08/10/2015

Angel - Elizabeth Taylor


Esse foi mais um livro sacado dos excelentes catálogos da NYRB e da Virago; embora eu tenha lido a edição brasileira traduzida por Aulyde Soares Rodrigues, publicada em 98 pela editora Mandarim. Agrupei acima imagens das múltiplas capas disponíveis no mercado para ressalvar que a disparidade preliminarmente confusa que despertam resta completamente dissipada após a leitura do livro que, de fato, é bem peculiar (no muito bom sentido, adianto).


De antemão, seguem duas notas relevantes sobre a obra:

1. essa  Elizabeth Taylor não é a famosa atriz dos olhos violetas; mas sim a escritora britânica homônima que publicara entre as décadas de 40 e 70. Angel, especificamente, foi publicado em 1957;

2. ao contrário do que o título e a capa brasileira (em especial) sugerem, também não se trata de um daqueles ~romanções~ de banca. Ou se trata-? Bem, eis aí uma interessante questão, a qual retomarei adiante.

Inspirando-se em grande parte na vida de Marie Corelli, famosa romancista inglesa das eras Vitoriana e Eduardiana, Taylor cria a personagem epônima Angélica Deverell; a Angel, cuja trajetória  parece recriar em grande extensão aquela de Corelli.

No início do livro, Angel é uma adolescente de 15 anos que vive sufocada entre dois mundos: de um lado, a pobreza do bairro e casa em que mora com a mãe viúva; do outro, os mistérios sedutores da rica família da Casa Paraíso, de cujas histórias a tia, criada daquela casa, é porta-voz. Aliás, a sombra daquela mansão parece ter-lhe roubado até mesmo o direito a um nome próprio, considerando-se que ela fora batizada de Angélica como uma deturpada homenagem à herdeira homônima da Casa Paraíso.
Como escapismo da realidade considerada degradante, Angel tinha por hábito sonhar acordada, recorrendo a realidades paralelas idealizadas com o glamour digno (na sua concepção) dos muros da Casa Paraíso. Logo no início do livro, ela tem a fascinante ideia, quase uma epifania, de canalizar toda essa imaginação fértil para a escrita de um livro que, ainda em sua fantasia, a tornaria rica e famosa. Por mais improvável que isso possa parecer, o fato é que sua artimanha dá certo: ainda adolescente, Angélica Deverell consegue o feito de publicar seu primeiro livro - Lady Irania - o qual torna-se um estrondoso e imediato sucesso, catapultando-a à posição de grande escritora best-seller.

Mediante tal premissa, Elizabeth Taylor explora, em tom muitas vezes cômico e quase de paródia, o mercado editorial dos romances populares do final do século XIX e primeira metade do século XX (então publicados por editoras precursoras da atual Harlequin). Algumas passagens do livro ilustram bem a, digamos, comédia que permeia aquele universo literário*:

Quanto ao perfil da escritora:
"(...) prosa ornamental, com tantos crescendos e aliterações (...), composição era vulgarmente rebuscada (..). a linguagem empolada, a extravagância, extremamente tedioso, (...)"
"- Você lê muito, Angélica?
- Não, eu nunca leio. (...) Não acho interessante."
 "Poderia perfeitamente, ela pensou, imaginar o que acontecia lá dentro, nos bares, no teatro e na prisão. A experiência era um recurso da imaginação, jamais seria, Angel estava certa, tão bela nem tão terrível." (lembrando que ela começa a escrever ainda adolescente, sem nenhuma experiência de vida.)
Quanto aos editores:
"Nós publicamos para eles, infelizmente, para o "exército do ganha-pão", como diz meu sócio. Eles decidem. (...) Para eles, encobrimos o que é real demais, minimizamos o que é por demais vívido e retiramos uma boa parte do que, de acordo com nosso gosto, preferíamos deixar. "
Quanto à dinâmica crítica x leitores x escritores de tais romances:
"Quanto mais os críticos riam, maiores eram as filas nas livrarias para comprar os livros de Angel; a força de seu romantismo capturava as mentes simples; as situações absurdas encantavam os sofisticados; sua indignação fervente quando uma fúria passageira a fazia afastar-se da história, com denúncias e irrelevâncias, levava alguns leitores a uma concordância solene e outros a acessos de riso."
"Seu ressentimento mórbido com a menor crítica era uma carga penosa para a autora de uma obra tão sujeita a constantes zombarias e ofensas. (...) da legião dos que ridicularizavam seus livros, "os macacos confusos", como ela chamava, "aqueles que zombariam de Shakespeare por serem incapazes de escrever outro Hamlet."
 "(...) parte do estado de excitação dentro do qual o livro fora criado parecia saltar das páginas (...) os leitores menos sofisticados eram transportados para muito além da crítica das inexatidões e das improbabilidades."
* Ou seja: Taylor direciona seu olhar ao mercado editorial do início do século XX e ainda acaba acertando, com pequena margem de erro, igualmente o cenário literário atual.
...

Porém, extrapolando ainda mais essa excitante paródia literária, acho que pode-se dizer que a verdadeira essência do livro é mesmo a protagonista que, não à toa, intitula ironicamente a obra, visto que, de angelical, ela não tem nada (adendo: se admitirmos que a capa brasileira não tenta ludibriar o leitor quanto a proposta da obra, mas sim reforçar essa ironia do título; fica mais fácil aceitá-la). Taylor narra toda a vida de Angélica Deverell, uma espécie de anti-heroína tão detestável quanto fascinante, e que efetivamente desperta sentimentos bastante dúbios no leitor. Angel é uma precoce escritora que habita permanentemente, como já mencionado, uma realidade delirante que ela própria cria a fim de satisfazer as necessidades de sua imaginação megalomaníaca e de se proteger das brutalidades reais da vida. Sua personalidade é do tipo tóxica, arrogante, narcisista e histriônica. Esta passagem ilustra bem o efeito que a presença de Angel causava nas pessoas:
"Não estou mais rindo dela (de Angel) (...). Na verdade tenho um pouco de medo. Hermione a imaginava sentada no fundo do mar, fazendo encantamentos, contando os corpos dos afogados. Pediu a uma criada para acender mais velas, pois a sala, de repente, pareceu tristonha. Faltava alegria e ela sentia-se gelada."
Ao mesmo tempo, como não admirar uma mulher confiante e determinada que, com uma inegável dedicação ao seu trabalho, consegue mudar para uma direção muito melhor o rumo de sua própria vida em pleno final de século XIX? 

Voltando à questão inicial desse post: o livro é um romance de banca? Acho que, em consonância com o tom cômico, pode-se dizer que Taylor parece propor um "romance de banca às avessas", no qual a trajetória de uma heroína execrável, mas também admirável, presta-se como metalinguagem crítica para o gênero satirizado.

Através da personagem Angel, a autora também levanta uma série de questões bastante provocativas sobre a relação "escritor x escrita":

      - O tipo de literatura produzida por escritores como Angel é menor? É imprestável e irrelevante?

      - O quanto de Angélica Deverell existe em todo e qualquer escritor? 

      - A escrita é uma arte cujo exercício exige, inevitavelmente, um pouco de paranoia, obsessão,                     excentricidade, vaidade, arrogância, solidão? 

      - E, como o final do livro parece questionar: para o escritor, vale a pena o sacrifício?

Em sentido correlato, a premiada escritora britânica Hilary Mantel, grande admiradora do livro, assim já o descreveu: "Elizabeth Taylor’s tender, funny, exquisitely stylish novel keeps us on Angel’s side, even though we are appalled by her narcissism and shocked into laughter by her self-delusion. She is a monster, but a delicious monster, and the novel poses, for writers, questions that don’t date. That’s why I’m so drawn to the book and have loved it for years; there’s a bit of Angel in every writer, I fear."  

Enfim, foi um livro que me surpreendeu muito positivamente, gostei demais. 
...

Em 2007, a obra foi adaptada para o cinema por François Ozon, mas creio que nem o Fassbender fez compensar o tempo que despendi assistindo ao filme. Achei o roteiro péssimo, a atuação da Romola ficou bem pouco convincente (para quem leu o livro, pelo menos) e, de modo indefensável, o filme é inegavelmente chato. ¯\_(ツ)_/¯

Segue o trailer:

14/09/2015

Lolly Willowes (Sylvia Warner) & The Vet's Daughter (Barbara Comyns)



Descobri esses títulos através da NYRB - New York Review Books, editora de cujo catálogo gosto e no qual confio bastante; e, sem que eu tivesse antecipado o íntimo diálogo que travariam, afortunadamente os li em sequencia. Foi possível identificar inúmeras e interessantes semelhanças entre eles, mas também algumas diferenças cruciais.

Tentando traçar um paralelo pontual e sumário, eu mencionaria o seguinte:

  Certa proximidade surge a partir das próprias autoras. Barbara Comyns (1909 - 1992) e Sylvia Townsend Warner (1893 - 1978) são britânicas, e acho que não seria extrapolação considerá-las relativamente contemporâneas entre si. Pelo pouco que consegui descobrir,  as duas escritoras parecem ter sido mulheres fascinantes. 

  Quanto à narrativa, alguns elementos:
> A vida das duas protagonistas caracteriza-se por certas circunstâncias que, em suas bases e essências, podem ser consideradas algo próximas:

  The Vet's Daughter: Alice vive sob a sombra de um pai que aparece como figura masculina extremamente violenta, autoritária, fria e amedrontadora. A mãe, mera empregada dentro de sua própria casa, chega a confessar-lhe que o marido casou-se com ela simplesmente pelo dinheiro. As duas vivem em permanente clima de terror e medo, o qual Barbara Comyns constrói em sua prosa de modo bastante singular. O livro lembra uma espécie de conto de fadas gótico, no qual o trabalho do pai como veterinário — a casa da família apresenta-se com caveiras de macacos, cachorros deformados, um papagaio que ri nas situações mais inapropriadas  —contribui para criar uma atmosfera meio ~David Lynchiana~ (existe isso?). Não sei apontar exatamente o segredo, mas o fato é que lê-se o livro com a certeza constante de que uma merda enorme vai acontecer na próxima virada de página. 


  Lolly Willowes: Quando o pai falece, o irmão de Laura - um advogado casado, conservador, religioso, pai de família - faz com que ela abandone a vida plenamente realizada que levava no interior para ir morar com sua família em Londres - afinal, como poderia uma digníssima representante dos Willowes viver solteira e sozinha em uma casa do interior? Fora de qualquer cogitação. Laura passa a viver em um ambiente sufocante, no qual tentam casá-la a todo custo, mas sem sucesso. Ela vê-se obrigada a se adaptar a uma rotina que não lhe pertence e a aceitar resignadamente a violência contra sua liberdade e individualidade: ela não é mais a Laura Willowes, mas sim a Tia Lolly, um mero agregado familiar acolhido no puxadinho da casa. 

No decorrer de ambas as narrativas, elementos mágicos e sobrenaturais surgem nas vidas das duas personagens. Observando algumas opções de capas desses livros, é possível inferir de quais fenômenos estou falando:

   (RESPOSTA: bruxaria, pacto com o diabo - gato como mensageiro - / levitação)

> E é a partir desse ponto que os livros se distanciam de modo bastante relevante.

Laura não se assusta com a novidade sobrenatural. Ela mostra-se capaz de acolher aquele elemento mágico como algo que a distingue de modo especial; algo que a fortalece para a retomada das rédeas da própria vida; da sua independência e identidade.

Alice, por sua vez, não sabe lidar com a estranha habilidade. Talvez por ser muita mais nova que Laura — tendo a mente ainda plenamente lapidada pela sociedade/pai quanto ao papel que lhe "cabe" —, ela não consegue enxergar a distinta aptidão como algo positivo ou vantajoso para confrontar quem quer que fosse, nem mesmo o pai. 

Há  uma   frase  de  Alice que   delineia  muito  bem  esse   ponto  em  que  as duas protagonistas se separam por caminhos diferentes (tradução livre minha):
(Alice) "Por favor, Deus, não deixe que isso aconteça comigo. Pai, não me obrigue a fazer isso. Eu não quero ser peculiar e diferente. Eu quero ser uma pessoa ordinária. Eu me caso com Henry Peebles e parto para que nunca mais você tenha que me ver - mas não me obrigue a fazer essa coisa terrível."
Embora não apareça explicitamente no livro de Sylvia Warner, é fácil deduzir, com mínima margem de erro, que Laura Willowes mandaria a seguinte contrapartida:

(Laura):  Eu não quero ser ordinária e normal, eu quero ser peculiar.


  Concluo refletindo a respeito de uma proposta que  pode ser  assimilada a partir dessas leituras: que tal lutarmos contra o patriarcado com uma bruxaria e levitação de cada vez?

17/04/2015

Excellent Women - Barbara Pym

Atraída pela ótima matéria publicada na New Yorker sobre Barbara Pym (Barbara Pym and the New Spinster), providenciei a leitura do Excellent Women para conhecer essa autora e, puxa, que ideia mais acertada. Esse livro é amor; ele é um chá da tarde britânico com biscoitinhos amanteigados num domingo frio e chuvoso.
"PERHAPS there can be too much making of cups of tea (...) Did we really need a cup o tea? (...)

‘Do we need tea?’ she echoed. ‘But Miss Lathbury …’ She sounded puzzled and distressed and I began to realize that my question had struck at something deep and fundamental. It was the kind of question that starts a landslide in the mind. 
I mumbled something about making a joke and that of course one needed tea always, (...)"
Trata-se de um romance de costumes ambientado no londrino período pós-guerra (~50's), narrado pela personagem Mildred Lathbury, uma senhora de trinta anos solteirona, cuja vida alterna-se resumidamente entre o trabalho de meio expediente na Society for the Care of Distressed Gentlewomen (oh, the irony) e as atividades na igreja anglo-católicaComo o título da New Yorker sugere, Pym aborda com bastante ironia e bom humor a condição de Spinster na sociedade inglesa.

Embora Mildred seja a protagonista e a narradora dos eventos, a verdade é que ela é bastante ordinária;  nada fora do trivial acontece na vida dela. Todas as personagens recorrem a Mildred para resolver seus conflitos banais, pois, sendo uma solteirona, é claro que Mildred "não deve ter mais nada pra fazer, mesmo".
"I told myself that, after all, life was like that for most of us—the small unpleasantnesses rather than the great tragedies; the little useless longings rather than the great renunciations and dramatic love affairs of history or fiction."
O revigorante é que Mildred não fica lamuriando-se pelos cantos amaldiçoando a desgraça de sua condição. Embora transpareça certa melancolia e alguma esperança remota de ainda vir a casar-se, ela acaba mostrando-se relativamente bem resolvida com sua solteirice, sendo capaz de fazer piada de si mesma (ainda que autodepreciativas, por vezes) e das "sutis" absurdidades que escuta sobre sua situação. Ao contrário do que talvez fosse justo supor, Mildred não inflige-se nenhuma crise existencial; mas apenas toca sua vida simples marcada por refeições solitárias (as quais são um pouco deprimentes, talvez), chás, costura, livros de receitas, compras de flores, atividades da paróquia e serviços domésticos.
"Then I went back to my flat and collected a great deal of washing to do. It was depressing the way the same old things turned up every week. Just the kind of underclothes a person like me might wear, I thought dejectedly, so there is no need to describe them."
O título do livro, o qual surge repetidamente em tom irônico ao longo do texto, corresponde à expressão habitualmente utilizada para referir-se às solteiras - ~ mulheres excelentes ~ -; uma mera condescendência preconceituosa travestida de elogio. 
"But my dear Mildred, you mustn’t marry, (...) I always think of you as being so very balanced and sensible, such an excellent woman. I do hope you’re not thinking of getting married?’ 
He stared across the table at me, his eyes and mouth round and serious with alarm. I began to laugh (...)"
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‘It’s not natural for a woman to live alone, without a husband.’  
‘No, perhaps not, but many women do and some have no choice in the matter.’ 
‘No choice!’ Mrs. Morris’s scornful laugh rang out. ‘You want to think of yourself a bit more, (...) 
‘Yes, I suppose you’re right,’ I said, smiling, for really she was right. It was not the excellent women who got married but people like Allegra Gray, who was no good at sewing, and Helena Napier, who left all the washing up."
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‘Esther Clovis is certainly a very capable person, ... an excellent woman altogether.’ 
You could consider marrying an excellent woman?’ I asked in amazement. ‘But they are not for marrying. (...) They are for being unmarried, and by that I mean a positive rather than a negative state.’ 
‘Poor things, aren’t they allowed to have the normal feelings, then?’ 
‘Oh, yes, but nothing can be done about them.’
Ainda que brevemente, a narrativa de Pym também explora a solteirice masculina, demonstrando que as coisas eram igualmente difíceis para os homens, embora o tratamento fosse um pouco diferente. Há o sujeito solteiro visto como um excêntrico anormal, assim como o pastor que sofre pressão das beatas carolas para preservar a solteirice.
‘He isn’t married then? One of those … I mean,’ she added apologetically as if she had said something that might offend me, ‘One of the kind who don’t marry?’ 
‘Well, he isn’t married and as he’s about forty I dare say he won’t now.’
Os diálogos escritos por Pym são fabulosos e muito engraçados. A autora teve a manha de colocar Mildred interagindo com um casal em que a esposa é uma antropologista e o marido um oficial da marinha envolvido nas atividades do WREN - Women's Royal Naval Service  (mulheres da marinha britânica) — e, claro, as realidades díspares renderam situações completamente hilárias.
‘My son is at a meeting of the Prehistoric Society,’ said the voice.

‘Oh, I see. I’m so sorry to have bothered you,’ I said. (...)

Everard Bone was at a meeting of the Prehistoric Society. It sounded like a joke."
A rotina de Mildred na paróquia também contribui com cenas e conversas pitorescas, retratando as peculiaridades das interações sociais nessa comunidade.
"My thoughts went round and round and it occurred to me that if I ever wrote a novel it would be of the ‘stream of consciousness’ type and deal with an hour in the life of a woman at the sink." 
É mais um livrinho que ganha trilha sonora: Joan Jett and the Blackhearts, "Spinster". O título torna a escolha preguiçosa e a harmonização com o livro não é exatamente perfeita (a urgência da Joan não bate), mas acho que o sentimento ao término da leitura permite um sing-along ainda mais assertivo da música.