19/11/2016

[DL #01] Middlemarch - George Eliot (Mary Ann Evans)

Em 2016, inicio a leitura de Middlemarch pela primeira vez e tento registrar aqui um diário de leitura com possíveis postagens para cada um dos oito livros que compõem a obra. Não li previamente nada sobre o livro e desconheço quase tudo sobre ele. 



LIVRO 01
Miss Brooke

 Esses aí são, na verdade, Santa Teresa de Ávila e John Locke, porém Eliot utiliza explicitamente essas duas célebres figuras como referências para caracterizar preliminarmente as personagens que formam o primeiro* power couple de nossa jornada por Middlemarch.   (* = Suspeito de que haverá mais alguns ao longo da narrativa. Vamos acompanhar.)

Antes de destrinchar os pormenores relacionados ao nosso intrigante (e suposto) "OTP - One True Paring" inaugural, penso ser mais apropriado tratar inicialmente do panorama no qual estou me metendo ao encarar a leitura de Middlemarch. Nesse sentido, o subtítulo do livro é bastante generoso: "Um estudo da vida provinciana." Prontinho. Pela leitura do livro I, parece-me que será exatamente isso. A epígrafe do capítulo XI também sumariza bastante bem as intenções de Eliot com essa obra:

"But deeds and language such as men do use, 
And persons such as comedy would choose, 
When she would show an image of the times, 
And sport with human follies, not with 
crimes." 

("Língua e ações como as que os homens usam
E pessoas tais de que as comédias abusam,
Quando resolvem mostrar a imagem dos anos
E rir das loucuras, não dos crimes humanos.")
                                             - Ben Jonson. 
Ou seja, os indícios do livro I sinalizam que Eliot desenvolve uma minuciosa análise das pessoas que viveram na interiorana cidade de Middlemarch durante o século XIX, na Inglaterra. Ações, linguajares, interações, idiossincrasias e dinâmicas estabelecidas entre todos os indivíduos que compunham aquela sociedade são esmiuçados pela autora com impressionante inteligência, perspicácia, sutileza e riqueza de detalhes. Como resultado, somos agraciados com uma representação fidedigna (me parece) e muito bem humorada (sim!) daquele período. Nesse contexto,  a constatação de que, após 124 páginas, a história já conta com 28 personagens aproximadamente — e tenho certeza de que aparecerão mais — não surpreende. Até o momento, três páginas do meu caderno de anotações foram consumidas pelo registro dos nomes da galera. Confabulando, imaginei que talvez Middlemarch possa ser considerada, inclusive, como uma espécie de versão inglesa — focada apenas na província — da Comédia Humana, de Balzac (essa comparação já existe corriqueiramente?). Adotando-se essa teoria, seria possível concluir 1. que Eliot teria um poder de concisão muito mais apurado que o de seu contraparte francês, e 2. que, com sua obra, não sou forçada a "fazer vista grossa" para um homem discursando que "ah, porque a mulher é assim e assado etc." Minha impressão preliminar é que, na prosa de Eliot, as personagens femininas são examinadas de maneira complexa, havendo a exposição sagaz da condição desvantajosa que aqueles tempos reservavam ao sexo feminino. A epígrafe do primeiro capítulo sugere, de forma impactante, a posição que as mulheres ocupavam naquela sociedade e, por extensão, nas páginas de Eliot:

"Since I can do no good because a woman,
Reach constantly at something that is near it."
—The Maid's Tragedy: BEAUMONT AND FLETCHER.

("Se de bom, por ser mulher, nada faço,
Tendo sempre ao que há mais perto a ele.")
- A Tragédia da Donzela: BEAUMONT AND FLETCHER.)

Adicionalmente, esta outra passagem, por sua vez, reforça a percepção inicial de que o foco principal desse estudo de sociedade recairá sobre as mulheres:
"In fact, much the same sort of movement and mixture went on in old England as we find in older Herodotus, who also, in telling what had been, thought it well to take a woman's lot for his starting-point; (...)"
O ponto de partida escolhido pela autora para a história é, portanto, o fado de uma mulher.


✒ Como a maioria dos leitores não resiste a um mapinha complementando a leitura, eis aqui Middlemarch: clique aqui para versão ampliada e detalhada.

✒ Quanto ao período específico, posso estar equivocada, mas creio que a narrativa não definiu expressamente, até agora, o ano preciso em que a história se passa. Porém há pistas, como as passagens em que as personagens discutem as reformas implementadas pelo parlamento do Reino Unido durante o século XIX. Em pesquisa no site do respectivo parlamento (link aqui), observei que houve diversas reformas durante aquele século, tendo sido implementados Atos de Reforma em 1832, 1867 e 1884 (majoritariamente relacionados a alterações eleitorais e de representação política na casa parlamentar).
"(...) all people in those ante-reform times)"
Outra pista mais específica refere-se à menção explícita (no tempo pretérito) do "Ato de Ajuda Católica de 1829", o qual implicou na culminação do processo de Emancipação Católica no Reino Unido e na Irlanda. Sendo assim, suponho que, no livro, estamos em torno de 1830-32.
"I shall inform against you: remember you are both suspicious characters since you took Peel's side abaout the Catholic Bill."
A propósito, aproveito o tema da contextualização temporal para já comentar que, pelo papo trocado entre os Middlemarchers, parece-me que o pessoal da província era super conservador; o que talvez não seja assim tão inesperado realmente. Em linhas gerais, a maioria dos cidadãos parece resistir bravamente às ideias liberais, às reformas políticas e à emancipação católica. Os middlemarchers mais notórios, por assim dizer, demonstram preconceito e aversão contra gente da burguesia, como banqueiros e manufatureiros, sobrando comentários suspeitos até contra judeus. Entre eles, o valor maior ainda estava reservado às famílias de nome nobre possuidoras de terras e àqueles que lidavam com atividades agrícolas. É, os moderninhos progressistas eram minoria por aquelas bandas.
"(...) she preferred the farmers at the tithe-dinner, who drank her health unpretentiously, and were not ashamed of their grandfathers' furniture. For in that part of the country, before reform had done its notable part in developing the political consciousness, there was a clearer distinction of ranks and a dimmer distinction of parties; so that Mr. Brooke's miscellaneous invitations seemed to belong to that general laxity which came from his inordinate travel and habit of taking too much in the form of ideas."
"The Miss Vincy who had the honor of being Mr. Chichely's ideal was of course not present; for Mr. Brooke, always objecting to go too far, would not have chosen that his nieces should meet the daughter of a Middlemarch manufacturer, unless it were on a public occasion."
"No, by George! They are as rich as Jews, those Waules and Featherstones; I mean, for people like them, who don't want to spend anything. And yet they hang about my uncle like vultures, and are afraid of a farthing going away from their side of the family. But I believe he hates them all."

✒ Para concluir o painel geral das impressões introdutórias, cabe falar um pouco mais sobre a prosa da George Eliot. Eu diria, de maneira pura e simples, que é uma coisa finíssima. Ela elabora uma escrita tremendamente refinada, do tipo que costumo categorizar como "chique, sem pedantismo". Particularmente, considerei que existem até ligeiras similaridades entre o estilo dela e o da Virginia Woolf, mas desconheço se essa comparação já existe ou se é aceita por acadêmicos. Descobri apenas que a Woolf escreveu um ensaio elogioso sobre a obra da Eliot, o qual guardei para ler após concluída a leitura de Middlemarch.

A narrativa de Eliot igualmente me conquista por conta da presença, sempre bem-vinda, de humor, o qual manifesta-se principalmente através dos excelentes diálogos entre as personagens — a maioria, aliás, é muito engraçada. Não foram poucas as vezes em que tive de interromper a leitura, simplesmente porque não conseguia parar de rir. E não invariavelmente, acrescento, eu começava a rir subitamente, ao longo dos dias, apenas por me lembrar de alguma passagem da história. 

Por fim, desejo comentar uma particularidade bastante interessante da narrativa referente ao modo com que a autora trata suas personagens. Coincidentemente, li há pouco tempo um artigo no site The Atlantic relacionado à Jane Austen, no qual a respectiva autora - Megan Garber - menciona o seguinte: "Austen is not George Eliot, after all; she is neither copious nor comprehensive in her empathies. She is Jane Austen, OG Gossip Girl. Her narrator, in Pride and Prejudice, is judgy. She plays favorites. She mocks. She deploys her wit with surgical strikes." Ou seja, afirma-se que Austen, ao contrário de George Eliot, julga, debocha e toma partido de suas personagens. Como ainda não tinha lido nada da Eliot (da Austen, sim), não pude entender completamente a comparação naquele momento. Agora, contudo, compreendo-a claramente e, destaco, concordo com Garber. 

Em Middlemarch, o narrador escolhe fazer pausas explícitas na narrativa, a fim de interceder em nome de suas personagens mediante ponderações e relativizações generosas das ações por elas tomadas. É como se ele suspeitasse antecipada e acertadamente de que nós, leitores, incorrendo em falhas morais similares às dos middlemarchers, não resistiríamos ao ímpeto de levianamente apontar o dedo contra aquelas figuras ficcionais. Com certa recorrência, ele nos lembra de que seres humanos são complexos e preocupa-se em fortalecer nossa honesta empatia. Sem dúvidas, tratam-se de passagens muito louváveis, salientando que não recaem em pieguice, considerando-se que Eliot oferece (na voz do narrador) argumentos sagazes contra a condenação categórica por parte de seus leitores. Pessoalmente, recebo o auxílio do narrador, de fato, com tremenda gratidão, pois é bem fácil cair na tentação de sair julgando implacavelmente todos os middlemarchers. Sempre bom ter alguém sugerindo que eu "me olhe no espelho" antes.

Mas vamos às fofocas, porque, tratando-se de calhamaços vitorianos, é o que mais interessa, sim? Sejamos honestos, não é mesmo? A leitura desses romances parece-me um caso exemplar do famigerado adágio "aprender brincando."


✒ Não é a toa que Miss Dorothea Brooke — Dodo para os íntimos — intitula esse primeiro livro de Middlemarch, pois a atenção maior recai sobre ela; uma personagem fascinante e complexa. Ademais, dada a caralhada de personagens que compõem a obra, ainda não sei dizer se ela ocupará uma suspeita posição de heroína protagonista. Vamos acompanhar. 

Nesta introdução, Miss Dorothea Brooke tem aproximadamente 20 anos, é órfã desde os 12 anos e, quando a encontramos, ela está de volta a Middlemarch, junto com sua irmã mais nova Célia, retornando de anos de estudo na Suíça, para onde o tio delas, Mr. Brooke (60 anos), as havia enviado.

Logo no prelúdio, no instante em que Eliot implicitamente compara Dodo à Santa Teresa de Ávila, recebemos elementos decisivos quanto ao caráter da personagem. Sabe quem foi Santa Teresa? Praticando a habitual honestidade neste veículo, admito que eu mesma não tinha uma precisa ideia. Para informações detalhadas sobre a santa, segue este link opcional: aqui.

O que importa para nossa questão, a fim de entendermos quem era Dorothea, é o que Santa Teresa simboliza; nas palavras de Eliot:  uma mulher de natureza idealista e apaixonada que encontrou na reforma de uma ordem religiosa a epopeia capaz de conciliar o desespero de ser com a consciência arrebatada da vida além do ser. Miss Brooke representa uma das muitas Teresas que existiram (e que ainda existem?) séculos depois daquela santa original. O contratempo é que uma cidade provinciana inglesa do século XIX não mais oferecia a uma mulher de religiosidade fervorosa e praticante de um puritanismo magnânimo, que ambicionava realizar grandes feitos, as mesmas condições que permitiram que Santa Teresa implementasse suas reformas. Por conseguinte, Dodo acaba personificando, novamente nas palavras tácitas de Eliot, "o cruzamento de uma certa grandeza espiritual mal correspondida com a pequenez das oportunidades, talvez um fracasso trágico (...)"

É pertinente lembrar que, aos olhos da sociedade em que Dodo estava inserida, seu comportamento e objetivos extraordinários, ainda que mal delineados, eram encarados como puras extravagâncias excêntricas, e sou obrigada a admitir que certas coisas que ela fazia eram relativamente descomedidas. Asceta exemplar, ela não queria saber das vaidades relacionadas à toalete e coqueteria praticadas pelas moças da época, preferindo vestir-se modestamente. Embora sentisse grande prazer com a montaria, ela buscava resistir de maneira enérgica à prática, pois julgava que poderia aproximá-la do pecado. Ela também refutava atividades e interesses considerados notoriamente femininos naquele século, habitualmente reservados ao ambiente doméstico, como a pintura, piano, e bordados. Ou seja, assim como Santa Teresa, a vida de Dodo não tinha espaço para essas "frivolidades" impostas às mulheres do século XIX. Não, nossa personagem intencionava algo mais grandioso, destacando-se que ela já estava envolvida com trabalhos em uma escola infantil que mantinha na cidade, bem como elaborava projetos de construção de casas populares para os mais humildes. Caso não tenha ficado claro, imagino que basta dizer que ela era o tipo de pessoa que se ajoelhava para rezar, no meio da rua, ao lado de um doente; que lia livros teológicos até altas horas da noite e que impunha-se jejuns rigorosos. Acho que não tinha mesmo como ser diferente: para a maioria daquela sociedade, Dodo era uma perfeita lunática capaz de afugentar qualquer pretendente potencial - conquanto fosse, sim, muito bonita. 

Embora eu reconheça que Miss Brooke comporta-se de modo excessivo e caricato, quase estupidamente pueril (e a graça é que ela julgava-se muito superior aos demais compatriotas), é imperioso também apontar que ela parece retratar a figura de uma mulher ambiciosa que culminou como vítima de seu tempo. Ali, nas condições que a sociedade reservava ao sexo feminino, não havia espaço para grandes feitos por uma mulher. Como mais um produto daquele meio, nem mesmo Dorothea, a despeito de suas prementes aspirações, foi capaz de cogitar que conseguiria conquistar algo do que almejava fora da posição da esposa companheira. É justamente com tal pensamento que ela decide casar-se, por livre e espontânea vontade, com um clérigo cinquentão, teólogo respeitado por sua vasta obra sobre a História da Religião; um homem descrito como sendo fisicamente idêntico a John Locke (gatão demais, hein?) e já mal da visão - o Reverendo Mr. Casaubon. Dorothea julgava que a notória velhice do estudioso refletia a superioridade dos valores do passado e que, servindo como braço direito dele na posição de esposa, ela conseguiria pôr em prática seus sonhos de grandes realizações para a humanidade.

Dodo percebia o casamento de maneira demasiadamente infantil, buscando um marido que representaria a figura aproximada de um pai, aquele mentor intelectual e religiosamente superior a ela e que a ensinaria tudo. Pânico: ela sonhava com uma vida de mansplaining. Não parece-lhes lamentável que aquele período não tenha concedido à Dorothea, e demais Santas Teresas, a aptidão para vislumbrar que o alcance de uma vida significativamente plena poderia ocorrer independente de uma relação matrimonial? Para aquelas moças, a concretização dos grandes feitos sonhados passava necessariamente por um homem, pois, sozinhas, elas próprias estavam certas de que nada conseguiriam. Em minhas conjecturas particulares, interrogo o que teria acontecido com Dodo, caso ela tivesse nascido no século XXI. Suspeito de que ela possivelmente sequer consideraria um casamento para si, muito menos com um velhaco* (ainda que respeitável e bem intencionado).

Dentre as argumentações do narrador a respeito de Dorothea, há esta passagem bastante enfática quanto à natureza da suposta "inteligência" dela:
"It would be a great mistake to suppose that Dorothea would have cared about any share in Mr. Casaubon's learning as mere accomplishment; for though opinion in the neighborhood of Freshitt and Tipton had pronounced her clever, that epithet would not have described her to circles in whose more precise vocabulary cleverness implies mere aptitude for knowing and doing, apart from character. All her eagerness for acquirement lay within that full current of sympathetic motive in which her ideas and impulses were habitually swept along. She did not want to deck herself with knowledge—to wear it loose from the nerves and blood that fed her action; and if she had written a book she must have done it as Saint Theresa did, under the command of an authority that constrained her conscience. But something she yearned for by which her life might be filled with action at once rational and ardent; and since the time was gone by for guiding visions and spiritual directors, since prayer heightened yearning but not instruction, what lamp was there but knowledge? Surely learned men kept the only oil; and who more learned than Mr. Casaubon?"
[Sim, nosso narrador também é capaz de ser um crítico vigoroso de suas personagens, quando a situação exige.] Ou seja, em concordância com o que eu disse, Dodo não poderia ser considerada exatamente "inteligente" em sentido estrito, pois ela não intencionava conquistar conhecimento como uma proeza pessoal, mas simplesmente preencher a vida com uma ação ardente, a qual se materializaria através do conhecimento que seria provido através de um marido erudito como Casaubon. Com enorme satisfação, Dorothea entregava-se ao matrimônio, consciente da posição inferior que "naturalmente" lhe cabia, buscando como objetivo maior atingir a renúncia plena para melhor satisfazer a seu marido. Trata-se de uma personagem fabulosa, ainda que desperte sentimentos bastantes contraditórios.

Para finalmente concluir, retomo o início deste post: o primeiro power couple de nossa história lamentavelmente não nasce do amor, mas de mera conveniência imaturamente deturpada. Acontece nas melhores/piores famílias.

* <PAUSA>
Olha, nem vou tentar disfarçar: parte das ótimas piadas, na minha opinião, vieram das reações das personagens ao descrever o pobre Mr. Casaubon — não espanta, portanto, que o narrador tenha reservado alguns parágrafos para defendê-lo, coitado.

Uma personagem, quando soube da novidade matrimonial, mandou esta: 
"Good God! It is horrible! He is no better than a mummy!"

Enquanto outra o descreveu do seguinte modo: "(...) he looks like a death's head skinned over for the ocasion."

É, beleza não era o forte de Mr. Casaubon.
<FIM DA PAUSA>

Celia indiscutivelmente amava e respeitava a irmã, contudo, dado que representava o lado mais, digamos, sensato e ponderado da dupla fraterna (e não compartilhando o mesmo ardor religioso), ela acabava por observar as decisões de Dodo com censura e incredulidade que mal conseguia disfarçar. As duas irmãs, opostas em quase 180 graus, estabelecem uma dinâmica que gera boas risadas. Celia tinha dificuldade em entender como Dorothea poderia, de bom grado, casar-se com um velho tão feio e que só queria saber de estudar, ainda mais quando um bonitão mais jovem estava no páreo, o Mr. James Chettam. Ela considerava o projeto todo completamente embaraçoso e ridículo. Aproveitando que A Bela e a Fera anda novamente na moda (por conta do live-action prestes a estrear nos cinemas), calha registrar que Celia deve achar a moral desse conto de fadas uma enorme lorota:
"Oh, Mrs. Cadwallader, I don't think it can be nice to marry with a gret soul."
Além disso, é pertinente acrescentar que foi Celia quem nos chamou atenção - e à Dodo - para certas peculiaridades do Mr. Casaubon: 1. ele pisca quando fala, 2. faz barulho ao tomar sopa e 3. tem duas verrugas cabeludas na cara. Tão lindo e charmoso!


✒ Como o disse-me-disse era o hobby predileto dos middlemarchers, claro que houve muito mexerico a respeito do casamento entre o bizarro casal Miss Brooke e Mr. Casaubon, o qual era incrementado pelo clichê infalível do "triângulo amoroso", tendo em vista que Chettam (o jovem bonitão) foi espicaçado assombrosamente pela "maluca" Dorothea. 

Acompanhando o papo-furado trocado entre os middlemarchers sobre esse "romântico" imbróglio (nossa, usei muitas aspas. perdão), é possível começar a delinear bem quais posições estavam reservadas a homens e mulheres no matrimônio, e como cada sexo era classificado por aqueles pares. Pontuando algumas ponderações que surgiram a esse respeito:

*1.
 (sobre o risco de Dodo tender a predominar na relação) "um homem sempre podia pôr por terra, quando o desejasse."

Ou como recomenda o tio de Dorothea a Casaubon: "Agora, Casaubon, ela estará em suas mãos: convém que ensine minha sobrinha a encarar as coisas com mais serenidade, (...)".

Temos aí o consagrado "dar um jeito na mulher". Vem de longa data, hein?

*2.
Talvez não houvesse razão para supor que Dodo intimidaria os pretendentes, pois "A cabeça de um homem - o que disso existe - sempre tem a vantagem de ser masculina (...) e até mesmo sua ignorância é de superior qualidade."  Estão pensando o quê? O homem, até quando burro, detém uma burrice superior à da mulher!

*3.
 Dorothea era peculiar, já que "(...) este amor do conhecimento, este interessar-se por tudo (...) não costuma ocorrer na linha feminina, a não ser que corra subterraneamente (...) para aparecer nos filhos." Mulheres normalmente não queriam saber de aprender coisa alguma, ué.

*4.
Mas Dorothea segue sendo peculiar, uma vez que "(...) esses estudos tão aprofundados, os clássicos, a matemática, esse tipo de coisa, forçam muito as mulheres (...). Na mente feminina há porém um quê de leveza, (...) a música, as belas-artes (...) elas deveriam estudar até um certo ponto, (...) mas de leve." Na província do século XIX, portanto, a mulher podia, e devia até, estudar, mas só um pouquinho. Bastava incluir as artes para prática no ambiente doméstico. Nada de assuntos complicados, pois o sexo feminino não nasceu para isso.

"What did missy want with more books? What must you be bringing her more books for?"

*5.
Mulheres também não deveriam se meter com política, ora essa!
"Não me disponho a discutir política com uma senhora. (...) Em seu sexo não há pensadores, sabe (...)."

*6.
O que o sexo feminino tinha a oferecer em um casamento, era isto:
 "O grande encanto de seu sexo é esta capacidade de uma ardente afeição de quem se auto-sacrifica, na qual vemos sua adequação para coroar e completar a existência do nosso."

"(...) uma afeição ardente e submissa que prometia corresponder às suas mais agradáveis previsões de casamento."

7.
A ordem natural das coisas era a seguinte: "(...) a noiva deve ir ver sua futura casa e ordenar as eventuais mudanças que gostaria de fazer. A mulher ordena antes do casamento a fim de que, depois, possa ter um desejo de submissão." 

*8.
 O tio de Dodo tenta alertar a sobrinha da realidade matrimonial: "um marido gosta de ser o mestre." Quem manda é o homem.

9.
Quanto ao preparo da mulher para o casamento: "(...) você precisa saber compreender os rapazes. (...) Uma mulher deve aprender a não ligar para coisas de somenos. Algum dia você estará casada.

*10.
Mr. Casaubon entra naquela de casamento com objetivos bastante virtuosos: "já estava na hora de ornamentar sua vida com as graças da companhia feminina (...) e de garantir-se, ao culminar nesta idade, o refrigério do desvelo feminino em seus anos de declínio." Alguém teria de cuidar do velhinho, ora.

*11.
O que certos homens andavam pensando ou falando acerca de Dodo e mulheres em geral:
"É uma boa criatura, mas um pouco séria demais. É um problema conversas com tais mulheres. Estão sempre procurando razões, no entanto são muito ignorantes para compreender os méritos de qualquer questão, e geralmente recorrem a seu sentido moral para resolver as coisas de acordo com seu próprio gosto."
...
"- Bela mulher, Miss Brooke!
- É, mas não é meu tipo: gosto da mulher que se exibe um pouco mais para agradar a gente. é preciso que haja na mulher um pouco de filigrana - alguma coisa da coquete. O homem gosta de uma espécie de desafio. Quanto mais ela o deixar acuado, melhor.
- Há certa verdade nisto e, por Deus, é geralmente por aí que elas vão. (...) Foi a Providência que as fez assim, não é (...)?
- (...) Antes, inclinar-me-ia a vinculá-la ao diabo.
- Ah, sem dúvida, numa mulher é preciso que haja um diabinho."

Muito bem, parece que, às mulheres, restava apenas o papel de lindos bibelozinhos mudos enviados pelo satanás para agradar os homens. Legal, não é? Eu achei.

(* = Tratam-se de pensamentos ou opiniões manifestadas por personagens masculinas.)


✒ Eliot igualmente comprova sua apurada capacidade de observação das figuras de sua sociedade ao expor, com alguma sutileza, como o sexo masculino conseguia ser estupidamente vaidoso.  Basta que mulheres demonstrem o mínimo interesse, para que eles já se derretam em fácil ternura. De outro modo, o narrador também não vacila ao nos indicar que Chettam, o jovem bonitão rejeitado por Dorothea, não sentiu-se humilhado com a intensidade esperada, uma vez que havia sido trocado por um vovô horroroso. Ao contrário, Chettam foi capaz de exibir até compaixão por Dorothea.

Antes que o bonitão conseguisse tirar algum sentido completo daquela situação, porém, ele procura o auxílio do reitor Mr. Cadwallader, o qual profere uma das falas mais divertidas e pertinentes do livro, a qual desnuda a parvoíce do "complexo de pavão" dos homens:
"Não entendo vocês, os rapazes bonitos que acham que tudo no mundo tem de ser de seu jeito! Vocês não compreendem as mulheres. Elas não os admiram nem a metade do que vocês mesmos se admiram."
Adorei demais. E esse Mr. Cadwallader parece ser uma figura legal, pois considero admirável alguém que, como descrito no livro, é capaz de enxergar piada em qualquer sátira dita a seu próprio respeito.

Sem desperdiçar a oportunidade, registro breves comentários sobre a digníssima Mrs. Cadwallader, esposa do reitor. Essa daí renderia uma postagem apenas para ela, sendo sincera. Onde quer que haja confusão em Middlemarch, creio que posso ter certeza de que lá encontrarei Mrs. Cadwallader metendo seu (conservador) bedelho, pois assim explica o narrador:
"Ela era o diplomata de Tipton e Freshitt, e tudo o que acontecesse sem sua participação, era uma irregularidade ofensiva."
Curiosamente, o narrador deu-se o trabalho de também defendê-la perante o leitor, explicando que as alcovitices da Mrs. Cadwallader eram, de certo modo, naturalmente esperadas diante daquela vida rural simples. Somos alertados de que não há más intenções no comportamento da diplomata de Middlemarch.


✒ Como já escrevi demais,  finalizo somente registrando um grupo de personagens promissoras para as cenas dos próximos capítulos:
1. Mr. Will Ladislaw: um jovem primo de terceiro (acho) grau do Mr. Casaubon. Esse parece que vai dar trabalho, sendo descrita a abobrinha de que ele se considerava um Pegasus (!) capaz de ser maculado pelo trabalho. Ele pretendia sair viajando pelo mundo - patrocínio do primo vovô -, para "se encontrar" ou coisa parecida. Impressionada por saber que esses tipos já existiam no século XIX. E ainda tem uma história mal explicada de que ele era neto da tia de Casaubon, que fizera um ~mau casamento~. Achei essa informação suspeita.

2. Mr. Lydgate: um novo médico, jovem e ambicioso, algo filantropo, que recentemente chegava a Middlemarch - e já se engraçando por uma mocinha famosa.

3. Galera do segundo e terceiro núcleo familiar (além dos Brooke), os quais apareceram nos últimos capítulos: The Vincys e The Featherstones. Especial atenção para os filhos de Mr. Vincy (que era o novo prefeito manufatureiro de Middlemarch):

Rosamond Vincy - curiosa para acompanhar o desenvolvimento dessa personagem, pois suspeito de que ela fará outro contraponto (além de Celia Brooke) interessante à Dorothea Brooke. 

Fred Vincy - um palermão preguiçoso que andava metido com jogatina. E ele até que manda umas tiradas engraçadas. Por exemplo:
"I beg your pardon: correct English is the slang of prigs who write history and essays. And the strongest slang of all is the slang of poets."
Mary Garth -  se entendi direito (é muita gente, caramba!), é sobrinha de Mr. Featherstone (pela família da primeira esposa), mas estou na dúvida. Ela é outra jovem personagem feminina bastante interessante, trabalhada em certa ironia e cinismo espirituosos. Quero acompanhá-la.

E chega de bobagens, não é?

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