28/03/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #06

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Tomo 2 - Terceira Parte


Sim, mas vamos com calma, pois é possível ~problematizar~ esse "romance". Primeiramente, há a óbvia e relevante diferença de idade: ele com 31 na cara, ela com apenas 16. Acho bem complicado, sobretudo se considerarmos outra clara diferença: a de personalidade, agravada pelo fato de que ambos preferem ignorá-la (eles mal se conhecem, na realidade). Depois, se retomarmos o discursinho aconselhador sobre casamentos que Andrei oferecera a Pierre no início do livro, é possível perceber que o príncipe parece estar cometendo o mesmo "erro" pela segunda vez e, pior,  pouquíssimo tempo após a morte da esposa. Se juntarmos ainda as pistas que Tolstói está oferecendo (respectivos pais inseguros ou contrários, Andrei já assustado "perante a devoção e confiança" de Natacha, com "pena da fraqueza feminina e infantil"), cabe a suspeita de que logo teremos mais uma "família infeliz à sua maneira". Ou não? Vamos acompanhar.


↪ A personagem Rússia, por sua vez, mal conseguiu se safar com uma acordo de paz e já decidiu que era a vez dela de brincar de reformas internas liberais de naturezas diversas: políticas, administrativas, legais, militares... Preparando a pipoca para acompanhar o desenrolar dos fatos.
"...dois decretos famosos, que abalaram a sociedade, sobre a eliminação de cargos da corte e sobre a realização de concursos para preencher os cargos de assessor colegiado e conselheiro de Estado. (...) uma nova Constituição do estado, que devia transformar toda a ordem judiciária, administrativa e financeira vigente na Rússia (...) estavam se cumprindo e tomando corpo os vagos sonhos liberais com que o imperador Alexandre subira ao trono (...)"

↪ A Natacha e os cargos nas comissões legisladora e do estatuto militar conseguiram, ainda que momentaneamente, retirar Andrei da crise existencial; mas o pobre Pierre continua mais perdido do que nunca: cedeu às pressões e reconciliou-se com a esposa (ainda que seja um matrimônio de fachada) e segue travando uma árdua luta interna para conseguir seguir os preceitos e objetivos maçons. De modo semelhante ao que ocorrera com Rostóv no exército, Pierre também parece ser confrontado pelas contradições que gradativamente constata na Maçonaria e em seus membros. Mudam-se as instituições, porém paradoxos similares se repetem.


↪ Converti-me recentemente ao Bokononismo, mas isso não impediu que eu admirasse imensamente estas observações do maçom Ióssif Alekséievitch:
"Qual dos três objetivos era o primeiro e o mais importante? A regeneração e a purificação de si mesmo, é claro (...) é esse objetivo que exige de nós os maiores esforços, e por isso, iludidos pelo orgulho, deixamos de lado esse objetivo e nos ocupamos ou do mistério, que não somos dignos de compreender por causa da nossa impureza, ou nos ocupamos da regeneração da espécie humana, quando nós mesmos somos um exemplo de indecência e depravação."

↪ Esta parte da obra, particularmente, me fez refletir que Tolstói parece delinear quase um tratado sobre a relação da sociedade russa com a beleza e a feiura, aspectos recorrentemente explicitados e explorados a respeito das personagens. Naquela época -- ora, ainda hoje --, o aspecto físico das pessoas era crucial para determinar o sucesso ou a derrota do indivíduo na sociedade. A beleza, ou a falta dela, era elemento decisivo (por vezes, o único) no julgamento de caráter que as pessoas estabeleciam entre si.

Outro aspecto que repercutia no desempenho social de um russo -- Tolstói já havia sugerido em partes anteriores e novamente o retomou aqui --, é a arte de saber relacionar-se com as pessoas certas.
"(...) é necessário travar conhecimento com pessoas de posição mais elevada do que eles, pois só nesse caso existe alguma satisfação em travar conhecimentos. (Berg:) - A gente pode imitar alguma coisa, pode pedir alguma coisa. Veja só como eu progredi, desde os postos mais baixos."
Ou seja, o retrato que Tolstói segue construindo é o de uma sociedade russa extremamente frágil, fútil, mesquinha e superficial.

E, na realidade criada pelo autor, aqueles indivíduos que, em algum momento, constatam essa verdade desalentadora (Andrei, Pierre, Nikolai...), terminam sucumbindo à vibe "Hello Darkness, my old friend..."


↪ O trecho em que Tolstói descreve a interação entre Vera e Berg demonstra muitas questões que o autor exploraria em Anna Karenina. Foi uma leitura muito interessante. Olha só o que parece ser o embrião do futuro famoso parágrafo inicial:
"(...) tudo era absolutamente igual à casa dos outros."

↪ Não é com pouco vergonha que sinto a obrigação de assumir que, até aqui, tenho me identificado mais do que gostaria com Andrei - ele é um poço de contradições, falhas, inseguranças... Sem qualquer originalidade, portanto, ele segue sendo meu personagem preferido (com pequena vantagem, é verdade).


↪ Também como bokononista, cabe a confissão de que o discurso religioso da Mária causa-me uma canseira danada*, mas achei esta passagem extremamente relevante:
"Mária (...) se admirava com a miopia das pessoas, que procuravam aqui na terra o prazer e a felicidade; trabalhavam, sofriam, lutavam e faziam mal umas às outras para alcançar aquela felicidade impossível, ilusória, viciosa."
(* o que é meio desconfortável, pois suponho que as reflexões dela reflitam muito como pensava o próprio Tolstói.)

↪ Essa parte inspirou várias ideias de trilha sonora, mas acabei ficando com a Ella Fitzgerald, pois o Andrei e a Natacha conseguiram me deixar com muita vontade de me sentir perdidamente apaixonada. ◖(ღ˘⌣˘ღ)◗♫・*:。:* (pensando bem... nope, melhor bater na madeira.)


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