23/09/2016

All Passion Spent - Vita Sackville-West

(* Sobre o livro: info, sinopse etc.)

Estou contente por finalmente poder alterar a classificação de Vita Sackville-West dentro do meu universo de referências literárias: além da categoria [aquela autora paisagista que trocara cartas amorosas com Virginia Woolf, servindo de inspiração para a obra Orlando], ela agora também pertence à de [autora cujo livro me fez verter lágrimas, enquanto eu carregava sacolas de supermercado no meio da rua*]. Sim; eis que eu estava caminhando toda satisfeita, carregando para casa um novo estoque de açúcar contra a amargura da vida, quando subitamente a lembrança de Lady Slane — a protagonista de All Passion Spent — me invadiu a mente, provocando uma avalanche súbita de ternura melancólica que não fui capaz de conter. Assim mesmo, chorando em público e "do nada", por conta de uma personagem ficcional. Especificando mais a nova categoria pessoal ocupada pela britânica, adianto que achei o livro lindo, muito bem escrito — o discurso indireto livre da primeira parte, em especial, me surpreendeu —, marcado por uma honesta e tocante sensibilidade entremeada por sagaz comicidade. E como é recorrente com as boas leituras, logicamente saí dessa devaneando sobre ~questões~.
* = cabe admitir que choro muito facilmente por conta de livros.)

...

Quando Lady Slane nos é apresentada, ela tem 88 anos de idade, é mãe de seis filhos, já é avó e bisavó, e vivencia o exato momento em que tornava-se a viúva do ilustríssimo e honorável  Mr. Henry Lyulph Holland, first Earl of Slane, antigo Vice-Rei da Índia e Primeiro Ministro da Inglaterra. Nos trechos iniciais durante o velório do pai, os filhos sessentões de Lady Slane repetem uma marcante expressão da qual não me esquecerei facilmente:
"Mother is wonderful."
Mesmo para aqueles que não leram o livro, suponho que seja possível captar que, muito além do sugerido conforto dos filhos ao perceberem a serenidade com que a mãe lidava com a morte do esposo, essa frase parece camuflar uma peculiar crítica — ainda que apenas inconsciente — dirigida à Lady Slane. Como compreender que uma mulher casada por tanto tempo, mera (embora vital) extensão de tão renomado inglês, pudesse continuar viva, exibindo tamanha placidez? Curiosamente, me fez lembrar do protagonista do livro de Camus: Meursault é julgado abertamente (dentre outras razões... spoilers etc) por não chorar desesperadamente durante o enterro da mãe, e Lady Slane, por sua vez, é veladamente (inconscientemente?) repreendida por não se descabelar em cima do caixão do marido. É, a facilidade com que as pessoas julgam aqueles que refutam as performances socialmente aceitas e impostas nunca deixa de me admirar. De qualquer maneira, o fato é que a "mamãe" estava mesmo ótima, na medida do possível, apesar da enorme perda dela, de sua família e de seu país.

As surpresas dos filhos não pararam nessa reação da mãe, pois enquanto eles debatiam a respeito de quem seria o afortunado que cuidaria da "mamãe", Lady Slane apresentou-lhes de pronto seu plano já plenamente definido: ela iria morar sozinha numa singela casa que visitara há 30 anos, no interior de Hampstead, com o propósito de levar uma vida em tudo oposta àquela a qual dedicara-se em razão do marido. Substituindo as solenidades, as artificialidades e a sociedade ambiciosa e performática, Lady Slane passaria a viver modestamente em ritmo calmo, passivo e contemplativo. Inclusive, é a partir da decisão por essa mudança que nós, leitores, permanecemos mais próximos e íntimos de Lady Slane; ou seja, com o sepultamento de Mr. Holland, ela finalmente consegue fazer com que o narrador devolva-lhe a voz própria que havia sido anulada pela presença dominante do marido.

Ciente do pouco tempo de vida que ainda restava-lhe, um tempo ainda mais precioso por estar sendo retomado completamente após mais de 70 anos de casamento com um homem de relevante posição política, Lady Slane deliberadamente escolhe dedicar-se a uma contemplação reflexiva de sua jornada pregressa. Ela ressalva não tratar-se de uma empreitada melancólica, mas simplesmente de um luxo que iria conceder-se, mesmo porque ela não tinha mais nada (finalmente) para fazer.
"She could lie back against death and examine life."
Essa passagem já me fez embarcar no seguinte questionamento: será que, quando idosos, naquela fase em que a morte se apresenta como a visita palpavelmente iminente, a tentação de revisitar e avaliar toda nossa vida torna-se irresistível? Isso seria saudável? Valeria a pena? Compõe indelevelmente o fechamento do ciclo? Faço essas perguntas especialmente porque essa perspectiva me deixa muito desconfortável; digo, nesse ponto em que estou, tenho certeza de que não gostaria de brincar disso. Por conseguinte, fico ainda mais incomodada ao ponderar sobre as razões desse meu desconforto. Acho que sei qual é a resposta, e ela não me deixa exatamente feliz. Será que a idade permite o embarque nessas retrospectivas pessoais com mais serenidade? Por enquanto, não sei. Saberei? Bem, vamos acompanhar, não é mesmo?

Voltando às meditações de Lady Slane, gostaria de registrar alguns temas que ela aborda.

(1)
"And what, precisely, had been herself, she wondered - an old woman looking back on the girl she once had been? (...) that was she, Deborah Lee, not Deborah Holland, not Deborah Slane; (...) in her head, it was (...) neither love, nor romance, (...) If she dreamed, it was of no young Adam. (...) there are (...) fame and achievement and genius (...) they were thoughts of (...) escape and disguise; (...) freedom in some foreign city (...) The image of the girl faded, and in its place stood a slender boy, (...) a sexless creature. (...) Deborah, in short, at the age of seventeen, had determined to become a painter."
Durante o reencontro da idosa Lady Slane com a jovem Deborah Lee, descobrimos a extensão dos sonhos e desejos de nossa protagonista, os quais acabaram sendo aniquilados pelo fato dela ser uma mulher vivendo em 1860, a quem o casamento aparecia — como de fato apareceu na figura de Mr. Holland — como o único destino a ser atingido. É intrigante encontrar Sackville-West abordando a temática do "novo nome" que Ferrante também discute na Série Napolitana: aqui, sai Deborah Lee futura pintora e entra, em seu lugar, Lady Slane, "apenas" a esposa do respeitado Mr. Holland. É preciso ressaltar que Lady Slane faz questão de declarar seu amor pelo falecido marido, reforçando somente a noção tácita dessa troca rígida simbolizada pelo "novo sobrenome", não sendo permitido — pelo marido e pela sociedade — o convívio mútuo das duas identidades (a pintora livre e a esposa/mãe). Ademais, percebe-se que Sackville-West também parece retomar a essência de Orlando*, de Virgínia Woolf, ao conferir a sua protagonista o anseio por tornar-se uma figura sem gênero, livre de quaisquer restrições sociais para fazer o que bem desejasse. (*: ainda não li)

De certo modo, acredito igualmente que a autora expande essa discussão para além do âmbito, digamos, feminista, uma vez que, mediante ótimas personagens secundárias, ela introduz um subtexto que parece destacar a importância de respeitarmos e abraçarmos integralmente quem realmente somos, ainda que isso signifique desafiar convenções sociais sob o risco de sermos tachados de excêntricos ou de aberrações (- ou de estrangeiros, não é, Meursault?). Isso aqueceu meu coração.

(2) 
"But what was happiness? Had she been happy? (...) But one was happy at one moment, unhappy two minutes later, and neither for any good reason; so what did it mean? (...) Certainly, there had been moments of which one could say: Then, I was happy; and with greater certainty: Then, I was unhappy, (...) but whole regions had intervened, which were just existence. (...) No, that was not the question to ask her - not the question to ask anybody. Things were not so simple as all that."
E então? O que seria, afinal, esse troço que, em português, chamamos de Felicidade? "Ser feliz" e "ter levado uma vida feliz" significam o quê? Como gostei imensamente das ponderações de Lady Slane, colarei na resposta dela.

(3)
"(...) she wondered which wounds went the deeper: the jagged wounds of reality, or the profound invisible bruises of imagination?"
Essa pergunta é excelente, não? Ela surge quando Lady Slane descobre  o passado bastante sofrido e miserável de sua dama de companhia Genoux, fiel companheira desde o casamento. Constrangida por só descobrir aqueles fatos tão tardiamente, Lady Slane passa a conceber a necessidade de relativizar a sua própria dor que, quando comparada à de Genoux, pertence apenas ao campo da imaginação. O fato de nossa protagonista sofrer por aquilo que não pôde realizar na juventude — uma carreira como pintora, notadamente — torna menos válido seu padecimento, já que não trata-se de um evento real e concreto? Tentando responder à Lady Slane, penso (hoje) que não há o que comparar, que não cabe afirmar que essa dor é mais profunda do que aquela; sendo necessário, isto sim, validar a dor das "cicatrizes invisíveis" — nem melhores, nem piores que as visíveis.

(4)
Para concluir os devaneios, obviamente resta o formidável título do livro:
All Passion Spent.
Ele foi o responsável por me atrair à obra e, ao longo da leitura, a abstração instigante foi adquirindo cada vez mais carga significativa concreta. Somente após a conclusão da leitura, descobri que o título foi extraído de versos escritos por John Milton no séc. XVII, pertencentes aos Samson Agonistes (Sansão Agonista) e adicionados ao Paradise Regained (Paraíso Recuperado). O poeta inglês dramatiza a tragédia de Sansão do antigo testamento, e os versos finais são estes:

His servants he with new acquist
Of true experience from this great event
With peace and consolation hath dismissed,
And calm of mind, all passion spent.

Além da beleza poética desse verso final, gosto enormemente da sugestão de que é possível chegarmos ao fim com a mente calma e serena, desde que tenhamos sido capazes de atender por completo a nossas paixões em vida.

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