28/03/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #06

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Tomo 2 - Terceira Parte


Sim, mas vamos com calma, pois é possível ~problematizar~ esse "romance". Primeiramente, há a óbvia e relevante diferença de idade: ele com 31 na cara, ela com apenas 16. Acho bem complicado, sobretudo se considerarmos outra clara diferença: a de personalidade, agravada pelo fato de que ambos preferem ignorá-la (eles mal se conhecem, na realidade). Depois, se retomarmos o discursinho aconselhador sobre casamentos que Andrei oferecera a Pierre no início do livro, é possível perceber que o príncipe parece estar cometendo o mesmo "erro" pela segunda vez e, pior,  pouquíssimo tempo após a morte da esposa. Se juntarmos ainda as pistas que Tolstói está oferecendo (respectivos pais inseguros ou contrários, Andrei já assustado "perante a devoção e confiança" de Natacha, com "pena da fraqueza feminina e infantil"), cabe a suspeita de que logo teremos mais uma "família infeliz à sua maneira". Ou não? Vamos acompanhar.


↪ A personagem Rússia, por sua vez, mal conseguiu se safar com uma acordo de paz e já decidiu que era a vez dela de brincar de reformas internas liberais de naturezas diversas: políticas, administrativas, legais, militares... Preparando a pipoca para acompanhar o desenrolar dos fatos.
"...dois decretos famosos, que abalaram a sociedade, sobre a eliminação de cargos da corte e sobre a realização de concursos para preencher os cargos de assessor colegiado e conselheiro de Estado. (...) uma nova Constituição do estado, que devia transformar toda a ordem judiciária, administrativa e financeira vigente na Rússia (...) estavam se cumprindo e tomando corpo os vagos sonhos liberais com que o imperador Alexandre subira ao trono (...)"

↪ A Natacha e os cargos nas comissões legisladora e do estatuto militar conseguiram, ainda que momentaneamente, retirar Andrei da crise existencial; mas o pobre Pierre continua mais perdido do que nunca: cedeu às pressões e reconciliou-se com a esposa (ainda que seja um matrimônio de fachada) e segue travando uma árdua luta interna para conseguir seguir os preceitos e objetivos maçons. De modo semelhante ao que ocorrera com Rostóv no exército, Pierre também parece ser confrontado pelas contradições que gradativamente constata na Maçonaria e em seus membros. Mudam-se as instituições, porém paradoxos similares se repetem.


↪ Converti-me recentemente ao Bokononismo, mas isso não impediu que eu admirasse imensamente estas observações do maçom Ióssif Alekséievitch:
"Qual dos três objetivos era o primeiro e o mais importante? A regeneração e a purificação de si mesmo, é claro (...) é esse objetivo que exige de nós os maiores esforços, e por isso, iludidos pelo orgulho, deixamos de lado esse objetivo e nos ocupamos ou do mistério, que não somos dignos de compreender por causa da nossa impureza, ou nos ocupamos da regeneração da espécie humana, quando nós mesmos somos um exemplo de indecência e depravação."

↪ Esta parte da obra, particularmente, me fez refletir que Tolstói parece delinear quase um tratado sobre a relação da sociedade russa com a beleza e a feiura, aspectos recorrentemente explicitados e explorados a respeito das personagens. Naquela época -- ora, ainda hoje --, o aspecto físico das pessoas era crucial para determinar o sucesso ou a derrota do indivíduo na sociedade. A beleza, ou a falta dela, era elemento decisivo (por vezes, o único) no julgamento de caráter que as pessoas estabeleciam entre si.

Outro aspecto que repercutia no desempenho social de um russo -- Tolstói já havia sugerido em partes anteriores e novamente o retomou aqui --, é a arte de saber relacionar-se com as pessoas certas.
"(...) é necessário travar conhecimento com pessoas de posição mais elevada do que eles, pois só nesse caso existe alguma satisfação em travar conhecimentos. (Berg:) - A gente pode imitar alguma coisa, pode pedir alguma coisa. Veja só como eu progredi, desde os postos mais baixos."
Ou seja, o retrato que Tolstói segue construindo é o de uma sociedade russa extremamente frágil, fútil, mesquinha e superficial.

E, na realidade criada pelo autor, aqueles indivíduos que, em algum momento, constatam essa verdade desalentadora (Andrei, Pierre, Nikolai...), terminam sucumbindo à vibe "Hello Darkness, my old friend..."


↪ O trecho em que Tolstói descreve a interação entre Vera e Berg demonstra muitas questões que o autor exploraria em Anna Karenina. Foi uma leitura muito interessante. Olha só o que parece ser o embrião do futuro famoso parágrafo inicial:
"(...) tudo era absolutamente igual à casa dos outros."

↪ Não é com pouco vergonha que sinto a obrigação de assumir que, até aqui, tenho me identificado mais do que gostaria com Andrei - ele é um poço de contradições, falhas, inseguranças... Sem qualquer originalidade, portanto, ele segue sendo meu personagem preferido (com pequena vantagem, é verdade).


↪ Também como bokononista, cabe a confissão de que o discurso religioso da Mária causa-me uma canseira danada*, mas achei esta passagem extremamente relevante:
"Mária (...) se admirava com a miopia das pessoas, que procuravam aqui na terra o prazer e a felicidade; trabalhavam, sofriam, lutavam e faziam mal umas às outras para alcançar aquela felicidade impossível, ilusória, viciosa."
(* o que é meio desconfortável, pois suponho que as reflexões dela reflitam muito como pensava o próprio Tolstói.)

↪ Essa parte inspirou várias ideias de trilha sonora, mas acabei ficando com a Ella Fitzgerald, pois o Andrei e a Natacha conseguiram me deixar com muita vontade de me sentir perdidamente apaixonada. ◖(ღ˘⌣˘ღ)◗♫・*:。:* (pensando bem... nope, melhor bater na madeira.)


19/03/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #05

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Postagens:

Tomo 2 - Segunda Parte


↪ Esta parte, especialmente, sugeriu muito que a narrativa de Tolstói corresponde extensamente às diferentes versões da "jornada do herói" que Pierre, Andrei e Nikolai terão de atravessar durante aqueles conturbados anos da história russa; simbolizando, cada um, os diferentes aspectos da jornada que o próprio país também atravessava. [*Considerando-se que ainda faltam mais de 1500 páginas para acabar o livro, obviamente isso é mera hipótese a ser confirmada em definitivo.] Aparentemente, é provável que os três tenham ultrapassado, nestas ultimas páginas, a fase do "Threshold - Começo da transformação". Ou talvez já tenha sido "A Grande Revelação"? Não sei, é necessário continuar a leitura.

 Este momento das jornadas do Pierre e do Andrei lembra bastante, pelo pouco que conheço, a própria história pessoal de Tolstói, que também enfrentou uma crise espiritual semelhante a dessas duas personagens. Sei que o autor, inclusive, compartilhou suas angústias e reflexões filosóficas em livro (Companhia das Letras - Os Últimos Dias.)  
"(Pierre:) O que é ruim? O que é bom? O que se deve amar, e o que se deve odiar? Para que se deve viver e o que eu sou? O que é a vida, o que é a morte? Que força governa tudo? (...) Você vai morrer e tudo vai terminar. Você vai morrer e vai ficar sabendo de tudo...ou vai parar de perguntar."
Por enquanto, Pierre parece ter encontrado um alívio para a alma mediante a maçonaria, enquanto Andrei (♥) resiste parcialmente às investidas solidárias do amigo, ainda encontrando alguma espécie de alento no ceticismo e na solidão.

(Tá vendo, Jon Snow? Aos olhos de Tolstói, o senhor é um sábio!)


 Já a jornada do Nikolai... QUE JORNADA!! Amando demais. Está sendo delicioso acompanhar os sonhos e as ilusões de adolescente do bom rapaz sendo destruídos gradativamente (eu bem que tinha previsto que o tombo dele seria feio). Dá um pouco de pena, claro, mas acho que todo mundo passa por isso, em menor ou maior grau.

Nesta parte, o jovem tenente passou por grandes contragostos que certamente fizeram-no questionar, ainda que inconscientemente, o sentido de toda aquela merda. Concateno o que ele deve ter pensado consigo mesmo:
- Meu major toma parte das provisões de alimentos do outro regimento simplesmente para que seus soldados não morressem de fome e é punido severamente por roubo, sem qualquer constrangimento ou atenuante? 
- É assim que meu país está cuidando de seus soldados feridos?! 
- É assim que meu amigo de infância, agora que conseguiu chegar ao alto escalão, me trata?! Com desdém mal disfarçado? 
- Meu soberano, que eu tanto amo - tão perfeito e magnânimo, disse que não pode fazer nada por Deníssov, que "a lei é mais forte do que eu"?! 
- Meu querido amigo está padecendo em um hospital putrefato, acusado de roubo apenas por alimentar seus soldados, enquanto os imperadores decidem condecorar o primeiro Zé Mané que apareceu em suas frentes? 
- Soldados morreram em batalha, muitos passaram e ainda passam fome e frio, enquanto outros ainda agonizam em hospitais que mais parecem abatedouros... e agora esses dois imperadores decidem que foi tudo um mal entendido, começar um bromance?!
"(Nikolai:) - Como vocês podem julgar os atos do soberano, que direito nós temos de entender?! (...) Nós não somos funcionários diplomáticos, somos soldados e mais nada. Eles nos mandam morrer, e nós morremos. Se nos castigam, quer dizer que somos culpados; não cabe a nós julgar nada. Se convém ao soberano reconhecer Bonaparte como imperador e selar um acordo de paz com ele, quer dizer que isso é necessário. Se nós começarmos a querer julgar e discutir tudo, aí não vai restar mais nada de sagrado."

E daí, claro, ele foi encher a cara com bebida. ¯\_(ツ)_/¯

Aos poucos, Nikolai, você parece estar captando o espírito de como as coisas realmente funcionam neste mundo. Vai doer, não vou mentir, mas vai ficar tudo bem no final. Quero dizer, espero que sim. Vai, Tolstói?

08/03/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #04

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Tomo 2 - Primeira Parte

↪ - Deníssov, você poderia me ensinar a dançar a mazurca polonesa? (mas, por favor, esteja sóbrio durante as aulas, ok?)



Nesta parte, Tolstói (1) confirmou uma prévia impressão minha e (2) respondeu a duas perguntas que fiz na DL anterior:

DL #03"Vale mencionar as pistas dadas por Tolstói, na forma dos maus presságios do Pierre, de que esse casamento vai dar em muita merda. Vamos acompanhar." 

RESP.: Nem precisei acompanhar durante muitas páginas: Pierre tornou-se ciente da "franqueza e brutalidade dos pensamentos e da vulgaridade das expressões" de Hélène, que o traiu com Dólokhov (se entendi direito, a traição começou já no noivado). O casamento não durou nem um ano.

❥ DL #03: "Questão a ser esclarecida: quais são os verdadeiros sentimentos de Hélène nessa história toda? Ela opera na mesma sintonia do pai ou foi obrigada? Apaixonou-se genuinamente por Pierre...?"

RESP.: É, ela só queria saber da grana, mesmo. Aparentemente, ela é a versão de saia do irmãozinho Anatole.
(Hélène para Pierre) "(...) o senhor é um tolo, mas disso todos já sabiam. (...) é raro achar uma mulher com um marido como o senhor que não arranje amantes, mas eu não fiz isso (...) Eu me separo, estou às suas ordens, mas só se o senhor me der a fortuna. Separar, olhe só com o que ele quer me meter medo!"
❥ DL#02"(...) só resta comentar algo sobre o Dólokhov, ou melhor, perguntar: quem é, e qual é a dele afinal de contas? Suspeito de que eu deva aguardar grandes feitos dessa figura sobre a qual Tolstói, até aqui, só tem oferecido pequenos lampejos de informação: um rapaz petulante, orgulhoso, inconsequente e ardiloso. Vamos acompanhar o sujeito."

RESP.: Então ele é, essencialmente, um traste filhinho de mamãe e que, nessa parte, aprontou realmente "grandes feitos": teve um caso com a esposa de Pierre, tratou o marido traído com sarcasmo e ironia humilhantes, perdeu embaraçosamente o duelo* proposto por Pierre, constrangeu Sônia com flertes constrangedores e persistentes, ficou emburradinho quando ela recusou sua proposta de casamento e achou-se no direito de descontar a esnobada no suposto amigo Rostóv.   (* - Difícil acreditar que já houve um tempo em que os homens se desafiavam a um duelo. É muita palermice. Na literatura, porém, os duelos são encantadores, não?)

Ah, e, como já sabíamos, ele é amiguinho do Anatole. (não, ainda não engoli o Anatole.)

↪ Os fluxos de consciência do Pierre e do Rostóv são sempre muito interessantes e, às vezes, até engraçados; embora pareça haver uma dicotomia entre ambos: para Pierre, o problema está nele próprio; para Rostóv, o problema são outros.

     Bolsa de Valores de Personagens:
Em alta:                                  Em baixa:
Natacha                                           Dólokhov
Pierre                                                Hélène
Deníssov                                          Rostóv


↪ E tivemos mais algumas passagens que remetem explicitamente à relação entre gerações, que comentei na DL #01:
"Está vendo como é a mocidade, hein, Feoktist? - disse ele. - Riem de nós, os mais velhos."
"No rosto dos jovens, em especial dos militares, havia a expressão de um sentimento de desprezo respeitoso em relação aos velhos, que parecia dizer à velha geração: "Estamos prontos a respeitar e honrar os senhores, mas lembrem-se de que o futuro nos pertence." 
"Natacha (...) percebeu no mesmo instante o estado do irmão. (...), mas estava tão alegre, tão distante do desgosto, da tristeza, das recriminações que ela (como acontece tantas vezes com os jovens) se iludiu voluntariamente."
↪ Reação imediata quando a narrativa afirma que Moscou, naquela época, adorava o imperador Alexandre e daria uma festinha em homenagem ao príncipe Bragation:


Reação final com a explicação das manobras políticas para pôr panos quentes sobre a derrota vergonhosa em Austerlitz - com direito à eleição de bodes expiatórios: o pobre Kutúzov (! - único que previu a decisão equivocada!) e Áustria (que, aliás, devia estar falando o mesmo dos russos):

 CURIOSIDADES:
1. "(...) aquele tal lugar (...)" = prostíbulo.
2. Prato da moda entre os ricos: Sopa de tartaruga com cristas de galo. 

↪ Andrei* vive, e Liza** morre.
*: A entrada triunfal de Andrei, na hora certinha, me fez lembrar muito do Victor Hugo, mestre das aparições oportunas, majestosas e sem qualquer explicação (além de providência divina, claro). Tolstói, pelo menos, faz certa piada com a questão, deixando claro ao leitor que estava ciente de que forçava um pouco a barra na narrativa. 
"É o Andrei!", pensou a princesa Mária. "Não, não pode ser, seria extraordinário demais" (...).
Aliás, quantas páginas a mais teríamos de ter lido, caso o Victor Hugo tivesse escrito o trecho referente à Batalha de Austerlitz? Medo.

**: aquele bigodinho, que insistentemente era destacado sempre que Liza aparecia, era símbolo de alguma coisa? Tenho fortes suspeitas de que Tolstói inspirou-se em alguma conhecida para escrever essa personagem.

04/03/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #03

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Tomo 1 - Terceira Parte



↪ Enquanto a guerra troa no exterior, os russos que ficaram em casa brincam de arranjar casamentos. C'est la vie. Aliás, que brincadeira assustadoramente surreal. Durante essa leitura, foi inevitável questionar se aquilo era mesmo obra de um romancista do século XIX, e não de um surrealista do séc. XX.

↪ Aventura casamenteira 1: Conde* Pierre Bezúkhov x Princesa Hélène.
*(olha, que chique. o mundo dá voltas, não é mesmo?)


Eis que, "de repente", o digníssimo Pierre, até aqui um pária bastardo da sociedade russa, transforma-se no queridinho da high society nacional. O banimento de Petersburgo é esquecido, ele muda-se para a casa do príncipe Vassíli, é nomeado para o cargo de conselheiro de Estado e passa a viver cercado de pessoas que o tratam de maneira carinhosa e amável, dentre as quais temos a própria Anna Pávlovna. "Subitamente", todos estavam, de modo evidente e incontestável, convencidos dos méritos dele (físicos, intelectuais, financeiros, sociais, etc); e todos o amavam, até mesmo (aparentemente) a princesa Hélène.

Pierre, coitado, parece ser mais ingênuo e inexperiente do que eu pensava, pois, além de permitir que o príncipe Vassíli tomasse conta dos negócios e da vida dele, não consegue somar o "1+1" referente à toda aquela transformação:
Abba, por favor, explique para o Pierre o que ele fez para que as pessoas passassem a tratá-lo com tanta gentileza e devoção:


"Money, money, money
Always sunny
In the rich man's world"

Encarando tanta ingenuidade como adversária, o Príncipe Vassíli já entrou na batalha vitorioso: facilmente subjugou Pierre, presa fácil, e, todo trabalhado no mais puro gaslighting, foi lá ele mesmo tratar de oficializar o noivado entre a filha e o novo ricaço. Pierre não teve nenhuma chance.

Questão a ser esclarecida: quais são os verdadeiros sentimentos de Hélène nessa história toda? Ela opera na mesma sintonia do pai ou foi obrigada? Apaixonou-se genuinamente por Pierre (com a forcinha dada pela grana, talvez)? Essa personagem ainda precisa ser melhor delineada pela narrativa, mesmo porque nem Pierre sabe bem quem ela é (até fofocas de incesto entre ela e Anatole são mencionadas - p. 437-8!): 
"Afinal, é preciso avaliá-la e fazer um balanço para mim mesmo: Quem é ela? Eu estava enganado antes, ou me engano agora? Não, ela não é tola; não, ela é uma jovem encantadora!"
Vale mencionar as pistas dadas por Tolstói, na forma dos maus presságios do Pierre, de que esse casamento vai dar em muita merda. Vamos acompanhar.

↪ Aventura casamenteira 2: Príncipe Anatole x Princesa Mária.

Ora, restou claro que o Príncipe Vassíli sabia muito bem que casamentos não se arranjam sozinhos, portanto, se ele ainda tinha pimpolhos solteiros, era preciso atacar a próxima vítima. Aqui, as coisas ficaram surreais ao quadrado; com descrições lamentavelmente constrangedoras envolvendo a pobre Mária: a insistência da narrativa em expor sua feiura, a cunhada e a dama de companhia tentando "arrumá-la" como se ela fosse um produto de loja a satisfazer os gostos de um possível futuro consumidor marido que só tinha olhos para o dinheiro e para a própria dama de companhia dela, os insultos do pai estressado... Quanta humilhação a princesa teve de suportar.

E o que dizer de Anatole; que mal conheço e já desconsidero pacas? Ele não vale a bosta que o cavalo do Napoleão Bonaparte cagava. 
"Anatole (...) encarava toda sua vida como um divertimento ininterrupto que alguém, por algum motivo, tinha a obrigação de providenciar para ele. (...) "Por que não casar, se ela é tão rica? Isso nunca atrapalha."
(...)
"(Mária) viu Anatole, que abraçava a francesinha e lhe sussurrava alguma coisa. (...) Anatole virou os olhos para a princesa Mária e, no primeiro momento, não soltou a cintura de Mlle. Bourienne, que não a via. (...) Mlle. soltou um grito e fugiu, enquanto Anatole, com um sorriso alegre, saudou a princesa Mária com uma reverência, como se a convidasse a rir daquele caso estranho e, após encolher os ombros, seguiu para a porta que dava para os seus aposentos."
(A petulância, a afronta, o disparate, a pachorra.... ARGH!!! Já torcendo pela morte desse desgraçado.)

Mas voltando à Mária: sério mesmo que a inocente vai querer dar uma de casamenteira para cima do Anatole e da Bourienne? Puxa vida, hein. (- Mária, colega, tome juízo.) Mas, para ser bem honesta, ela ainda conseguiu me surpreender positivamente com tal decisão (juro!), pois eu tinha me preparado para o pior: ela aceitaria um casamento de fachada com Anatole, sacrificando-se em nome da "felicidade" entre ele e a Bourienne. Ou seja, no fim das contas, até saí no lucro com a Mária.

Ah, e em nota mais pessoal: o comportamento do Príncipe Nikolai Bolkónski fez com que eu me lembrasse do bordão do meu falecido querido avô (uma piadinha interna familiar): "Sou um homem nervoso!"  Achei mesmo que o príncipe fosse morrer de desgosto e ultraje. (Caso tivesse ocorrido, não o teria julgado.)

↪ No fim das contas, esses causos maritais trouxeram algumas peças perdidas do quebra-cabeça relacionado ao casamento de Andrei Bolkónski e Liza. Pierre levou apenas um mísero mês para casar-se com Hélène, enquanto Anatole invade a casa de uma mina que nunca vira na vida com a firme intenção de pedi-la em casamento. Que loucura. Ou seja, é possível que a história pessoal de Andrei não tenha sido muito diferente.

P.S.: Tolstói também respondeu à minha pergunta prévia (p. 549): sim, houve um tempo em que Andrei Bolkonski amou sua esposa.

Depois de todo esse surrealismo, o leitor passa a vomitar arco-íris com a reação fofa da família Rostóv recebendo a cartinha do filhote soldado. Aliás, as famílias Kuráguin e Róstov parecem ocupar polos antagônicos no romance, não? O que uma tem de escrota, a outra tem de singeleza. Vamos acompanhar se isso continuará.

Nicolai Róstov, quem diria, acabou sendo promovido a oficial do exército. E Tolstói, mais uma vez, demonstra toda a inexperiência, inocência e imaturidade do mancebo: ele recusa o valioso "QI - quem-indica" que a família havia arrumado (p. 503), julga o colega que preferiu permanecer calado diante dos impropérios do grão-príncipe (p.505), encanta-se embaraçosamente pelo soberano e dá uma bela cortada no Andrei que, por sua vez, recepciona com estilo (p. 508):
"- (...) mas as nossas histórias, as histórias de quem esteve lá, sob o fogo do inimigo, as nossas histórias têm peso, não são como as histórias desses sujeitos do estado-maior, que recebem condecorações sem fazer nada."
 "- Pois vou lhe dizer uma coisa - interrompeu-o o príncipe Andrei, com uma autoridade calma na voz. - O senhor quis me ofender, mas estou pronto para concordar com o senhor que isso é muito fácil de fazer, se o senhor não tiver suficiente respeito por si mesmo; porém reconheça que a hora e a luta são muito impróprios para tais insultos. Mais dia, menos dia, todos nós teremos de travar um grande duelo mais sério, (...) e meu conselho, como um homem mais velho que o senhor, é deixar este assunto sem nenhuma consequência."

O senhor Bóris, na contramão do amigo, mostra ser um rapaz bem mais pragmático; sabendo aproveitar espertamente a forcinha que Andrei propõe-se a lhe dar. A mãe parece ter ensinado direitinho.

↪ Que tal mais uma rodada de "momentos de sabedoria" a respeito das mulheres no século XIX? Vamos conferir:
"- Não me leve a mal se me prevaleço dos direitos de velha. - Calou-se por um momento, como as mulheres sempre se calam, à espera de alguma coisa, depois que falam da sua idade." 
"(...) ele estava casado, (...) na condição de feliz proprietário de uma linda esposa." 
sobre Lise grávida: "Naquela indumentária, (...) notava-se ainda mais como ela havia ficado feia." 
"Mária era tão feia, que nenhuma das duas poderia vê-la como uma rival; por isso elas se incumbiram do seu vestiário com uma sinceridade total, e com aquela certeza ingênua e firme das mulheres de que a roupa pode tornar um rosto bonito." 
Nicolai Bolkónski sobre a filha: "E quem vai casar com ela por amor? É feia, desajeitada. Vão casar por interesse, pela riqueza. E as solteiras não vivem? São até mais felizes!" 
"Como sempre acontece com mulheres solitárias que passaram sem companhia masculina, diante do surgimento de Anatole (...) as três mulheres sentiram que a vida que levavam até então não era vida."

↪ Daí, chegamos ao grande confronto:

BATALHA DE AUSTERLITZ.

Para os russos, mais uma vez, deu ruim. ¯\_(ツ)_/¯  Foi uma tremenda aflição ler, novamente, as trapalhadas do exército russo que, ousando subestimar um adversário tão ardiloso como Bonaparte; marcha convenientemente em direção a um vale para ser encurralado. Que desgraça. (Sugiro esse vídeo do History Channel sobre a batalha: history.com/topics/napoleon/videos/the-battle-of-austerlitz) 

Foi bem interessante o paralelo que a ótima narrativa de Tolstói permite que façamos entre as duas grandes lideranças inimigas, ao mesmo tempo em que demonstra como um bom comandante faz toda a diferença. Alexandre I, embora encantasse a juventude de seu exército com sua simpatia, não parecia possuir o comando frio, calculista e certeiro do brilhante Napoleão Bonaparte. Para alguém como Andrei, que almejava glória e fama, saber admirar e respeitar Bonaparte era, portanto, bastante lógico.

Voltando ao Andrei, personagem que fecha essa terceira parte: ele é capturado pelos franceses e, desenganado pelo médico das tropas, é largado aos cuidados dos habitantes locais para morrer. Vejamos quanto tempo durará seu momento sublime de epifania e revelação transcendental:
"Naquele momento, pareceram-lhe tão insignificantes todos os interesses que ocupavam Napoleão, tão mesquinho lhe pareceu seu próprio herói, com aquela vaidade rasteira e sua alegria de vitória (...) Andrei pensou na insignificância da grandeza, na insignificância da vida, cujo significado ninguém conseguia entender, e na insignificância ainda maior da morte, cujo sentido ninguém entre os vivos conseguia entender ou explicar."