26/04/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #09

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Postagens:
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DL#16

Tomo 3 - Primeira Parte

↪ Chegamos a 1812, e é hora de aventura guerra!

↪ Tolstói inicia o tomo com uma espécie de ensaio sobre a Lei da Coincidência das Causas, a qual trata dos mecanismos que regem as causas capazes de produzir extraordinários  acontecimentos históricos  contrários à razão humana e a toda a natureza humana. Resumida em um aforismo, creio que teríamos: nada é a causa; tudo é causa.

Segundo a lei, as guerras, exemplos máximos de fenômenos históricos irracionais, ocorrem em consequência de bilhares de pequeninas causas que concatenam-se por si mesmas e coincidem para provocá-las. Cada causa é simultaneamente 1. pertinente - pois nada pode ocorrer na ausência de quaisquer delas - e 2. ilusória, devido à sua relativa insignificância e incapacidade de produzir isoladamente o acontecimento.

Nesse contexto, todas as pessoas servem de instrumento inconsciente para que a história fatalista alcance seus objetivos; ou seja, cada mínima ação humana executada na esfera pessoal coincide no tempo com milhares de ações de outras pessoas e recebe um significado histórico. Ainda que se reconheçam os distintos pesos de cada ação, relacionados à posição do executante na escala social, não é possível negar a participação de nenhuma delas. Suponho, portanto, que um desdobramento possível da lei é não permitir que ninguém coloque sua cabecinha no travesseiro à noite sem o peso da consciência de saber-se também culpado dos fenômenos históricos irracionais. 

Aplicada à guerra entre Rússia e França, a lei afirmaria que a ambição de Napoleão, a tenacidade de Alexandre e um cabo qualquer que tenha decidido alistar-se ao exército são apenas três dos bilhões de fatos e agentes que contribuíram para a ocorrência do conflito que tinha de ser cumprido.

Com tais ideias, Tolstói acaba lançando interessantes questionamentos a respeito da maneira com que a História (fatalista, em sua concepção) é contada e construída; o que é reforçado por esta intrigante experiência de Rostóv citada posteriormente no tomo, a qual induz à conclusão de que relatos de experiências de guerra seriam sempre peças ficcionais:
"Depois de Austerlitz e da campanha de 1807, Róstov sabia (...) que, ao contar fatos militares, sempre mentiam, como ele mesmo mentia também, quando contava; em segundo lugar, ele já tinha experiência bastante para saber que, na guerra, tudo se passa de forma completamente distinta daquilo que podemos imaginar e contar."
Também fico tentada a fazer um contraponto provocativo e cínico (é irresistível) dessas ideias com o que Mária postula neste mesmo tomo sobre o papel de Deus:
"Não pense que são as pessoas que produzem a dor. As pessoas são instrumentos Dele. (...) A dor é enviada por Ele, não pelas pessoas. As pessoas são o instrumento Dele, elas não têm culpa. Se lhe parece que alguém é culpado em relação a você, esqueça e perdoe."
Bom, se 1o. "todas as pessoas servem de instrumento inconsciente para que a história fatalista alcance seus objetivos"  e 2o. "As pessoas são o instrumento Dele, (...)";  então, no fim das contas... Guerras ocorrem porque é a vontade Dele? Vai saber.

Confiando na minha memória, parece-me que esses pensamentos também estariam em harmonia com os conceitos subentendidos no texto de Victor Hugo, em Os Miseráveis, relacionados à noção da providência divina, especialmente na passagem em que ele discute as razões que fizeram com que Bonaparte perdesse a batalha de Waterloo (quer dizer: ~ foi preciso que tantas causas coincidissem no tempo e espaço para aquela derrota, que é difícil concluir de forma contrária a supostos planos divinos).

 Ainda em relação às guerras: a narrativa também discorre sobre o papel que estratagemas teóricos assumiriam nessas situações. O texto afirma (através de Andrei) haver teóricos tão enamorados por suas próprias teorias, que esquecem de que elas existem para serem aplicadas na prática. Ao mesmo tempo, porém, questiona: existe alguma teoria ou ciência que possa ser aplicada em um assunto cujas condições e circunstâncias são desconhecidas e indeterminadas?
 
 Mais uma vez, Tolstói traça um vívido e rico panorama da lambança com que o exército russo preparava-se para a guerra. Primeiro, o Tsar é informado no meio de um baile que o seu então amiguinho Napoleão estava invadindo a Rússia pela fronteira com a Polônia (~ como assim, sem nem avisar?! - aliás, lembrou-me do presidente Bush no 11 de setembro). Depois, o narrador descreve toda a indefinição táctica e de comando militar russo; destacando-se 1. o soberano que, embora não comandasse efetivamente, fazia-se presente com pitacos influenciados por uma corte de bajuladores da nobreza, e 2. o agrupamento de militares que, tal qual Hogwarts, dividia-se em nove (!) partidos de orientações distintas quanto às decisões de guerra. Sem qualquer surpresa, o partido hegemônico (99%!) era formado por aqueles que não queriam nem a paz, nem a guerra, nem ofensiva ou defensiva, mas apenas isto: as maiores vantagens e recompensas para si mesmos.

 Nessa segunda fase da guerra, será interessante observar como Bolkónski e Rostóv se comportarão sete anos depois de suas primeiras participações militares. De que maneira as experiências acumuladas refletirão nas atitudes de ambos? Que novas lições eles acumularão? Já foi possível observar algumas diferenças: agora, Andrei decide ir para a linha de frente e distanciar-se da hipocrisia teórica, buscando as ocorrências mais práticas e imediatas (reflete também um desapego da vida?); enquanto Rostóv, capitão no comando de um esquadrão, já demonstra mais serenidade e maturidade. Ademais, fichas continuam caindo, pois Rostóv, em sintonia com seu bordão "Não entendo nada", finalmente percebeu que o inimigo sente o mesmo que ele, mas, também como ele, é capaz de fingir.

P.S.: agora, sim, entendi o propósito da longa descrição prévia da caçada. Não era filler; era uma espécie de alegoria preparatória para a guerra. Certinho.

Ainda nessa segunda fase do conflito, uma personagem ganha finalmente protagonismo: Pétia, com quinze anos, dá sinais de que seguirá os mesmos precedentes passos infantis do irmão durante a guerra de sete anos atrás. E outro novo fator surge presente entre os russos: o terror amedrontador diante do gênio Napoleão Bonaparte. Como os russos tiveram a chance de provar o veneno de Bonaparte, sabiam finalmente contra quem estavam lutando. É, acho que não haverá mais nenhuma piadinha.

 Voltando ao Andrei no. 01: como a masculinidade é uma coisa frágil, não? (perdão pelo chavão, mas foquemos, por hora, nas razões que ainda parecem validá-lo.) Andrei sente a obrigação de vingar-se de Anatole; afirmando à irmã que o perdão é uma virtude exclusivamente feminina e que apenas como mulher ele seria capaz de perdoar Anatole; pois "(...) um homem não deve e não pode esquecer e perdoar - (...)". Deve ser muito excruciante viver dessa maneira. Será que esse rolo vai acabar mal? Teremos mais um duelo? Vamos acompanhar, pois, por enquanto, Anatole conseguiu escapar.

↪ Voltando ao Andrei no. 02: quando ele volta a Montes Calvos antes de partir para a guerra, a narrativa acaba firmando um peculiar paralelo simétrico entre a relação pai-filho estabelecida pelas três gerações. Andrei repete com o filho a mesma dinâmica, por vezes fria e distante, que mantinha com seu pai.


↪ Nacionalidades x Autoconfiança (segundo Andrei):

Franceses: são autoconfiantes porque, pelo intelecto e corpo, consideram-se irresistíveis para homens e mulheres.

Ingleses: são autoconfiantes por serem cidadãos do país mais bem provido de comodidades em todo o mundo; sabendo que tudo o que fazem é bom.

Italianos: são autoconfiantes porque são agitados.

Russos: são autoconfiantes justamente porque não sabem nada nem querem saber, porque não acreditam que seja possível saber alguma coisa completamente. (♥)

Alemães: só conseguem ser confiantes nos fundamentos das ideias abstratas -  a ciência, ou seja, o suposto conhecimento de uma verdade absoluta que eles mesmos inventaram.


↪ E o ajudante de ordens do soberano russo (!), que me aparece lendo um romance... francês?! Eu saquei essa, Tolstói.


↪ Nojo do tratamento que os oficiais russos reservaram à esposa do médico. Foi um dos diálogos mais torpes que já li. ( - Rostóv, fique sabendo que você, que nem era exatamente um favorito, perdeu muitos pontos na cotação de personagens.)
- Pois é, não pus açúcar, eu só queria que você mexesse com sua mãozinha. (...) A senhora use o dedinho, Mária Henríkhovna - disse Rostóv.- Vai ficar ainda mais gostoso. (...) É só colocar o dedinho que eu bebo tudo."

↪ Essa parte também contou com uma Natacha toda trabalhada na culpa e, ao que parece, passando por uma crise existencial semelhante à de Pierre; tentando encontrar algum alívio em Deus. Talvez a narrativa também esteja construindo uma jornada para que Natacha atravesse? Vamos acompanhar.

E por falar em Pierre: começo a suspeitar de que o peso corporal dele seja um reflexo metafórico para todas as aflições de sua vida (quanto mais aflito, mais gordo), pois não é possível que seja de outro modo. Agora, mais gordo do que nunca, ele encontra-se perdidamente apaixonado por Natacha (!) - preguiça desse imbróglio*- e já consegue se enxergar até mesmo nas profecias do Apocalipse. Exato, sua interpretação dos textos sagrados o faz crer que ele terá uma participação crucial na luta contra o Anticristo, digo, Bonaparte. Bom, vamos acompanhar, ué.

(* = Não adianta: apesar de tudo, continuo firme no "time Andrei" e já tomei as mágoas dele.)

↪ Para concluir, deixo a reflexão que ainda me aflige e para qual sigo sem resposta: como explicar que pessoas sejam capazes de afogarem-se voluntariamente com o propósito único de impressionar um estadista que não poderia se importar menos? Ou ainda: como explicar que pessoas estejam dispostas a genuinamente chamarem um imperador de "anjo e paizinho" e estapearem-se para apanhar migalhas de biscoito lançadas por ele? Fanatismo político, especialmente no grau descrito durante o lamentável episódio dos poloneses se afogando no rio, é algo que me atordoa as ideias. 

10/04/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #08

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Tomo 2 - Quinta Parte

↪ A Natacha testou mesmo a paciência da pobre leitora nesta parte. Como eu disse previamente, Tolstói já tinha fornecido todas as pistas de que o noivado dela com Andrei daria merda, mas falhei, admito, no cálculo da quantidade. Por exemplo, a maneira com que ela havia respondido à investida do próprio Andrei não foi muito diferente daquela concedida ao Anatole. Recapitulando as passagens com Andrei: "Será possível que esse homem, um estranho para mim, virou tudo para mim? (...) respondeu: Sim, tudo (...)", "O senhor sabe que, desde o dia em que veio a Otrádnoie pela primeira vez, eu me apaixonei pelo senhor, disse, segura de que dizia a verdade." (= era mentira, claro) Ok, ela é muito jovem, inexperiente, impulsiva e passional, tremenda presa fácil para as cobras karaguianas Anatole e Hélène (Relações Perigosas feelings), mas, puxa vida, foi praticamente impossível manter em mente tais ponderações e dar um desconto à moça. [- Caiu muito na cotação, Natacha.]


↪ Aliás, atualizemos a Bolsa de Valores de Personagens:
Em baixa:                                                                           Em alta: 
 Anatole                                                                                                                   Pierre (♥)
( Casado e reincidente naquele tipo de canhalhice.)                                                                                    ↑ Sônia                        
 Hélène
 Dólokhov (Aaargh!! Foi o FDP quem escreveu a carta; 
e a tonta lá derretendo-se.)
Conde Iliá Rostóv (O narrador não o poupou novamente, 
revelando toda a inépcia dele em proteger a filha do antro de cobras.)
Príncipe Nikolai Bolkónski (Que pessoa difícil.)
Princesa Mária (Nunca imaginei que a veria aqui... Tão carola, 
e ainda assim o preconceito de classe enrustido não pôde ser sufocado por completo.)                                               
↓ Bóris (Esse conseguiu uma esposa rica: Julie! De novo: parabéns à mãe dele. )
 Natacha (- Desculpe, mas, mesmo com todas as ressalvas, você entra aqui sim. 
Amiga, espero que, pelo menos, você tenha aprendido alguma coisa.)
                                    

↪ Natacha, de certo modo e com ressalvas, pode ser considerada vítima daquela história; e é interessante o reforço que o narrador faz dessa questão nos trechos da ópera e do sarau na casa de Hélène. Inicialmente, em ambos os casos, é descrito que ela consegue perceber a afetação e artificialidade ("mundo estranho") no comportamento de todos daquela sociedade, mas, após pouco tempo inserida naquele meio, sua juventude passional e inexperiente não consegue resistir à sedução ("Natacha já não achava aquilo estranho"). Era uma sociedade capaz de estraçalhar facilmente aqueles que ousassem penetrá-la sem a devida competência.


↪ E o querido Pierre? Além da conduta exemplar demonstrada durante o embróglio "Natacha x Anatole x Andrei" (até uma sova no paspalho Anatole, ele dá), vale ressalvar a continuidade da crise melancólica e existencial dele. Na verdade, acho até bastante razoável que ela o esteja remoendo até aqui, pois acredito que, uma vez tomado por uma dessas crises, não há como sair; e sim, com sorte, aprende-se a sofrer menos em sua companhia. Tendo isso em mente, concordo bastante com o que ele reflete a respeito do Anatole: "(...) aí está um verdadeiro sábio! (...) Não enxerga nada além do momento real do prazer, nada o perturba...e por isso está sempre alegre, satisfeito e tranquilo. Eu daria tudo para ser como ele!" Outra excelente passagem é aquela em que Pierre contempla o que ele havia idealizado para sua vida, em contrapartida àquilo em que ela efetivamente se transformara. Sofrido e humano demais. E quando o narrador diz que ele estava procurando alívio, entre outras coisas, na leitura desenfreada de livros? Alerta de carapuça servindo em 3, 2, 1...

Ainda nesses devaneios do Pierre, Tólstoi também reitera uma impressão que comentei no DL#06; sobre a depressão que parecia assombrar aquelas personagens que tomavam consciência da pequenez da sociedade russa:
(...) e aquela mentira geral, reconhecida por todos, sempre o deixava espantado, como se fosse algo novo, por mais que já estivesse habituado."

↪ - Tólstoi, não venha me dizer que o Andrei ficará igualzinho ao pai; não vou dar conta.
"(...) Andrei. Sorriu de modo frio, maldoso, desagradável, como o pai."
"O príncipe Andrei deu uma risada desagradável, de novo fazendo lembrar o pai."

↪ Curiosidades da Rússia no século XIX:
1. Com apenas 27 anos, uma mulher deixava de ser uma "senhorita casadoura", para virar "uma conhecida sem sexo".

2. Esporte radical da moda: corrida de carruagens, com direito a capotagens e atropelamento de pedestres. Hardcore.


↪ E apertando os cintos, pois winter is coming a guerra está voltando! (já estamos em 1811.)
                                                        
Fim do volume 01! Yay!
ᕕ(ᐛ)ᕗ

07/04/2016

In Other Words (In Altre Parole) - Jhumpa Lahiri

(Sobre o livro: info, sinopse, etc.; tradução p/ inglês: Ann Goldstein)


- Então a Jhumpa Lahiri mudou-se de mala e cuia para a Itália, a fim de aprender o idioma italiano? Conte-me tudo! 

A premissa corresponde a uma experiência tão fascinante e imensamente invejada, que não consegui evitar que esse livro furasse a fila de futuras leituras. Por si só, a empreitada na qual Lahiri se mete prenuncia um rico relato, mas o caso reserva algumas particularidades que tornam tudo ainda mais interessante:

1. A decisão de Lahiri não foi (apenas) um mero ímpeto repentino de frivolidade. Ela esclarece que já estudava o italiano há 20 anos, impelida por uma paixão inexplicável (e não exatamente mútua, certo?) que surgira após visitar a Itália pela primeira vez, contudo frustrava-se com o pouco progresso em direção à plena fluência; questão que ela atribuía ao fato de estar continuamente imersa no inglês. A autora vale-se de várias metáforas (figura de linguagem recorrentemente explorada no livro) para tentar explicar essa frustração, como a de sentir-se nadando em um lago (o italiano) sem jamais abandonar as margens (o inglês), a fim de aventurar-se em sua travessia.

2. A decisão de mudar-se para a Itália (com esposo e filhos, inclusive) foi mais radical do que parece, pois Lahiri impôs que a nova rotina dela naquele país implicaria falar, escrever e ler exclusivamente em italiano, rigorosamente. Por dois anos, portanto, ela distanciou-se completamente do inglês; de maneira que o próprio relato de sua experiência e reflexões -- com direito a dois contos inclusos nesse livro -- foi escrito em italiano. Nem mesmo a tradução da obra para o inglês ela quis fazer, deixando-a por conta da tradutora Ann Goldstein. 

3. Como filha de indianos criada nos Estados Unidos, Lahiri confessa que nunca sentiu pertencer completamente a qualquer idioma; sendo bastante impactante a maneira com que ela expõe esse sentimento de deslocamento e falta de pertencimento relacionados ao dialeto. Nos Estados Unidos, por conta de sua aparência física, não era-lhe incomum ter de encarar pessoas surpresas com o fato de que ela, como esperado de uma americana ("-What?!"), dominava fluentemente o inglês; enquanto na Índia, os parentes presumiam que ela não sabia se expressar de modo algum em Bengali, idioma com o qual ela comunica-se com os pais.

Nesse contexto, portanto, o relato de uma pessoa que deliberadamente, sem um motivo lógico evidente, adota uma nova língua, na tentativa de criar sua genuína identidade, torna-se muito bonito e significativo, sobretudo quando ela compartilha que, a despeito de todo amor e dedicação ao idioma, também na Itália ela acabaria por enfrentar as semelhantes barreiras presentes nos EUA e Índia. "- Essa moça com fisionomia indiana, famosa escritora americana, fala italiano? Irreal." 

"No one, anywhere, assumes that I speak the languages that are a part of me."
"All my life I've tried to get away from the void of my origin. (...) Change seemed the only solution. Writing, I discovered a way of hiding in my characters, of escaping myself. Of undergoing one mutation after another."

4. E o mais intrigante e fascinante: como e por que uma escritora decide abrir mão da crucial ferramenta de seu ofício, aquela que ela domina plenamente; trocando-a por outra nova, intimidante e desafiadora? Do meu ponto de vista de mera leitora, me parece um ato assombroso de tremenda coragem e imprudência. Ao longo do livro, Lahiri tenta atribuir um sentido a essa aventura aparentemente insana, refletindo sobre quais seriam suas motivações; citando, por exemplo, que a sua imperfeição e os obstáculos de difícil transposição inerentes ao novo idioma atuavam como um paradoxal estímulo inspirador. 

Claro, há casos notórios de escritores que escreveram em suas segundas línguas, mas a própria Lahiri ressalta que a situação dela possui diferenças significativas. Por exemplo: 

- transcorreram-se décadas, após a mudança para França, até que Beckett começasse a escrever em francês;
- Nabokov aprendeu inglês durante a infância;
- Conrad pôde absorver a língua inglesa durante um tempo significativo dos seus trabalhos em alto-mar, antes de tornar-se um escritor anglófono.

 E Jhumpa Lahiri? Bom, bastou um mísero ano morando na Itália para que ela já "ousasse" escrever em italiano.
***

Em certo trecho, a autora cita este interessante comentário de um amigo (tradução livre)"uma nova língua é quase uma nova vida, pois a gramática e a sintaxe nos remanejam a uma lógica e sensibilidade diversas." Achei essa ressalva super certeira, pois eu, por exemplo, sempre me sinto como um outro "eu" ao me expressar em inglês e imaginei que, para um escritor, isso pudesse ser ainda mais problemático. Lahiri, porém, desdobra essa falsa impressão de forma extraordinária ao afirmar que, ao incorporar o italiano à sua identidade, ela submetia-se a uma metamorfose que representa, sim, um processo violento, mas regenerador. Representa a morte, mas também a vida


Lahiri falando, em italiano, sobre seu livro.

05/04/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #07

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Tomo 2 - Quarta Parte


↪ Ok, parou. Eu já tinha lançado a pergunta no DL#04 em relação à Lise, mas agora o negócio ficou mais sério e cabe ratificar a indagação: qual é a do Tolstói com mulheres de bigode??!! Como tenho medo de tomar spoilers, deixo a dúvida arquivada para pesquisar posteriormente. Intrigante mesmo. 

↪ No geral, pouca coisa aconteceu nesta parte (- Tolstói, isto foi um filler?!):

- Mais alfinetadas de Tosltói para cima dos militares que usufruem, com bastante satisfação, de seus "ócios forçados e irrepreensíveis", "protegidos das embrulhadas do cotidiano (...), daquele mundo absurdo e confuso (...)". 

- E os Rostóv estão cada vez mais atolados na pindaíba. (◕︵◕) Não sei se eu já tinha mencionado, mas é ~curioso~ que a família mais afável e generosa desta narrativa seja exatamente aquela que mais esteja se dando mal (pelo menos até aqui). Será que o "crime" compensa nessa história? Quem não segue à risca as regras subentendidas da sociedade russa está fadado à desgraça? Ou trata-se da decadência que, em breve, assolará toda a nobreza dessa história? Vamos acompanhar.

- Caçadas, blá, blá, blá, mais caçadas, blá, blá, blá... Aliás, Tolstói não dá trégua para o pobre Iliá Rostóv ao continuar ridicularizando-o, digamos assim, até com a alegoria de sua abobalhada performance na caçada.  E, Natacha, ~tu tá metida com caçada~?

- Curiosidade (N.T.): "Entre os senhores de terra, era costume ter, entre os servos, artistas, músicos e até um bufão." Ei, eu também quero um bufão.

- Eu já havia mencionado que a filosofia seguida por Nikolai é "o problema (inferno) são os outros", e agora descobri que nem Deus escapa:
"Puxa, o que custa a você fazer isso para mim?, dizia a Deus. (...) sempre tenho azar."
- Tolstói já vinha construindo isto nas partes anteriores e mais uma vez reforçou aqui: a relação fraternal de plena intimidade e cumplicidade entre Nikolai e Natacha. É realmente muito prazeroso de ser lido e sempre me deixa de sorriso abobalhado. Gostei muito.

- Novos maus presságios a respeito do casamento entre Andrei e Natacha foram lançados. Restou sugerido nas entrelinhas, inclusive, que ele morrerá no final. Será? Em combate? É bem típico que minhas personagens favoritas sejam sacrificadas pelos autores. 

- Tolstói desenvolve novos diálogos filosóficos envolventes, questionando alguns temas relevantes: tédio, despropósito da vida, eternidade, alma, reencarnação, memórias x lembranças. Acho que eu gostaria de poder conversar com o autor sobre a vida, o universo e tudo mais.

- Bastante interessante a descrição da tradição de Natal na Rússia que, de certa forma, mistura Halloween com Carnaval: pessoas fantasiadas visitam as casas vizinhas, cantam, brincam de prever o futuro. Obviamente, nunca tinha ouvido falar disso. 

- E que coisa mais meiga, a descrição do beijo entre Nikolai e Sônia. Achei bem curiosa a aparente ideia sugerida por Tolstói de que, nas relações de amor, às vezes é preciso apenas prestar melhor atenção naquelas pessoas que estão bem ao nosso lado, modificar a perspectiva do olhar. A fantasia, nessa passagem, parece ter permitido que isso acontecesse com Nikolai. 

(Sobre descobrir-se apaixonado:)
♥ "- Natacha, é uma coisa mágica. Hein? 
- É, sim - respondeu ela."