17/06/2016

Amuleto - Roberto Bolaño


- Pois então, Auxilio! É isso! Recuso-me a crer na queda ultimada. Com nosso amuleto, escolho crer que as crianças e os jovens latino-americanos ainda voarão alto; muito mais alto do que conseguimos ou sonhamos. 
***

Exato, eu admito que minha esperança ainda não foi completamente trucidada, mas, mesmo assim, é preciso encarar a atual realidade dos fatos, da qual tenho plena consciência: Auxilio Lacouture, a uruguaia de Montevidéu, a mãe da poesia mexicana, continua presa até hoje, desde 1968, no banheiro feminino do quarto andar da Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM - Universidad Nacional Autónoma de México. Aposto, sim, que ela ainda pode ser encontrada aí,

lamentavelmente testemunhando a contínua queda de seus filhos no abismo.

Como muitas mães, contudo, Auxilio é forte e determinada. Ela é tão poderosa, que consegue "sair" desse banheiro, mediante rompimento das barreiras do tempo e do espaço, a fim de ajudar e, claro, admirar e encorajar o trabalho da sua prole, os jovens poetas mexicanos.

Preciso, do mesmo modo, reconhecer um outro talento de Auxilio. No início da leitura, ela me prometeu que seria capaz de camuflar o horror da história que estava prestes a me contar, e, de fato, ela conseguiu, pois o que mais percebi e senti durante a narrativa dela foi simplesmente poesia, uma poesia cativante e amorosa que emana de cada linha das páginas do livro. 

O crime atroz, porém, não pôde ser completamente ignorado e refere-se, em sentido estrito, ao massacre sangrento promovido pelo governo mexicano contra os jovens estudantes que protestavam no país em 1968. A experiência de leitura é, de certo modo, semelhante à relação que o poeta espanhol Pedro Garfias estabelecia com seu vaso: como leitora, eu consigo enxergar o vaso e fito-o experimentando uma vaga melancolia dolorosa; contudo, graças à Auxilio Lacouture, sou poupada do sofrimento de ter de enfiar a mão dentro daquela boca do inferno. Considero importante, porém, que o vaso permaneça constantemente diante dos nossos olhos, assim como mantinha Garfias, pois Auxilio Lacouture e os horrores cometidos no passado não podem ser esquecidos. Devemos isso a ela e a todos aqueles jovens assassinados em 68. 

E um importante devaneio durante a leitura: é peculiar o vínculo que o Brasil estabelece com o restante da América Latina (AL), não? Bolaño cita inúmeros artistas - poetas, romancistas, pintores - e não lembro de ter identificado nenhum brasileiro. Outras personagens e países latinos (e ditaduras daquela década) são explicitamente citados, mas também não encontrei nenhum sinal do Brasil. Senti o país um pouco desconectado da identidade latino-americana descrita nas páginas de Bolaño. Não trata-se de uma crítica ao autor, pois é um sentimento que recorrentemente me toma durante a leitura de outros escritores latino-americanos e na vida em geral. Falta-me capacidade para discorrer sobre hipóteses causais que possam explicar esse aparente distanciamento brasileiro, entretanto me sinto confiante em compartilhar a impressão de que, no momento, a mãe da poesia do Brasil (quem será ela?) encontra-se igualmente enclausurada, passando fome e sede, em algum banheiro de faculdade do nosso país (hum, desde quando? também 1968, com o AI5? muito antes?). Os jovens brasileiros precisam, da mesma maneira, colaborar muito com o canto que libertará todas as mães latino-americanas da poesia e que, simultaneamente, conseguirá lançá-los para longe do abismo. 

[*Daí, citando como mero exemplo, acompanhamos as reações e os eventos relacionados à extinção do Ministério da Cultura no governo federal e logo percebemos que o voo está bastante atrasado - mas não cancelado.
Paciência, mães da poesia. Ainda vai demorar um bocadinho, mas, um dia, vocês sairão desses banheiros.]

2 comentários:

  1. Que linda mensagem! Com as invasões policiais nas universidades brasileiras e muitas das atrocidades cometidas precisamos tirá-la dos banheiro já!

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    1. Com certeza, Henrique. Espero que a gente consiga. Muito obrigada pela visita. ;)

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