sensações de Flush não se deformam por meio das palavras. No entanto, a narrativa ressalva que seria equivocado supor que o cachorro é um ser imaculado que vive no Paraíso anterior à queda, visto que Flush é um animal doméstico, é um animal exposto às vozes humanas.

"His flesh was veined with human passions; he knew all grades of jealousy, anger and despair"

No corpo de Flush percorrem paixões humanas, o que o torna exímio leitor de seres humanos e seus espaços. Posto isso, acho impossível relevar a linguagem do cachorro no filme de Triet. Embora Anatomia de uma queda (na minha opinião) não corresponda a um jogo para descobrir se Sandra matou ou não o marido, tal investigação é possível e, dentre as pistas ofertadas pelo roteiro, o fato de que o cachorro chora/reclama quando o marido toca a música no início do filme e se junta à mulher ao final é a chave principal do engodo.

18/03/2024

Alejandra Pizarnik; Diários (#06) - Outubro e Novembro/1955

* Proposta do post: (1) anotar trechos, (2) devanear a partir das entradas de Pizarnik, (3) dar pitacos inúteis sobre o que ela escreve e/ou (4) estabelecer conexões. Uma conversa.

✒ Texto sinalizado com [📔], em verde + itálico entradas originais de Alejandra Pizarnik.

Cuaderno de Octubre y Noviembre de 1955 

📔 "Heme acá, sentada y sin gloria, (...)"

Dia desses, enquanto pintava, assisti ao papo entre Caetano Veloso e Paul Preciado durante a Flip 2020 e fui fisgada pela informação de que o título do livro de Caetano - Narciso em férias - é um roubo artístico do título em português para um dos capítulos de This Side of Paradise (Este lado do Paraíso), livro de F. Scott Fitzgerald (*creio que Caetano não citou o responsável pela tradução, lamento). Daí, influenciada pelo exercício de Caetano, estou certa de que essa preciosa expressão no diário de Pizarnik — Sentada e sem Glória (!) — seria o título perfeito para um hipotético livro de minhas memórias. Aliás, boa: catalogarei as frases com as quais eu esbarre durante minhas leituras e que se apresentem como boas candidatas a títulos de livros que jamais escreverei. Ah!, vale recordar aquela que Pizarnik me ajudou a bolar, no primeiro caderno de seus diários: uma interrogação horizontal. E outra pescada durante a releitura de minhas postagens sobre os diários: Tortura espiritual elegante.

Recapitulando, eis minha lista atual:
- Sentada e sem Glória
- Tortura espiritual elegante
- Uma Interrogação Horizontal [Pizarnik escreveu: (...) nacer en forma de signo de interrogación (...)]


📔  "¡Quiero escribir bien! ¡Dios mío! Soy un deseo suspendido en el vacío. No sé ni comprendo nada, Sólo sé que deseo, deseo, deseo. ¡Dios! ¡Quiero tener fe! ¡Quiero creer en ti! ¡Oh, cómo quiero creer en Dios! ¡Quiero escribir! ¡Quiero escribir!"

Opa, já é hora de atualizar minha lista de títulos potenciais:
Um desejo suspenso no vazio
Sentada e sem Glória
- Tortura espiritual elegante
Uma Interrogação Horizontal  [Pizarnik escreveu: (...) nacer en forma de signo de interrogación (...)]


📔 "Acabo de recibir una carta de A. R. en la que me dice, honestamente, que no entiende mis versos. Me ruega que se los explique. Sonrío tristemente. Y a mí, ¿quién me los puede explicar? No sé de dónde han surgido, ni cómo."

Aproveitarei a exasperação de Pizarnik para devanear acerca da minha própria inquietação correlata, quero dizer, minha inquietação acerca da obsessão coletiva pela explicação de obras de arte, percebida sobretudo na internet. Faz tempo que esse movimento me enfastia  —  *PAUSA* Seguindo novamente o exemplo de Caetano, roubarei artisticamente a Greta Gerwig para nomear essa tendência: é o movimento "We'll show you!"/"A gente te mostra; a gente te explica!"


*FIM DA PAUSA* — como dizia, faz tempo que o movimento A Gente te explica me enfastia e, para ilustrar, desabafo recentes perturbações:

(1) Clicando num vídeo sugerido pelo You Tube, me deparei com um moço bastante satisfeito consigo mesmo ao afirmar que, após ler a bibliografia de um tal autor e ler um punhado de críticas, teria chegado ao cerne da obra do artista. Ah, e é claro que o rapaz estava ali para nos conduzir ao tal cerne. Eu me aborreci logo nessa introdução e fechei o vídeo, porém persisti atormentada pela ideia de "chegar ao cerne de uma obra". Por mais que eu argumentasse que talvez eu estivesse bancando o deplorável papel de chata anti-intelectual, eu simplesmente não conseguia descolar a frase "chegar ao cerne" da imagem de mineradoras. Eu senti (e sinto) que chegar ao cerne de uma obra de arte significa destruí-la; significa cavar, cavar e cavar até que nada reste. A propósito, essa entrada no diário de Pizarnik me fez finalmente ler o ensaio Contra a Interpretação, de Susan Sontag, e não negarei a satisfação de ver a autora corroborar, em certa medida, essa minha impressão (tradução de Denise Bottmann):
"O estilo moderno de interpretação escava e, ao escavar, destrói; ele cava "por baixo" do texto para encontrar um subtexto que é verdadeiro."

Ressalto que a interpretação à qual Sontag se refere corresponde ao ato mental consciente que utiliza determinado código, determinadas "regras" de interpretação. 

(2) Noutra ocasião, o You Tube me sugeriu um vídeo cujo título prometia destrinchar certa obra de arte. Aqui, fui esperta e sequer dei play, no entanto a leitura da chamada permitiu que uma nova imagem apoquentasse meu juízo: a mineradora que cava e revira numa sana destruidora deu lugar ao esquartejador de corpos. Destrinchar uma obra, até prova contrária, me parece picá-la, desfazê-la em mil pedacinhos. [Opa!, não posso perder a referência ao querido Bob Esponja: esse intérprete é o Zé do Picadinho!]

(3) Ainda no You Tube, encontrei esta proposta em Inglês: "Não sei quem breaks down a obra X". Putz, esse phrasal verb permitiu à galera ao menos ser mais explícita: bora tacar logo uma marreta na arte e quebrar essa merda.

[*Sim, percebo agora que bastaria eu sair do You Tube, né? Que tonta.]

(4) Tenho me deparado bastante com este tipo de comentário na internet: "gostei do filme/livro/série, deu para tirar muitas reflexões." Quando leio esse tipo de coisa, embarco na indagação: é isso que faz com que meu encontro com uma obra de arte me proporcione prazer estético? E se, em vez de me impelir à reflexão, a arte silencie meu pensamento e liberte uma avalanche inexplicável de emoções? [↦ err, perdão pela pieguice à la Roberto Carlos, mas, poxa, às vezes não é assim?]

***

Estou lendo uma coletânea de breves ensaios escritos por Robert Adams e, num dos textos, o fotógrafo compartilha que o poeta Robert Frost, ao ser compelido a explicar seus poemas, teria retrucado: Você quer que eu o diga de um jeito pior? Concordo demais. Hoje, acredito que explicar, chegar ao cerne, destrinchar, desvendar uma obra de arte significa destruí-la e substituí-la por algo pior. Ainda em Contra a interpretação, Sontag sustenta que o fervor de interpretação não decorre de uma devoção a uma obra de arte problemática, mas de um desprezo pelas aparências, tratando-se de ato reacionário e sufocante que pretende domar a obra que enerva. Tomadas pela insatisfação e exasperação diante da arte, as pessoas se lançam a interpretá-la e, assim, a esvaziam e empobrecem. 

Nesse referido ensaio escrito em 1964, Sontag afirma haver arte resistente à interpretação, arte para a qual os intérpretes não ligam e deixam quieto. Não sei qual seria minha opinião em 64, estivesse eu viva para ver, no entanto isso não é válido no momento atual. É curioso, pois Sontag expõe que a horda interpretativa persegue o suposto conteúdo das obras, um alegado sentido verdadeiro. Essa famigerada palavra — Conteúdo — bem serve para meu argumento, pois, para ganhar dinheiro na internet, as pessoas precisam produzir conteúdo, ou seja, precisam interpretar geral. Vivemos uma verdadeira Economia da Interpretação, na qual nenhuma arte está incólume aos intérpretes. Inclusive, quem produz arte quer mais é ser interpretado, pois a interpretação parece ser a principal forma de marketing digital. No post que escrevi sobre a última temporada de Succession, por exemplo, eu já tinha lançado essa premissa (transcrevo): "eu sei, ninguém aguenta mais análises acertadas a respeito de Succession — por sinal, especulo que o atual caminho para uma série de sucesso seja precisamente este: abastecer a internet de muito pano para manga (argh:) conteúdo". Em outras palavras, um aparente caminho para garantir o sucesso de uma obra é justamente criar e escancarar múltiplas brechas para interpretação. [*Aquele lá que iria "break down" a obra, por exemplo, era ninguém menos que o próprio diretor do filme.]

À primeira vista, pode parecer que esse meu papo furado conceals something dirtier and meaner (rs), digo, pode parecer que assumo o posto de anti-intelectual, porém estou certa de que não se trata disso, e algumas leituras recentes me ajudam a construir minha defesa. Sontag, é lógico, ilumina meu imbróglio naquele ensaio, pois o que ela defende é 1. o abandono da interpretação sufocante em prol de nossa energia e capacidade sensual; 2. o regresso à linguagem a respeito da forma* e 3. uma volta à vivência imediata da arte no presente, apreciando-a/usufruindo-a/contemplando-a em sua superfície sensual, sem nela se perder. [*: essa abordagem praticamente inexiste na internet.]

No livro Universos da Arte, Fayga Ostrower estabelece uma distinção entre a explicação e a apreciação de uma obra de arte. A apreciação, nos termos de Ostrower, não é uma análise (a qual trata objetivamente da forma), mas uma síntese, a qual corresponde a um processo de integração que engloba todos os atos de compreensão e de percepção. Na apreciação de uma obra, em contrapartida à mera explicação, embarca-se num ato de compreensão onde tudo que temos em termos afetivos, intelectuais, conscientes e inconscientes, associações, emoções, pensamentos, tudo isso se integra num conjunto de noções que se qualificam mutuamente. Assim, quando se aprecia uma obra de arte, buscando compreendê-la nesses termos amplos, a destruição própria da interpretação reacionária dá lugar à criação de um novo conhecimento, nosso e também sobre nós. Pronto, é isso que prefiro.

Para encerrar minha lamúria, escolho parafrasear/adaptar um trecho do livro Demian, de Herman Hesse, que, embora refira-se à contemplação das formas da natureza, parece-me resumir bem o que sinto sobre a situação compartilhada por Pizarnik e a encrenca Explicar  X Contemplar/Apreciar Arte. Por sinal, este trecho de Demian mostra-se bastante imbuído da essência contida naquela proposição de Ostrower, acho. E toda esta minha lorota serve para registrar que, entre o movimento "A gente te explica" e o "A gente contempla", não me resta dúvidas sobre qual escolher, na medida em que um destrói, enquanto o outro cria.

[**Abaixo, as palavras em vermelho são aquelas que substituí, portanto ausentes no texto original de Hesse. Tradução: Ivo Barroso.]

"(...) contemplar a arte não como observadora que investiga, mas abandonando-me ao seu encanto peculiar, à sua profunda e complexa linguagem. (...) A contemplação das formas na arte despertam em nós um sentimento de consciência do nosso interior com a vontade que as fez nascer e acabam por parecer-nos criações próprias (...) Nenhuma outra prática nos revela tão singelamente quanto esta até que ponto também somos criadores e como nossa alma participa sempre de uma contínua criação do mundo."

P.S. 1: por certo já temos muuuuita coisa criada no mundo, estou ciente; mas a criação da contemplação costuma permanecer no íntimo de cada um, quero dizer, não entulha o mundo externo e visível, uma vez que quase sempre é imaterial.

P.S. 2: essa minha conversinha de movimento "A gente contempla" é um bocado piegas, estou ligada, porém é aquela coisa: entre a pieguice e a canalhice...

P.S. 3: peguei pesado com o canalhice, né? Perdão, mas me vi refém da rima.

P.S. 4.: eita, mas eu disse que a interpretação fajuta destrói a arte substituindo-a por algo pior, ou seja, essa interpretação tacanha também cria, ué. Oxe, me perdi. Ah é, no entanto ela destrói a arte, enquanto a contemplação — que também pode criar algo pior — não destrói nada. Beleza, então pode reconhecer a firma. [Pode reconhecer hoje, pois o amanhã a Deus pertence — e chega de P.S.]