28/06/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #16

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Postagens:
DL#01DL#02DL#03DL#04DL#05DL#06DL#07DL#08DL#09DL#10DL#11DL#12DL#13DL#14DL#15, DL#16

Epílogo 

Acabou! Não, o tom desse "acabou" não é exatamente entusiasmado, mas carregado de melancolia, pois já sinto uma saudade enorme destas personagens (Andrei ♥ especialmente) e deste universo. Foram cinco meses muito felizes. Considerando-se quantas coisas horríveis e tristes foram narradas nestas páginas, isso pode ter soado estranho, contudo refiro-me, claro, à felicidade que só uma leitura prazerosa é capaz de proporcionar. De qualquer modo, também houve momentos de alegria nessa história, correto?

Calma; é preciso interromper as despedidas, pois ainda devo uma última postagem. Vamos lá. 

Primeira Parte

 Aqui, damos adeus definitivamente às personagens - àquelas que sobreviveram, veja bem -, visto que a segunda metade do epílogo corresponde apenas a uma espécie de breve ensaio.

Em linhas gerais, essa primeira parte aborda principalmente um outro tema bastante caro a Tolstói: os meandros da vida conjugal, os quais são explorados através dos casais "Nikolai x Mária" (nunca imaginei que terminariam juntos) e "Pierre x Natacha" (para esses, Tolstói chegou a dar pistas de que rolaria). A visão do autor surge de modo bastante tradicional, fundamentada na premissa incontestável de que "o objetivo do casamento é a família, (...)". 

Os papéis do homem e da mulher na família retratada por Tolstói são relativamente antiquados e estáticos quando comparados aos padrões do século XXI. A mulher, depois de casada, parece reduzir-se exclusivamente ao binômio "esposa/mãe" e a ela compete o cuidado dos filhos e a satisfação do esposo (seus interesses equivaliam tão somente àqueles dos filhos e marido); a quem, por sua vez, restavam as tarefas do sustento familiar, trato dos negócios e decisões familiares críticas.

De qualquer maneira, vale destacar que todos assumiam os papéis familiares que lhes cabiam com grande satisfação, e a narrativa constrói a imagem encantadora (sem ironia) de uma singela cumplicidade e camaradagem existente entre marido e mulher. O autor deixa claro que momentos de hostilidade, brigas e ciúmes existem normalmente, contudo são exceções que em nada comparam-se à intimidade aconchegante compartilhada rotineiramente por um casal. Ou seja, despeço-me de Nikolai, Mária, Pierre e Natacha com a certeza de que estão muito felizes com as belas famílias que conseguiram construir. 

Ainda a respeito dessa dinâmica marital, foi bastante curioso observar como a postura dos dois irmãos Rostóv em relação aos seus respectivos cônjuges era similar, ainda que ocupassem papéis diferentes - apenas lembrando o óbvio: um era marido; a outra, esposa. Para ilustrar, alguns trechos:

Natacha em relação a Pierre
"A tudo o que dizia respeito aos assuntos intelectuais e abstratos do marido, ela atribuía uma enorme importância, mesmo sem compreendê-los, e sempre tinha medo de ser um empecilho para aquelas atividades do marido. (...) Será possível que esse homem tão importante e necessário para a sociedade seja ao mesmo tempo meu marido?"

Nikolai em relação à Mária
"(...) o fundamento principal de seu amor firme, terno e orgulhoso pela esposa sempre tivera como alicerce aquele sentimento de espanto diante da benevolência da esposa, diante daquele mundo moral elevado, quase inalcançável para Nikolai, no qual a esposa sempre vivia. Nikolai se orgulhava por ela ser tão inteligente e boa, reconhecia sua insignificância diante dela no mundo espiritual (...)"
Isso parece ser mais um reforço final de Tolstói a respeito da simplicidade e humildade dos Rostóv comparativamente às famílias de Pierre e Mária. Como irmãos que compartilhavam a mesma origem e criação, Natacha e Nikolai inevitavelmente pareciam nutrir uma admiração e veneração semelhantes por seus respectivos parceiros.


↪ ✞ Minha previsão em relação ao Conde Iliá concretizou-se, pois ele morre e deixa uma "pequena e adorável" dívida como herança que, devo admitir, Nikolai soube gerenciar muito bem.

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Aliás, pausa para um papo rápido sobre Nikolai. Nunca supus que ele fosse dar-se tão bem no final da história. Ele não apenas escapou da morte certa (que sobrou para o pobre Pétia), tendo em vista seu espírito adolescente inconsequente, como construiu uma bela família e soube administrar negócios agrícolas como ninguém, demonstrando grande talento para lidar com os mujiques. Ele está montando até mesmo uma biblioteca em casa! Quem diria que aquele rapazote que suspirava e chorava diante da mera visão de Alexandre I chegaria tão longe? Eu não. - Parabéns, Nik.
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No tratamento da velhice e viuvez da Condessa Rostóv, Tolstói demonstrou um olhar pragmático e tremendamente realista, quase cruel, que me pegou totalmente desprevenida. O tom da narrativa era que ela apenas "sobrevivia", ou seja, matava o tempo como podia, enquanto a morte não vinha. Quando o narrador disse "Aquilo que para pessoas em pleno vigor da vida representava um objetivo, para ela era obviamente um pretexto", fui tomada por um desalento descomunal, consumida pelo seguinte pensamento: hmm, e se você ainda nem é uma velha viúva, mas já sente a necessidade recorrente de pretextos? Rá! Melhor eu parar por aqui. (obs.: e a condessa só tinha 60 anos, ok?)

Como consequência, essa mensagem parece intensificar ainda mais a importância que Tolstói confere à família, a qual representaria o objetivo maior da vida. Sendo assim, se a condessa Rostóv já havia concluído seu papel (nem tinha mais ~marido~, não é mesmo?), a "vida" dela restaria resumida à espera paciente da morte que, por alguma razão, teimava em se atrasar. 
"(...) ela já havia cumprido seu papel na vida, ela já não estava presente de fato naquilo que dela se via, (...) memento mori (...)"
Podemos também tomar como exemplo desse raciocínio o próprio Pierre, cujas crises existenciais transformaram-se praticamente em uma irrelevância pueril pertencente ao passado, agora que ele tinha uma família com a qual deleitar-se; agora que "Sentia que sua forma de vida estava determinada de uma vez por todas, até a morte, (...)". Eu havia compartilhado a impressão de que cada parte desse livro tinha me apresentado a um Pierre diferente e sinto que, aqui, ele aproxima-se bastante do "Pierre" do início da obra - mais leve, determinado e feliz -; uma espécie de amadurecimento circular. A família parece ter justificado sua jornada.


↪ Recapitulemos, por favor, o que eu havia desejado para Sônia na DL#12"Sério, torço muito para que Sônia tenha um final extremamente feliz nessa história - vamos acompanhar". Não sei nem por onde começar, já que o efetivamente ocorrido passou longe do que vislumbrei para a personagem.

Em certa passagem, Natacha tenta convencer Mária de que Sônia era "uma rosa estéril, de quem tudo fora tirado, mas que não sentia isso como nós sentiríamos", contudo eu recuso-me veementemente a acreditar nessa distinção do sentimento. Que destino terrível, o da querida Sônia: sozinha no mundo, obrigada a compartilhar o mesmo teto com o ex-noivo (o homem que sempre amou) e respectiva esposa (que a detestava), vivendo para ajudar a criar os filhos daquele casal; aturando comiserativamente todo tipo de humilhação. Aplicando à Sônia a proposta inferida pelo texto de que o objetivo da vida seria a família, é quase lógico que ela termine sua jornada dedicando-se à família alheia, dado que a chance de ter uma própria fora-lhe tolhida.

Ah, e uma breve pausa para falar de Mária: ela é a prova de que o discurso moralista religioso, tão fácil na teoria, sucumbe com a mesma facilidade diante de pífias exigências práticas da realidade. 


↪ E, finalmente, aquele que leva o derradeiro destino brutal e imensamente triste: Nikólienka Bolkónski. Caramba, esse garoto arrasou com meu coração; não sobrou nadinha. A realidade dele, no ponto em que o deixamos, consistia em ser criado por uma tia que não conseguia amá-lo como a um filho (realidade desafiando o discurso religioso dela novamente) e um padrasto que o detestava, relegado frequentemente à companhia solitária do tutor.

Nesse momento, surge mais um elemento narrativo que enriquece ainda mais a ligação que eu já vinha discutindo entre Andrei Bolkónski e Pierre Bezúkhov, pois o garoto ama Pierre como se ele fosse seu próprio pai. Há, inclusive, uma passagem insana em que ele pergunta a Pierre:

  "- Tio Pierre... o senhor... não... Se o papai fosse vivo... ele concordaria com o senhor?" 

Ao Nikólienka, sou obrigada a dizer: meu jovem, isso é exatamente o que eu venho me perguntando durante boa parte desta leitura!!

Sobre isso, é ainda mais significativo o sonho espantoso de Nikólienka que encerra essa primeira parte. * Pausa: há um trechinho nesse tomo em que Tolstói diz explicitamente o que ele pensa sobre sonhos: "(...) num sonho tudo é engenhoso, absurdo e contraditório, exceto o sentimento que guia o sonho, (...)". * O garoto sonha que enfrentava um exército ao lado de Pierre que, subitamente, é substituído pela figura clara de seu pai, Andrei Bolkónski, o qual  "fazia-lhe carinhos, o acariciava e aprovava" (esse "aprovava" me matou). As frases que encerram a primeira parte, portanto, são dele:
"E o tio Pierre! Ah, que homem incrível! 
E o pai? O pai! O pai! Sim, eu farei coisas que até ele iria admirar..."
Mor-ri; só os caquinhos aqui.

Por ora, escolho assumir que minhas confabulações estavam corretas: Pierre e Andrei são, em suas essências humanas, grandiosamente similares, separados apenas pela capacidade que demonstraram em fazer essa essência interagir com o mundo externo e a complexidade da vida. 


↪ Concluindo o ciclo de bobagens, gostaria de registrar uma outra confabulação particular. É comum, quando escuto leitores comentarem sobre Guerra e Paz, que a obra não parece ter um protagonista, e fiquei refletindo que isso é perfeitamente compreensível, e até óbvio, considerando-se que Tolstói consome inúmeras páginas explicando que a História não é feita por heróis, comandantes ou pessoas isoladas com poderes, mas, sim, pela força do movimento conjunto dos povos. Desse modo, desenvolver a narrativa através de um protagonista representaria, parece-me, uma contradição clara. Guerra e Paz é a história de Andrei, Pierre, Natacha, Nikolai, Mária, Iliá, Pétia, Nikólienka, Kutúzov, Vassíli, Hélène, Anatole, Hippolyte, Sônia, Condessa Rostóv, Deníssov, Dólokhov, Karataiev, Vera, Berg, Boris, Lise, Mlle Bourienne, Ióssif Alekséievitch, Anna Pávlovna, Katiche, Anna Drubetskaia, Lavruchka, Julie, (...) Alexandre I, Napoleão Bonaparte (...)...


Segunda Parte

Nope, não me atreverei a resumir as ideias de Tolstói de jeito nenhum. Bem ou mal, dá para dizer que ele "enterra o defunto", consolidando e concluindo o posicionamento construído ao longo de todo o livro.

Registro apenas que foi muito surpreendente constatar que, aqui, ele explicou melhor, e explicitamente, por que eu me senti desconfortável quando extrapolei os conceitos históricos dele para a minha própria vida, conforme compartilhei no DL#13. Simples: a teoria de Tolstói desafia a minha consciência de livre arbítrio, demonstrando que ela não sujeita-se à razão, tendo em vista que a liberdade completa é impossível. A liberdade está indissoluvelmente ligada à necessidade, mediante relação inversamente proporcional que jamais será 1:1, 1:0 ou 0:1. 

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