Essa obra aguardava resignadamente o momento de sua chamada para leitura, o qual revelava-se um tanto improvável em curto prazo, até que esta entrevista concedida por Aira ao El País propeliu-a para o topo da minha pilha de livros:
El autor argentino explica su método de escritura coincidiendo con la biblioteca de autor que le dedica su editorial española. Además, publica un ensayo sobre Marcel Duchamp y el arte contemporáneo
O trecho específico responsável pelo feito não foi essa assertiva do autor argentino que protagoniza, com controversa razão, a chamada do artigo (será que a premissa "literatura não serve para nada" ainda é clickbait eficaz?), pois há vários outros momentos mais interessantes nessa entrevista, sendo este o que me provocou precisamente:
- Caramba, o Aira foi lá e praticamente afirmou, sem constrangimento perceptível, que escreve muito bem e que, exatamente por isso, nunca vai ganhar um "merecido" Nobel.
- Será que esse cara está com essa bola toda?
- Não sei, mas suponho que ele deve ter bastante confiança em seu talento.
- Sim, e segurança quanto à qualidade do que escreve.
- Quer averiguar?
- Quero.
...
Os dois primeiros capítulos de Como me tornei freira (novela que inicia essa edição), quando submetidos ao referido teste patenteado, já foram capazes de induzir a minha dupla dinâmica neuronal a reagir em uníssono:
- La puta madre que te parió*, esse mierda* escreve bem pra carajo*!
Essas mesmas primeiras páginas poderiam funcionar, presumo, quase como um conto, dado que sustentam-se brilhantemente sozinhas e, além de muito bem escritas, evidenciam de imediato o humor particularmente delicioso presente na prosa de Aira. (Prévias postagens devem ter deixado claro, mas reitero: valorizo enormemente autores que, até para escrever sobre uma hipotética morte da mãe, conseguiriam ser engraçados. Posiciono-me totalmente a favor da valorização do humor na literatura.)
Também não precisei avançar muito na leitura, para que eu pudesse finalmente entender algo que sempre me intrigava a respeito dessa obra: por que uma menina tomando sorvete de morango figura na capa de diversas edições de um livro cujo título é "Como me tornei freira"?! O que um sorvete de morango poderia ter a ver com isso?!
Acontece que, conforme pude recapitular com a narrativa de Aira, tudo na vida tem um começo, o qual pode concretizar-se por meio de experiências tão banais e improváveis quanto um mísero sorvete de morango. Aliás, do exato modo como ocorreu com a garota Aira de 06 anos, arriscaria dizer que, quanto mais trivial o acontecimento, maior a chance de que nossa jornada seja afetada por ele em 180°. Um pífio - e lazarento - sorvetinho... Puxa vida.
...
Pinço, agora, outro trecho daquela entrevista, pois mostrou-se pertinente durante minha experiência de leitura da obra:
Pois é, aí que está. Enquanto eu permanecia no conforto da superfície do texto do argentino, as coisas eram realmente muito simples, e eu me divertia com uma história bem narrada e engraçada, eventualmente me deparando com discretos elementos fantásticos bem excitantes. Quando eu tentava encarar as profundezas do texto, as quais seguiam sempre à vista, incitando provocativamente ao mergulho, é que a situação ficava um tanto mais delicada e desnorteante. Ingenuamente e com discreto embaraço, optei por não me conformar apenas em apreender a inventiva forma do autor e ousei explorar esse conteúdo, saindo da empreitada com algumas impressões gerais - acertadas? equivocadas? (pelo menos eu tentei etc.) -, das quais uma se destacara.
O narrador do texto parece assumir uma negativa inflexível e resoluta da realidade. Sempre que as peças do quebra-cabeça começam a se encaixar para a construção de uma "realidade", o narrador faz questão de embaralhar tudo deliberadamente, de modo que o leitor encontra-se constantemente exposto a um jogo de construção e desconstrução do real. Todos os elementos da narrativa se submetem a frequentes transmutações que não permitem que consigamos delinear exatamente qual seria a realidade dos fatos: ela simplesmente não existe. Suponho, inclusive, que eu teria o direito de questionar: afinal, essa(e?) garota(o?) tornou-se mesmo freira, ou o quê? Pergunto, mas admito que não me importo com a resposta, tendo em vista que ela não faz, de fato, nenhuma diferença. (Não à toa, percebi, o autor cita Borges naquela entrevista, cuja presença acessória pode ser facilmente percebida nesse livro.)
"Só um louco poderia renunciar a um status quo imaginário. Só um louco poderia adotar o real da realidade."
Na segunda novela dessa edição - A Costureira e o Vento -, o autor compartilha sua instigante teoria da literatura, a qual enriquece enormemente esse contexto relacionado à realidade, uma vez que ela ampara-se na convicção de que o escritor deve almejar o esquecimento — em detrimento da memória — como instrumento de trabalho. Segundo essa tese, o esquecimento seria rico e livre, uma sensação pura baseada na dúvida sobre a existência do suposto real. Gostei imensamente dessa proposta, a qual surgiu no meio das minhas leituras como algo bastante revigorante, interrompendo a supremacia da onipresente (?) memória. Embora o autor reconheça a dificuldade - quase uma impossibilidade - de livrar-se dessa memória que teima em contaminar tudo aquilo que escrevemos, ele opta por entregar-se à idealizada luta contra as lembranças e reminiscências que impedem o voo completamente livre pelos ventos da imaginação.
( - Ah, Delia, qual foi a sensação, hein? Ser carregada pelo Ventarrón nos confins da Patagônia... Gostaria de viver essa aventura.)
Escolho juntar-me a Aira, confessando que meu espírito Blanche DuBois encontrou-se ligeiramente acariciado por esse livro.
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