25/05/2016

The Vegetarian (A Vegetariana) - Han Kang

Utilizarei duas boas entrevistas que vi/ouvi, concedidas pela escritora coreana Han Kang, a fim de registrar a minha impactante experiência com a leitura deste livro.




Quando questionada a respeito do que se trata a obra (04:18), Han Kang explica que a protagonista de The Vegetarian é uma mulher - Yeong-hye - que encontra no vegetarianismo uma maneira de não infligir mal a nada, uma forma de expurgar de si a violência humana que (entre outras coisas) restaria representada em toda a complexa cadeia que sustenta o hábito de comer carne animal. A escritora diz que sempre esteve interessada em explorar na sua literatura o tema da violência humana e, nesse contexto, The Vegetarian discutiria se uma suposta inocência natural, despida de violência e culpa, seria atingível ao ser humano.

Ocorre que, durante o processo de expurgação da protagonista, surgem algumas ironias desconcertantes que parecem apenas complicar a originalmente complexa pergunta da autora. À medida que Yeong-hye aproxima-se da almejada - e bastante extrema - candura, ela também torna-se progressivamente fragilizada do ponto de vista físico e mental; bem como cada vez mais suscetível a todo tipo de agressão gratuita alheia — física, moral, sexual, social, médica... Ou seja, a rejeição da violência posta em prática através de um vegetarianismo radical e (aparentemente) irracional (em um contexto ficcional, ressalva-se; no qual surge um momento em que não se trata mais apenas de simples vegetarianismo) tornava-a ironicamente vulnerável à violência cometida por terceiros e, em última instância, por ela mesma.
...

Ciente de que havia apenas três partes, a aproximação do final da obra foi deixando-me ligeiramente aflita, tendo em vista que três personagens diferentes já haviam compartilhado abertamente seus pontos de vista na narrativa, e nenhuma delas era Yeong-hye. Isso foi o bastante para que eu me concedesse o direito de bradar em clima de revolta: "como assim eu não terei acesso total ao que está se passando na cabeça da obscura Yeong-hye?" Bem, pois imaginem meu choque quando, ainda durante a leitura, dei-me conta de que, com tal exigência, eu mesma também me juntava ao bando de agressores daquela personagem, ao forçar minha presença indesejada em seus pensamentos. Eu fiquei completamente estupefata. Foi interessante descobrir, no momento 06:42 do vídeo, que minha constatação embaraçosa aproximou-se da intenção deliberada de Han Kang em proteger sua querida personagem da minha própria violência.

A escritora também menciona um apego especial pela personagem In-hye, a irmã da vegetariana. De fato, a dinâmica que se estabelece entre as duas irmãs, em especial na última parte do livro, foi uma das coisas mais tocantes que já tive oportunidade de ler. Eu chorei; e não foi pouco, não. Quando todos abandonam e desistem de Yeong-hye, é In-hye quem permanece ao lado da irmã; ainda que ela própria desconhecesse o meio capaz de salvar Yeong-hye, principalmente porque ela própria também necessitava da mesma ajuda miraculosa e desconhecida. Dentre os vários trechos dessa relação que quebraram minhas pernas, há este: (*contexto: In-hye, não encontrando outra saída possível, levava a irmã para ser admitida em um hospital psiquiátrico.)
"(...) she (In-hye) set the hospital bag down and went over to the window, which had a heavy-looking set of bars running vertically across it. Just then, she was discomfited to find herself struck by a guilty conscience, which she'd so far managed to avoid. Suddenly it was there like a lump in her chest, weighing her down. Yeong-hye walked up soundlessly and stood beside her.

"Ah, you can see the trees from here too. (...) Sister...all the trees of the world are like brothers and sisters."
 ...


Essa entrevista que Han Kang concede ao Guardian, por sua vez, deixa claro que os leitores parecem oferecer uma gama relativamente variada e distinta de interpretações para o livro.

A possibilidade citada de haver na obra uma metáfora crítica à sociedade patriarcal e rígida da Coreia, por exemplo, praticamente não me passou pela cabeça durante a leitura, considerando-se que ignoro quase tudo sobre aquele país. É incontestável, contudo, que a pujante narrativa em primeira pessoa conduzida pelo peculiar marido de Yeong-hye no começo de The Vegetarian  deixa mais do que evidente a impressão de que as mulheres coreanas seriam tratadas como meros objetos de negociação e aquisição entre pais e futuros maridos. O discurso utilizado pelo esposo de Yeong-hye em nada difere daquele de um consumidor frustrado com um produto que custou-lhe bastante caro e que, do nada, começou a dar defeito, sendo clara a responsabilidade dos fabricantes em dar um jeito naquele inadmissível prejuízo. Ah, e vale citar também a adorável certeza que ele tinha de que Yeong-hye havia se tornado vegetariana apenas para afrontá-lo. Essa primeira parte do livro é realmente bastante forte e consegue fisgar o leitor logo na primeira frase:
"Before my wife turned vegetarian, I'd always thought of her as completely unremarkable in every way." 
Fiquei feliz, todavia, que a autora tenha refutado parcialmente esse papel de crítica social para seu livro e admitido preferir que seus leitores ofereçam interpretações mais universais, considerando-se que eu mesma tenho minha contribuição a fazer nesse sentido.

A temática da violência é algo completamente incontestável em The Vegetarian, contudo eu acho que acabei enxergando-a sob uma luz ligeiramente particular. Em minha visão, a obra tomaria o vegetarianismo como ponto de partida para discutir a razão pela qual as pessoas sentem-se tão intensamente ameaçadas por quem faz escolhas de vida que diferem das regras e convenções usuais /"normais" definidas pela maioria da sociedade; ainda que nenhum crime tipificado seja cometido contra outra pessoa. Para ilustrar o que tento dizer, compartilho uma anedota recente e pessoal: eu estava correndo às ~22h na calçada de um bairro tranquilo de classe média, quando dois rapazes passaram em um carro e decidiram reduzir a velocidade do veículo, aproximar-se de mim e gritar "ô sua idiota, isso é hora de correr?". Minha pergunta é esta: o fato de encontrar-me correndo em um horário que parece desafiar a suposta convenção do "horário normal para correr" representa uma violência assim tão grande que precisa ser retribuída na mesma moeda? Mas por quê? Essa "realidade normal" é assim tão preciosa a ponto de ser defendida violentamente a qualquer custo? Pois bem, voltemos então à premissa inicial do livro: e se um indivíduo decide simplesmente que não vai mais comer carne, por que isso é capaz de induzir tanto ódio nas outras pessoas?

Enfim, durante a leitura foi principalmente a isso que me apeguei e fui ficando cada vez mais atônita ao constatar que a autora estaria levando essa discussão até as últimas consequências, mediante a oferta final desta intimidante pergunta:

"(In-hye:) I'm acting like this because I'm afraid you're going to die!"

Young-hye turned her head and (...) the question came.

"Why, is it such a bad thing to die?"

***

(* Update em 01/06/2016) E eis que esta notícia é divulgada na mídia: "Vegan Café Allegedly Attacked by Right-Wing Extremists With Sausage and Fish".)

23/05/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #11

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Postagens:

Tomo 3 - Terceira Parte



 Trollada, amigos, eu fui trollada por Tolstói. Nunca imaginei. Meses de dedicação à leitura de Guerra e Paz, e é isso que ganho em troca. Tudo bem, pois o importante é que, ~por enquanto~, Andrei está vivo; a despeito do "ferimento com cheiro de carne pútrida" e das "perdas de consciência provocadas pela dor intensa" que, convenhamos, não sugerem um prognóstico exatamente favorável.

 Talvez eu esteja esmorecendo na reta final, mas o fato é que a leitura dessa parte foi meio arrastada e enfadonha. A narrativa concentrou-se no recuo das tropas russas para o interior do país, tendo em vista que o comando militar decidiu que a melhor única estratégia possível seria abandonar e entregar Moscou aos franceses sem oferecer nenhuma resistência. Pelo tom do relato, Tolstói deixou transparecer sentimentos pessoais de bastante vergonha e amargura em relação às cenas lamentáveis que sucederam-se naquele momento histórico.
"Moscou foi incendiada por seus habitantes, é verdade; mas não pelos habitantes que ficaram nela, e sim por aqueles que a abandonaram. Moscou, ocupada pelo inimigo, não ficou intacta, como Berlim, Viena e outras cidades, só porque seus habitantes deram pão e sal e as chaves da cidade para os franceses, mas porque a abandonaram."
A contragosto de Rostoptchin, governador-geral da cidade, a nobreza moscovita, que podia ser chamada de qualquer coisa menos de idiota, tratou de escafeder-se da cidade levando consigo todas as posses de valor possíveis. Para usar a metáfora escolhida por Tolstói, só uma "ralé" de 10.000 abelhas operárias permaneceram na "colmeia moribunda sem sua rainha"; grupos de bêbados, taberneiros, ferreiros e trabalhadores de fábrica que cometeram a besteira de confiar nas ~autoridades~. De qualquer forma, que diferença um alerta teria feito àquelas pessoas? Como fugiriam? Para onde? 

Em tais circunstâncias, Bonaparte não encontra em Moscou uma efusiva e calorosa comitiva de boas-vindas como ele havia imaginado em seus delírios megalomaníacos, mas apenas uma cidade fantasma que praticamente implorava para ser saqueada pelas tropas francesas.


↪ No mais, Pierre e Andrei avançaram mais algumas casas das suas respectivas jornadas:

> Andrei é agraciado com a epifania de que "All you need is love"; de que a vida resume-se simplesmente em levar a sério o primeiro mandamento de Deus e suas repercussões. (que papo chato...) Como ele parece sempre dar um jeito de estar na hora e lugar certos, conseguiu ser um dos feridos transportados pelas carruagens dos Rostóv em fuga e, assim, reunir-se novamente com Natacha. - Bastante conveniente isso aí, Tolstói. - Acho que essa foi a terceira aparição triunfal dele na história, quase um Jean Valjean do Guerra e Paz.

> Pierre... ai, ai, sei lá; aparentemente ele persiste com o plano de salvar o mundo da Besta Napoleônica, embora ainda não tenha atinado exatamente como cumprirá esse seu destino messiânico. Ele volta da batalha mais perturbado do que nunca (pensei que isso não fosse possível, mas me enganei) e, ao contrário de Andrei, ainda não foi contemplado com uma revelação que responda às suas angústias existenciais: livrar-se de tudo que é supérfluo na vida, ter um propósito no mundo e, acima de tudo, dominar o medo da morte. De todo jeito, ele já conseguiu salvar duas pessoas de um fim trágico: um comandante francês (!) e uma criança russa. - Muito bem, Pierre!

Ah, claro, e tem a esposa que pretende divorciar-se dele para casar com outro. Pode parecer uma bobagem fácil, mas, naquela época, a mulher divorciada não podia casar-se novamente caso o ex-marido ainda estivesse vivo. Francamente. 

13/05/2016

Os Filhos da Meia-Noite - Salman Rushdie

(Tradução: Donaldson Garschagen)

(Este livro Não. ................................................................................
.....|.....|.....ZZzzzZZzZzz.....|.....|.............|Hummmmm, vejamos... .........................................................................A história trata da... ................... Nope... AAAAaaaarghhhhh!.... |  |  | Calma. Ok. .................)
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Vixe, a Padma já está me fitando de soslaio com uma cara toda contorcida que denuncia claramente sua reprimenda implacável.

- Poxa, Padma, você ouviu a mesma história que eu, foi minha companheira de jornada; diga-me então como é que eu faço para resumir, em poucos parágrafos, o que Salim Sinai (pra quem preferir: Catarrento, Cara-suja, Buda, Farejador, Capitão) nos contou? E o desafio maior: como fazer com que meu relato esteja à altura da grandiosidade da história de Salim? Não sei nem como começar.

- Ué, comece do começo, que o resto se resolve.

- Do começo? Bom, acho que tudo começou com um lençol furado, certo? Começo por ele?

- Tá; é, pode ser. Apenas desembuche logo, pois ninguém tem tempo para esperar, não. Fora que ninguém vai ler suas impressões, só eu; e você sabe que sou uma crítica bastante generosa e razoável.

- Talvez você até seja razoável; mas não é nada paciente. O senhor Sinai teve muita tolerância contigo; falo mesmo. (...) Tudo bem, então tinha um lençol furado na Caxemira. Você já esteve na Caxemira? Não?  Nem eu, mas parece ser um lugar muito bonito...

- Mas e o lençol, Daniela? 

- Eita, Padma; mas será possível que não posso fazer nenhuma digressãozinha? Certo, certo. Bom, foi através de um lençol furado que o Dr. Aadam Aziz apaixonou-se pela, comoquechama, Nasim Ghani - futura Reverenda Mãe - e, com ela, deu início à linhagem que fora-lhe profetizada por Tai, como já bem sinalizava o patriarcal nariz do doutor. O casal Aziz teve cinco filhos, dentre os quais havia Mumtaz que, após casada com Ahmed Sinai, passou a chamar-se Amina Sinai. E em 15 de agosto de 1947, exatamente à meia-noite, nasceu o filho do casal Sinai: Salim Sinai, o contador de nossa extraordinária história. 

Salim até pode ser nosso protagonista, porém ele definitivamente não estava só: à meia-noite, houve joelhos e um nariz, um nariz e joelhos. Entre a meia-noite e uma da manhã do dia 15 de agosto de 1947, nasceram 1001 crianças, das quais 581 sobreviveram para constituir a futura Conferência dos Filhos da Meia-Noite (CFM). Tudo que elas quisessem ser, elas seriam; pois eram crianças especiais que, em virtude de alguma força sobrenatural ou mera coincidência, possuíam características, talentos ou faculdades que só podem ser descritos como miraculosos. 

Neste ponto, faz-se mandatório esclarecer que a conexão das nossas personagens com os acontecimentos narrados não ocorre apenas no campo literal. A verdade é que suas presenças e ações ligam-se à própria História ativo-literalmente, passivo-metaforicamente, ativo-metaforicamente e passivo-literalmente. Parece complicado? Pode até parecer, mas não é. 

Para assumir o posto daquele "começo" que Padma me sugeriu, eu escolhi o lençol furado que dera início à linhagem de Salim, contudo eu também dispunha de outra opção igualmente válida: o "começo" de uma linhagem paralela, o qual corresponde à colônia primeiramente portuguesa e posteriormente britânica chamada Bom Bahia. Essa colônia originou, oficialmente à meia-noite de 15 de agosto de 1947 - Pois é! Coincidência? -, às custas de sangues derramados e confundidos com mercurocromo, o país independente Índia, do qual depois nasceu a nação muçulmana Paquistão e mais outra, futuramente, chamada Bangladesh. Portanto, em certo sentido, as vidas da linhagem de Salim e de todos os filhos da meia-noite entrelaçam-se - literal, metafórica e indissoluvelmente - à história dessa linhagem paralela de nações. 

Você está familiarizado com a história da Índia? Um país que mais parece uma torre de babel, um caldeirão de dialetos, crenças religiosas e políticas? Numa nação como essa, talvez seja mais fácil acreditar que aquelas crianças da meia-noite realmente poderiam ser tudo que elas quisessem. Ou não? E se tomarmos a ligação metafórica, provoca-se ainda a pergunta: a Índia também poderia ser tudo que ela quisesse? Ela conseguiu? Eis as questões. De qualquer modo, conhecendo-se a história desse país durante o século XX, é possível antever, com pequena margem de erro, como transcorreu a jornada dos filhos da meia-noite e, em última instância, a de Salim Sinai e sua família.

No site Todo Prosa, li que Rushdie afirmara, em referência ao clássico Dom Quixote, que "uma obra literária não tem que ser apenas cômica, trágica, romântica ou histórico-política: se for concebida direito, pode ser muitas coisas ao mesmo tempo”. Sou obrigada a concordar com ele, pois Os Filhos da Meia-Noite consegue, de fato, ser tudo isso.
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- E que mais?

- Como assim "e que mais", Padma? É só isso aí. Já acabei.

- Mas, mas... Tem muito mais, Daniela! Você deixou de fora um tantão de coisas, menina. E as serpentes? E a escarradeira? E o Colibri? E a Jamila Cantora, ex-Macaca de Cobre? E a Mary Pereira, que mudou o destino do nariz e dos joelhos? E a Viúva? E o Sundarbans? A Purificação? A assustadora Emergência? A Bruxa Parvati? Shiva? E o orelhinha de abano? E o meu picles?! E euzinha??!!

- Padma, você acha mesmo que eu teria condições de incluir tudo aqui; 600 páginas em um post de blog que, como você mesma disse, ninguém vai ler? Claro que não.

- É, acho que você tem razão. Mas eu gostei mais do relato do meu Salim.

- Lógico. Até eu prefiro o dele. E, Padma, mudando de assunto: você acha que tudo que ele nos disse é verdade? Será que o Salim aumentou muitos pontos no relato do conto fantástico dele?

- No início, fiquei meio cabreira com algumas coisas, admito; mas depois fiquei pensando: faz diferença saber se tudo ocorreu exatamente como ele nos contou?

- Sábio questionamento, Padma. Sábio questionamento.

12/05/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #10

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Postagens:
DL#01DL#02DL#03DL#04DL#05DL#06DL#07DL#08DL#09DL#10DL#11DL#12DL#13DL#14DL#15
DL#16

Tomo 3 - Segunda Parte


↪ Esta parte foi bastante interessante e repleta de momentos excelentes, então será difícil concatenar adequadamente todas as ideias; mas vamos lá.


↪ Tolstói prossegue ratificando e aprofundando seu ponto de vista sobre o conflito com a França e suas teorias ensaísticas a respeito de guerras em geral. Para isso, ele vale-se da ótima narrativa do avanço das tropas francesas na Rússia e da sua respectiva obstrução conquistada vitoriosamente pelo exército russo nas batalhas de Chevardinó e Borodinó (C/B). Pois é, Napoleão sentiu finalmente o gosto amargo da derrota. A vitória russa nos confrontos de 1812 foi atribuída 1. à entrada das tropas de Napoleão nas profundezas da Rússia sem os preparativos necessários para o clima de inverno (desde sempre, pelo visto, o maior trunfo defensivo do país) e 2. à moral dos russos humilhantemente violentada pelos franceses durante os incêndios e saques das cidades invadidas.

No entanto, antes de iniciar a descrição propriamente dita desses eventos, o narrador antecipa sua visão crítica a respeito da construção da narrativa histórica daqueles fatos; a qual recai sobre os historiadores que, analisando retrospectivamente os eventos, buscam exclusivamente os indícios capazes de comprovar uma hipótese única preestabelecida, optando por ignorar deliberadamente todos os demais. E essa metodologia seria ainda mais grave por adotar a premissa de que todas as ações e movimentos dos conflitos de 1812 teriam sido meticulosamente calculados e premeditados pelas grandes lideranças dos dois exércitos. Resta evidente, portanto, que uma historiografia dessa natureza afronta diretamente a já citada, e defendida pela narrativa de Guerra e Paz,  Lei da Coincidência das Causas (LCC) que, em última instância, associa a História à fatalidade e providência. 

Nosso narrador empenha-se em demonstrar que nem os russos haviam ardilosamente atraído os franceses para uma derrota no interior do país, nem os franceses previram as intempéries que enfrentariam com o deslocamento para Moscou. Tudo aconteceu por acaso. (Essa ideia de fatalidade é meio assustadora, não? Ou seria apaziguadora, já que tudo estaria fora de nosso controle? Questões...) Além disso, a premeditação defendida por parte dos historiadores também refuta a LCC ao atribuir a autoria dos desfechos da guerra apenas a uns gatos-pingados de medalhões do alto escalão, desconsiderando o papel crucial desempenhado pela coincidência de todos os arbítrios das pessoas que participaram dos acontecimentos.

Nesse sentido, a narrativa de Guerra e Paz relativiza o papel dos grandes comandantes no desenrolar de conflitos que, vale ressaltar, não admitem uma redutora comparação ao xadrez. Uma fala de Andrei surge para reforçar exatamente isso, na qual ele afirma que nas guerras, ao contrário do que ocorre no jogo de tabuleiro, não há tempo para pensar antes de cada jogada e não se trabalha com regras claras predefinidas. Um comando 'X" de Napoleão, por exemplo, poderia perfeitamente implicar em um cumprimento "Y" por parte da tropa - "Para Napoleão, apenas pareceu que todo o combate se passou pela sua vontade.". Para o meu queridíssimo príncipe, o desfecho dos conflitos independe das ordens do estado-maior, mas, sim, de cada soldado que arrisca sua vida na linha de frente. Essa passagem foi bem legal, pois fez com que eu voltasse para analisar algo que escrevi na DL#03, especificamente isto: "demonstra como um bom comandante faz toda a diferença."  Como explicitamente apontou Tolstói, em C/B Napoleão era o mesmo ardiloso comandante que venceu Austerlitz (e até mais experiente) e as tropas também eram as mesmas, porém, ainda assim, o desfecho foi bem diferente. Então, fui forçada a rechaçar a minha própria assertiva: um bom comandante faz, afinal, tanta diferença em uma guerra? Até que ponto?

Tolstói pareceu usar também a personagem de Kutúzov* para simbolizar esse posicionamento. O velho comandante-geral tem sua experiência enaltecida pela posse da sólida consciência de que "tudo seria o que tinha de ser" e de que a vontade dele não era mais relevante do que a marcha inevitável dos acontecimentos, pois um único homem não é capaz de comandar centenas de milhares de pessoas que lutam contra a morte. O modus operandi de Kutúzov era o de apenas aceitar ou recusar o que lhe sugeriam, reservando ordens explícitas apenas quando eram-lhe exigidas. Os longos anos de guerra conferiram-lhe a certeza de que o destino dos conflitos repousa no espírito da tropa que ele apenas acompanha como coadjuvante.

* (Exato; o bode expiatório de Austerlitz retorna triunfalmente para comandar os russos sob a alcunha de "Excelentíssimo". O jogo sempre pode virar, não é mesmo?)

↪ Voltemos ao Andrei, pois o papel dele nessa parte foi fundamental. O jovem príncipe aparece simbolizando múltiplas facetas da narrativa:
1. ele, que já vinha com sua moral abalada pelo término do noivado com Natacha, surge como um dos muitos russos que foram vítimas diretas do avanço das tropas francesas na Rússia, tendo em vista que suas terras em Montes Calvos foram saqueadas e destruídas. No processo humilhante de fuga para Moscou, seu pai falece vítima de um aparente acidente vascular cerebral, enquanto sua irmã tem de encarar um vexatório embate com seus mujiques, antes de conseguir fugir com o sobrinho para Moscou;
2. ele é uma das personagens que põe em prática as ideias de Tolstói. Com o espírito inflamado pela violência de que sua família fora vítima, ele refuta as táticas meramente teóricas e os comandos falaciosos, em nome da luta obstinada na linha de frente, agora consciente de que isso era o que efetivamente importava;
3. também através de uma fala de Andrei, Tolstói desfere novamente (mais explicitamente) críticas incisivas aos militares:
"(...) os padrões de conduta da carreira militar são a ausência de liberdade, ou seja, a disciplina, a ociosidade, a ignorância, a crueldade, a  depravação e a bebedeira. E apesar disso é a carreira mais alta, a mais respeitada por todos. (...) Eles se reúnem para se matarem uns aos outros, ferem, aleijam dezenas de milhares de pessoas, e depois vão mandar rezar missas em ação de graças por terem matado tanta gente."
* Pausa confessional: que notável jornada meu querido Andrei está seguindo. É o momento de confessar que finalmente estou entendendo o conceito de "crush literário", pois me encontro completamente apaixonada por ele (patética).

↪ O estimado Pierre também surge de modo relevante aqui. A sensação que tive é que, de certo modo, ele parece representar o leitor no meio de toda a monstruosidade daquele conflito; pois, como nós, ele esforça-se para extrair algum sentido de algo que parecia ser completa e assustadoramente ilógico. Sem nenhuma experiência militar, Pierre decide se meter corajosamente na linha de frente em busca de "realizar algo e de sacrificar-se por algo, com a consciência de que tudo aquilo que constrói a felicidade das pessoas (...) são tolices que dá gosto descartar, em comparação com outra coisa." Assim como ocorre com Andrei, a guerra  (além dos eventos de cunho pessoal já descritos, claro) provoca-lhe angustiantes questionamentos a respeito do sentido da vida e, especialmente, da morte. Pierre e Andrei parecem seguir jornadas de caminhos diferentes que, contudo, se cruzam em vários momentos e que, suspeito, os levarão a um mesmo destino final. Será?

Obs.: e o Dólokhov se desculpando?! É aquela coisa: quão insignificante torna-se uma rixa diante da presença da Morte que bafora nosso cangote? Perspectiva, correto?


↪ Pudemos ter acesso, afinal, à visão dos mujiques no conflito. Admito que, de início, não estava entendendo a reação deles em se negarem a fugir, impedindo até a saída de Mária de Montes Calvos; no entanto logo fez-se a luz:
"- (...) ir atrás dela para os trabalhos forçados! Levar a casa à ruína e ainda ter de trabalhar para pagar as dívidas. Essa não! E ainda diz: eu vou dar  os cereais! - soaram vozes na multidão."
É como resume, mais adiante, Deníssov: "- Isto é uma guerra ao estilo dos citas. É tudo muito bonito, mas não para aqueles que têm de pagar o pato."


↪ A reação da "high society" moscovita, por sua vez, seria patética, se não fosse apenas ridícula. Os tontos foram tomados por um artificial patriotismo que garantia até multas a quem falasse algo em francês. 


↪ Agora voltando à Mária: ela é outra personagem que desponta discutindo outra faceta da morte, notadamente aquela que insere-se no contexto da relação entre pais e filhos. Gostei muito da honestidade e empatia, livre de julgamentos, com que o narrador tratou o embate interno que ela sofre diante da morte iminente do pai; ora desejando secretamente sua morte em nome da liberdade, ora culpando-se pelo sentimento vil e egoísta. Achei a contradição de sentimentos bastante humana, e não a condeno em absoluto. Pelo menos o velho Bolkónski teve tempo de redimir-se, de certa maneira, com a filha: "Obrigado, filha... amiga... obrigado por tudo, tudo... desculpe..."

* Pausa para fofoca: e o Rostóv bancando o herói macho man com ela (imediatamente depois de fazer piadinhas com outras mulheres...), garantindo a fuga de Montes Calvos? Gente... E os dois parecem que já se apaixonaram. Nunca imaginei que isso aconteceria; estou passada.

E como a personalidade de Rostóv é frívola, meu deus. Um paspalho, basicamente.


↪ Ainda não tinha aparecido oportunidade de comentar, mas uma coisa que venho notando é a curiosa presença que cavalos têm na obra. Pela maneira recorrente com que são mencionados, a íntima relação desse animal com os russos é enaltecida e, hipoteticamente, parece-me que o modo com que eles são descritos espelha a personalidade ou o estado de ânimo de seu respectivo dono.

Já apareceram vários exemplos anteriores no livro, e nesta parte tivemos:
1. Kutúzov, o experiente comandante-geral, "montava seu cavalinho valente";
2. Um carroceiro ajeitava "os arreios de seu cavalinho(...)";
3. Já a descrição grandiosa para Napoleão: "montado no seu cavalo baio marchador de crina e rabo curtos, (...)";
4. Pierre também monta, "depois de perguntar qual era o mais manso(...)", um "cavalinho sem fôlego";
5. Surgem descrições de cavalos feridos na batalha;
6. Rostóv, por exemplo, troca de cavalo vários vezes ao longo do livro, em uma espécie de upgrade equino que acompanha seu amadurecimento (~ou falta de~, convenhamos);
7. Para descrever a certeza falaciosa de Napoleão, Tolstói lança mão da comparação "ao papel triste" "do cavalo atrelado à roda de uma engrenagem que imagina que faz algo para si."

É muito interessante.
♥ Tolstói no seu cavalinho. ♥


↪ - Lavruchka, meu querido, você mandou bem:
"- É o seguinte: se houver uma batalha - disse ele, com ar pensativo -, e for logo, então pronto, acabou-se. Mas se passarem três dias a partir de hoje, então quer dizer que essa batalha vai demorar."

↪ De novo, mais uma impactante passagem para o leitor do século XXI, ainda mais por ter sido dita por um russo (Andrei novamente) :
"(...) esses senhores alemães não vão vencer a batalha amanhã, vão apenas atrapalhar, com todas as forças que tiverem, porque na sua cabeça alemã só existem raciocínios que não valem um ovo quebrado, e no coração eles não têm a única coisa que será necessária (...). Entregaram a Europa inteira para ele e depois vêm para cá nos dar lições..."
Outra: Napoleão, no séc. XIX, já tinha planos de formar a verdadeira União Europeia máxima, confere? A História é mesmo intrigante.
"A Europa, (...) haveria de ser verdadeiramente um só povo, e cada um, ao viajar por toda parte, estaria sempre em uma pátria comum. Todos os rios seriam navegáveis para todos, haveria a comunidade dos mares, (...)"

↪ Também me peguei confabulando: Tolstói parece encarar doenças de modo correlato, em certa extensão, às guerras. No episódio da Natacha, ele já tinha dado pistas disso e houve reforços aqui. Nas doenças, assim como os comandantes nas guerras, os médicos e remédios existiriam apenas para conceder a mera ilusão reconfortante de que nós possuímos algum controle sobre o fatalismo mortal.


↪ "Será que isto é a morte? (...) Não posso, não quero morrer, eu amo a vida (...) O que existirá lá e o que existia aqui? Por que é tão penoso para mim separar-me da vida? Havia nesta vida algo que não entendi e que não entendo."

Se Andrei morrer, eu nem sei, viu; eu nem sei...
E Tolstói ainda tem o desplante de metê-lo ao lado de Anatole (!!).
Pelo menos a vida desse daí também está por um triz; mas sabemos como vasos ruins comportam-se. 


↪ É isso mesmo, esta é mais uma grande personagem de Guerra e Paz: