30/09/2016

Bel-Ami - Guy de Maupassant X Jornalismo

       (Editora Estação Liberdade. 
        Tradução: Leila de Aguiar Costa)
Eh bien, suponho que a trama e tema principais dessa narrativa concentram-se mesmo nas presepadas amorosas e jogos sexuais do paspalhão Georges Duroy, o anti-herói que ardilosamente (ainda que, sim, paspalho) garante sua escalada social valendo-se da moral flexível dos parisienses — mais algumas vítimas do sexo feminino largadas durante a ascensão. No entanto o que realmente me fascinou nessa leitura foi o retrato que Guy de Maupassant constrói do jornalismo parisiense do século XIX. A afirmativa "o jornalismo morreu" é tão replicada atualmente, que já parece ter virado um absoluto lugar-comum; contudo livros como Bel-Ami me fazem enveredar pela seguinte divagação: se o jornalismo morreu de fato, quando é que isso teria acontecido exatamente, hein?

Em agosto de 2016, por exemplo, o programa americano Last Week Tonight (HBO) colocou este ótimo vídeo no You Tube, no qual o apresentador John Oliver discorre a respeito do temeroso declínio do jornalismo impresso:
       



O que pude perceber é que os problemas atuais apontados por esse vídeo já relacionam-se, de certa maneira, com o perfil que a narrativa de Maupassant traça do jornalismo de dois séculos atrás. É bem espantoso.

Organizando as características da "realidade jornalística" que encontrei nas páginas do autor francês, teríamos, em linhas gerais, o seguinte:

QUAL ERA A RELEVÂNCIA DOS JORNAIS?
Ao contrário do cenário atual exposto no vídeo de John Oliver, é bem verdade que, naquela época, os parisienses pareciam dedicar-se com afinco à leitura dos jornais impressos. Em certa passagem, o narrador descreve a cena de jornais abertos e expostos em portas de vidros na frente das sedes dos grandes veículos de comunicação com até três (!) pessoas paradas diante deles, entretidas pela leitura. (p. 17)  Ah, e os jornais eram vendidos — exato, o pessoal pagava — por 03 Sous (se eu soubesse fazer a conversão, seria bem legal).

Maupassant cita nominalmente sete jornais diferentes em atividade — La Vie Française, Salut, La Planète, Le Figaro, Le Gil Blas, Le Gaulois, L'Évenement — , embora tenha sido engraçada a informação de que havia um jornalista que atuava como secretário de redação em onze jornais diferentes, simultaneamente — é, parece que esses profissionais dão duro há bastante tempo. O detalhe da empreitada louca desse jornalista fica por conta da seguinte assertiva: “sem modificar em nada sua maneira de ver e agir" (p. 124).  Por que adequar-se a linhas editoriais diferentes, correto? Será que havia diferença entre os jornais? Sigo em dúvida.

A sociedade parisiense, quando reunida em eventos, também mantinha o hábito de falar (ou fofocar, como queiram) sobre os acontecimentos comentados nos jornais, e o narrador faz uma ressalva interessante referente à maneira distinta com que as pessoas pertencentes ao meio jornalístico dedicavam-se a esse costume. Os envolvidos diretamente com jornalismo não demonstravam indignação ou surpresa em relação aos fatos noticiados, mas, sim, buscavam as secretas causas profundas com uma curiosidade profissional e uma indiferença absoluta pelo crime em si; procuravam explicar as origens das ações e os fenômenos que fizeram nascer a ação. (p. 32) Ou seja, já naquela época, nunca era apenas uma notícia: se estava lá no jornal e descrito de uma maneira peculiar, havia uma razão específica e, possivelmente, atendia a determinados interesses.

  QUEM ERAM OS DONOS DOS JORNAIS?
Bem, o dono (e diretor) do jornal que protagoniza a história, La Vie Française (LVF), chamava-se Walter, e a posição que o digníssimo ocupava na sociedade era, digamos, curiosa (p. 31):

-  ~Deputado~;
-  ~Financista~;
-  ~Homem de dinheiro e negócios~;
-  Judeu. 

Ah, então, manifestações de antissemitismo pareciam rolar um bocadinho soltas naquela época:
“- O patrão? Um verdadeiro judeu! E, você sabe, os judeus nunca mudam. Que raça! E contou três traços surpreendentes de avareza...” (p. 66)

Segundo o mesmo funcionário desse comentário, o Sr. Walter fundara o jornal para sustentar suas operações na Bolsa e suas empresas de toda espécie. O interesse do diretor era utilizar o jornal para fazer correr boatos, manipular o público e agir sobre a renda. (p. 124) Levar informação à sociedade? Não, parece que isso não estava no topo das prioridades — a menos que a informação em questão atendesse a conveniências imediatas, claro. *— Ali, John Oliver, não tinha muito espaço para "heróis", não.
Os verdadeiros redatores do LVF eram uma meia dúzia de deputados interessados em todas as especulações que o diretor lançava ou apoiava (…) “o bando de Walter”. (p. 125)
 QUAIS ERAM OS TIPOS DE JORNALISTAS ATUANTES?
Identifiquei esta turminha:
   - Cronistas: (3 no LVF) espirituosos e com tino para a atualidade. Salário: 30.000 francos por ano para entregar 02 artigos semanais. Temas comuns das crônicas de atualidades: a decadência dos costumes, aviltamento dos caracteres, o enfraquecimento do patriotismo e a anemia da honra francesa. (p. 165)  A chatice é... ~crônica~? (tum-dum-tss!)
   - Escritores poetas: escreviam contos, recebendo 300 francos por cada texto entregue de, no      
     máximo, 200 linhas.
   - Redatores políticos (papel crucial para os donos dos jornais).
   - Jornalistas em início de carreira: 200 Francos fixos para visitas e diligências de averiguação
     diárias, com 2 sous por linha para échos ou artigos que porventura escrevessem.
   - Críticos de arte, pintura e teatro.
   - Jornalista criminalista.
   - Jornalista Hípico (!).
  - Jornalistas de coluna social (é lógico): tratavam de questões de moda, de vida elegante, de etiqueta, de savoir-vivre, e cometiam indiscrições sobre as grandes damas. (p. 126) As duas profissionais atuantes nessa área tinham nomes fascinantes - Domino Rose e Patte Blanche - sendo mencionado que elas eram representantes dos destroços da nobreza que os burgueses novos-ricos sempre recolhiam. (p. 134) Nobres encerrando a vida fazendo fofoca em jornal... Que coisa. Bom, apenas foram forçados a profissionalizar o que já faziam por lazer, suponho.

 COMO ERA O AMBIENTE NOS JORNAIS?
Há pouco tempo, rolou pela internet (não achei mais o link; mas existiu) uma planilha em que jornalistas, anonimamente, compartilhavam suas experiências de trabalho em grandes e famosos veículos de mídia, e um dos aspectos que eles às vezes descreviam relacionava-se ao ambiente e espaço físico ligeiramente deplorável. Pois bem, as descrições que Maupassant entrega relacionadas ao LVF – jornal importante, vejam bem - não destoam muito do observado naquela planilha: escadas luxuosas e sujas, sala de espera empoeirada e gasta, forrada com falsos veludos de um verde cor de urina cheios de mancha e rotos em alguns lugares, como se ratos os tivessem roído (p. 18), um odor estranho de mofo (p. 56), particular e inexprimível. Curiosamente, ainda na referida planilha dos jornalistas, houve um que divulgou isto sobre certa empresa: "Merda. Paga mal e banheiro fede amônia de 100 anos de mijo velho seco." Esse lance do cheirinho típico das redações parece ser histórico.

O Maupassant, com muito humor, igualmente não perdoa a artificialidade da pose e a aura de muita importância que o meio jornalístico concedia a si próprio. O narrador relata que havia toda uma preocupação em criar uma mise em scène perfeita para impressionar visitantes que habitualmente eram obrigados a esperar resignadamente pelo atendimento de um diretor de jornal ocupado em suposta reunião, mas que, por trás das portas da sala, ocupava-se mesmo era com uma partida de écarté durante horas. Os demais jornalistas da redação, por sua vez, poderiam ser encontrados jogando bilboquê nas mediações ou fumando com os pés sobre suas mesas, em cima de um artigo começado. (p. 54-56, 73-74) Era tudo bastante profissional evidentemente.

 QUE TIPO DE NOTÍCIAS ERAM PUBLICADAS?
O jornal protagonista da história navega, na verdade, sobre os fundos do Estado e sobre os bas-fonds da política (p. 125), e o assunto quente da época referia-se, sem dúvidas, ao lucrativo negócio das colônias francesas na África – Argélia, Marrocos, Tunísia. Essa era a grande mina de ouro (as colônias eram mera forma de fazer dinheiro fácil. “- A terra africana é uma lareira para a França, (...)"), da qual todos queriam filar um pedaço, e recursos jornalísticos poderiam ser usados como arma para garantir o sucesso dessa empreitada, como realmente acontece no livro.

<SPOILER> Sr. Walter, valendo-se de seu jornal para as manipulação sociopolíticas cabíveis, consegue influenciar a escolha de um amiguinho para o cargo de ministro das Relações Exteriores, o qual garantiria a ocorrência da expedição francesa ao Marrocos. Como segunda etapa desse plano, seu jornal publica notícias que negam a possibilidade de efetivação da expedição, de modo que o diretor e ministro cúmplice conseguem lucrar com a valorização de títulos de empréstimo do Marrocos, cujas dívidas seriam sabidamente (apenas por eles) garantidas pelo Estado francês após a expedição. Foi a perfeita comunhão entre política, jornalismo e especulação financeira. (~ p. 270) 

 COMO TORNAR-SE UM JORNALISTA NAQUELA ÉPOCA? 
Segundo Bel-Ami, para trabalhar como jornalista, não era preciso nenhum diploma de universidade ou bacharelado em letras; sendo suficiente apenas saber passar-se por entendido e não se deixar pegar em delito de flagrante ignorância, já que naquela sociedade todo mundo era burro como porta e estúpido como carpa. (p. 17) Nunca escreveu nada na vida? Ora, não tem problema, pois para tudo há um começo, o qual poderia efetivar-se pela realização de iniciais diligências, visitas e coletas de informações para os demais jornalistas. (p. 19) 

Aliás, também era possível recorrer à prática do ghost-writer que, embora ocorresse de fato, era perpetrada de forma velada no ambiente profissional — todos da redação tinham conhecimento, mas fingiam que não. Esse aspecto da narrativa é completamente fascinante, pois quem assume o papel de ghost-writer é, pasmem, uma mulher — inclusive, ela é a melhor personagem do livro. A cena em que o bocó Duroy está sentado na cadeira, escrevendo obedientemente aquilo que a Sra. Forestier elegantemente o ditava — de pé, fumando um cigarro e assoprando fios de fumaça, plenamente segura quanto a suas palavras — ficará guardada com carinho na minha memória relacionada ao livro.

Cabe destacar, ainda, a possibilidade factível de requentar matérias antigas. Por aquelas bandas, a galera esperta não perdia tempo entrevistando as grandes figuras e redigindo um novo artigo; já que a técnica pragmática consistia em coletar algumas informações gerais com fontes secundárias, resgatar um velho texto já veiculado, mudar o nome de um aqui e o de um país acolá, acrescentar qualquer bobagem nova e voilà: um novíssimo artigo estava pronto para ser entregue à gráfica. (p. 68) E não era só isso! Não, havia também a operação fenomenal da visitação de redações dos jornais concorrentes para roubar dos colegas, só na lábia astuciosa, as informações que eles já tinham juntado. (p. 72) Moleza demais, gente.

Calma, não sejamos tão levianos, pois a profissão demandava, sim, algum tipo de talento especial. O jornalista necessitava, por exemplo, possuir contatos (o chefe de polícia poderia ser um bom começo) e, principalmente, saber tirar leite de pedra das pessoas. Era fundamental que o redator tivesse a manha de fazer abrir as portas que estivessem fechadas para ele

No geral, tudo bastante simples, não?  D'accord, mas cabe ressaltar que as coisas podiam ficar relativamente perigosas para os jornalistas durante o exercício da profissão. Os redatores levavam tão a sério a preservação de suas reputações profissionais, que qualquer desaforo, ainda que relacionado a simplórias notinhas de brigas na feira do bairro, era solucionado através do famigerado DUELO (!) com armas de fogo! (É o momento mais engraçado do livro.) O pessoal era meio esquentadinho. Será que ainda é assim?
...

E para espairecer depois de tanto estresse, uma passadinha no Folies Bergère! Salut!

Obs.: havia a possibilidade de um outro entretenimento de muito mais alto gabarito reservado aos sabidões de moral frouxa: <SPOILER> casar-se com a filha do diretor do jornal e ficar rico. Très bien, mon Bel Ami!

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