"O estilo moderno de interpretação escava e, ao escavar, destrói; ele cava "por baixo" do texto para encontrar um subtexto que é verdadeiro."
Ressalto que a interpretação à qual Sontag se refere corresponde ao ato mental consciente que utiliza determinado código, determinadas "regras" de interpretação.
(2) Noutra ocasião, o You Tube me sugeriu um vídeo cujo título prometia destrinchar certa obra de arte. Aqui, fui esperta e sequer dei play, no entanto a leitura da chamada permitiu que uma nova imagem apoquentasse meu juízo: a mineradora que cava e revira numa sana destruidora deu lugar ao esquartejador de corpos. Destrinchar uma obra, até prova contrária, me parece picá-la, desfazê-la em mil pedacinhos. [Opa!, não posso perder a referência ao querido Bob Esponja: esse intérprete é o Zé do Picadinho!]
(3) Ainda no You Tube, encontrei esta proposta em Inglês: "Não sei quem breaks down a obra X". Putz, esse phrasal verb permitiu à galera ao menos ser mais explícita: bora tacar logo uma marreta na arte e quebrar essa merda.
[*Sim, percebo agora que bastaria eu sair do You Tube, né? Que tonta.]
(4) Tenho me deparado bastante com este tipo de comentário na internet: "gostei do filme/livro/série, deu para tirar muitas reflexões." Quando leio esse tipo de coisa, embarco na indagação: é isso que faz com que meu encontro com uma obra de arte me proporcione prazer estético? E se, em vez de me impelir à reflexão, a arte silencie meu pensamento e liberte uma avalanche inexplicável de emoções? [↦ err, perdão pela pieguice à la Roberto Carlos, mas, poxa, às vezes não é assim?]
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Estou lendo uma coletânea de breves ensaios escritos por Robert Adams e, num dos textos, o fotógrafo compartilha que o poeta Robert Frost, ao ser compelido a explicar seus poemas, teria retrucado: Você quer que eu o diga de um jeito pior? Concordo demais. Hoje, acredito que explicar, chegar ao cerne, destrinchar, desvendar uma obra de arte significa destruí-la e substituí-la por algo pior. Ainda em Contra a interpretação, Sontag sustenta que o fervor de interpretação não decorre de uma devoção a uma obra de arte problemática, mas de um desprezo pelas aparências, tratando-se de ato reacionário e sufocante que pretende domar a obra que enerva. Tomadas pela insatisfação e exasperação diante da arte, as pessoas se lançam a interpretá-la e, assim, a esvaziam e empobrecem.
Nesse referido ensaio escrito em 1964, Sontag afirma haver arte resistente à interpretação, arte para a qual os intérpretes não ligam e deixam quieto. Não sei qual seria minha opinião em 64, estivesse eu viva para ver, no entanto isso não é válido no momento atual. É curioso, pois Sontag expõe que a horda interpretativa persegue o suposto conteúdo das obras, um alegado sentido verdadeiro. Essa famigerada palavra — Conteúdo — bem serve para meu argumento, pois, para ganhar dinheiro na internet, as pessoas precisam produzir conteúdo, ou seja, precisam interpretar geral. Vivemos uma verdadeira Economia da Interpretação, na qual nenhuma arte está incólume aos intérpretes. Inclusive, quem produz arte quer mais é ser interpretado, pois a interpretação parece ser a principal forma de marketing digital. No post que escrevi sobre a última temporada de Succession, por exemplo, eu já tinha lançado essa premissa (transcrevo): "eu sei, ninguém aguenta mais análises acertadas a respeito de Succession — por sinal, especulo que o atual caminho para uma série de sucesso seja precisamente este: abastecer a internet de muito pano para manga (argh:) conteúdo". Em outras palavras, um aparente caminho para garantir o sucesso de uma obra é justamente criar e escancarar múltiplas brechas para interpretação. [*Aquele lá que iria "break down" a obra, por exemplo, era ninguém menos que o próprio diretor do filme.]
À primeira vista, pode parecer que esse meu papo furado conceals something dirtier and meaner (rs), digo, pode parecer que assumo o posto de anti-intelectual, porém estou certa de que não se trata disso, e algumas leituras recentes me ajudam a construir minha defesa. Sontag, é lógico, ilumina meu imbróglio naquele ensaio, pois o que ela defende é 1. o abandono da interpretação sufocante em prol de nossa energia e capacidade sensual; 2. o regresso à linguagem a respeito da forma* e 3. uma volta à vivência imediata da arte no presente, apreciando-a/usufruindo-a/contemplando-a em sua superfície sensual, sem nela se perder. [*: essa abordagem praticamente inexiste na internet.]
No livro Universos da Arte, Fayga Ostrower estabelece uma distinção entre a explicação e a apreciação de uma obra de arte. A apreciação, nos termos de Ostrower, não é uma análise (a qual trata objetivamente da forma), mas uma síntese, a qual corresponde a um processo de integração que engloba todos os atos de compreensão e de percepção. Na apreciação de uma obra, em contrapartida à mera explicação, embarca-se num ato de compreensão onde tudo que temos em termos afetivos, intelectuais, conscientes e inconscientes, associações, emoções, pensamentos, tudo isso se integra num conjunto de noções que se qualificam mutuamente. Assim, quando se aprecia uma obra de arte, buscando compreendê-la nesses termos amplos, a destruição própria da interpretação reacionária dá lugar à criação de um novo conhecimento, nosso e também sobre nós. Pronto, é isso que prefiro.
Para encerrar minha lamúria, escolho parafrasear/adaptar um trecho do livro Demian, de Herman Hesse, que, embora refira-se à contemplação das formas da natureza, parece-me resumir bem o que sinto sobre a situação compartilhada por Pizarnik e a encrenca Explicar X Contemplar/Apreciar Arte. Por sinal, este trecho de Demian mostra-se bastante imbuído da essência contida naquela proposição de Ostrower, acho. E toda esta minha lorota serve para registrar que, entre o movimento "A gente te explica" e o "A gente contempla", não me resta dúvidas sobre qual escolher, na medida em que um destrói, enquanto o outro cria.
[**Abaixo, as palavras em vermelho são aquelas que substituí, portanto ausentes no texto original de Hesse. Tradução: Ivo Barroso.]
"(...) contemplar a arte não como observadora que investiga, mas abandonando-me ao seu encanto peculiar, à sua profunda e complexa linguagem. (...) A contemplação das formas na arte despertam em nós um sentimento de consciência do nosso interior com a vontade que as fez nascer e acabam por parecer-nos criações próprias (...) Nenhuma outra prática nos revela tão singelamente quanto esta até que ponto também somos criadores e como nossa alma participa sempre de uma contínua criação do mundo."
P.S. 1: por certo já temos muuuuita coisa criada no mundo, estou ciente; mas a criação da contemplação costuma permanecer no íntimo de cada um, quero dizer, não entulha o mundo externo e visível, uma vez que quase sempre é imaterial.
P.S. 2: essa minha conversinha de movimento "A gente contempla" é um bocado piegas, estou ligada, porém é aquela coisa: entre a pieguice e a canalhice...
P.S. 3: peguei pesado com o canalhice, né? Perdão, mas me vi refém da rima.
P.S. 4.: eita, mas eu disse que a interpretação fajuta destrói a arte substituindo-a por algo pior, ou seja, essa interpretação tacanha também cria, ué. Oxe, me perdi. Ah é, no entanto ela destrói a arte, enquanto a contemplação — que também pode criar algo pior — não destrói nada. Beleza, então pode reconhecer a firma. [Pode reconhecer hoje, pois o amanhã a Deus pertence — e chega de P.S.]