14/10/2016

Vida e Proezas de Aléxis Zorbás - Nikos Kazantzákis

(Sobre o livro: info, sinopse etc.)  (Editora Grua; tradução: Marisa R. Donatiello e Silvia Ricardino)

◖(˘⌣˘)◗ ♫  Post com trilha sonora. Aperte o play: → 
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Senhores membros do júri leitor, a seguir, concederemos espaço para as alegações finais redigidas, respectivamente, pela acusação e defesa do livro Vida e Proezas de Aléxis Zorbás, escrito pelo autor grego Nikos Kazantzákis em 1946.

ACUSAÇÃO:

Senhores jurados leitores, não se deixem iludir pelas belas imagens e musiquinha da adaptação cinematográfica desta obra que foram exibidas como prova pela defesa. Por trás do cenário paradisíaco de Creta, das notas do santir e das singelas frases eventualmente proferidas pelo protagonista Zorbás, escondem-se significativos problemas dessa narrativa que merecem suas atenções críticas, pois são graves o bastante a ponto de estragarem substancial e categoricamente uma experiência de leitura que, de outro modo, poderia ser prazerosa.

Comecemos pela premissa: jovem intelectual de 35 anos, pessoa dos livros pouco experiente na vida (alter ego do Sr. Kazantzákis), vê-se atormentado por uma crise existencial sem saída evidente, até que encontra na figura de uma pessoa humilde - Zorbás, 65 anos -, dotada de inspiradora sabedoria acumulada pela rica experiência prática de vida, as respostas acalentadoras para suas angústias. Senhores jurados, sejam honestos e reflitam a respeito de quantas histórias desse tipo já cruzaram suas vidas como leitores ou mesmo como espectadores de TV e cinema. Francamente, senhores, essa trama já está mais do que manjada. Neste ano mesmo, no presente tribunal, nos dedicamos ao julgamento da obra do Sr. Tolstói que, através das personagens de Pierre e Karatáiev, explora essa exata premissa. E em 1865! 

Quanto aos ensinamentos de Zorbás, tão enaltecidos por sua suposta sabedoria grandiosa e esplêndida, não consigo identificar elementos que permitam comprovar tais alegações. Se considerarmos a elevada frequência com que o discurso desse protagonista flerta intimamente com a pieguice de livros ruins de autoajuda e, principalmente, que é possível resumi-lo plenamente através da expressão em latim Carpe Diem – entre nós desde antes de Cristo, senhores! -, como admitir que essa obra seja digna de seus preciosos tempos para leitura? Parece-me inconcebível.

Para finalizar, solicito máxima atenção para o que abordarei agora, pois trata-se da questão mais delicada e problemática desse livro. Em seu palavreado, o protagonista Zorbás manifesta, de forma reiterada, ideias explicitamente machistas e misóginas. Em 1946, é possível que a sociedade não tenha repudiado o tratamento reservado às mulheres por esse livro, contudo, setenta anos depois e em pleno século XXI, acredito que isso não possa mais ser admitido com tamanha benevolência. Segundo o tom da narrativa, prezado júri, - tomando a liberdade de parafraseá-la -, a mulher seria uma vaca vagabunda colocada no mundo pelo Diabo - e Deus! - para atormentar a paz dos homens de natureza elevada, os quais assumem a verdadeira representação da experiência humana na Terra. Mulheres seriam, ainda segundo a fala de Zorbás, umas miseráveis dignas de pena devido às suas supostas aspirações chinfrins e frívolas por um casamento, o qual só serve para aniquilar o homem. Simultaneamente, seriam vis e ambiciosas, uma vez que abririam as pernas para o mero chacoalhar da bolsinha de moedas. O destino fatídico e extremamente violento das duas personagens femininas secundárias – Madame Hortense e a Viúva - , ainda pior, parece apenas corroborar tais opiniões do protagonista. E toda a intelectualidade letrada do narrador personagem de nada serve para contradizer ou mesmo relativizar o discurso de Zorbás, uma vez que esse sujeito escolhe o silêncio e a mera observação. As passagens dessa natureza são inúmeras, prezado júri leitor, e apresento somente algumas como evidência:
"- Com os chifres do diabo vou fazer a mulher." - "Ele fez e nos danamos, Aléxis. Onde quer que você toque a mulher, estará tocando no chifre do diabo. Cuidado, meu filho!" 

"(...) aquela fogosa é como uma potranca: relincha quando vê um homem."
 

"(...) minha mulher sempre foi boa, obediente, pariu filhos homens e jamais levantou os olhos para me olhar na cara; (...)"
 

"Deixe as mulheres gritarem, são mulheres, não têm cérebro."
 

"Não veem nada, as vadias, só a mão que espalha o dinheiro."
 

"(...) a mulher não quer ser livre; a mulher é um ser humano, afinal? (...) Ela também é um ser humano, tanto quanto nós - e pior! No momento em que vê sua carteira, ela fica tonta, gruda em você, perde a liberdade e fica feliz com isso, porque por trás brilha sua carteira, sabe?"
Como se isso não bastasse, há ainda o tratamento grosseiro e aviltante concedido à população cretense, a qual surge nessas páginas como animais desprovidos de qualquer sentimento, moral ou ética.

Enfim, as evidências contra esse livro são diversas e consistentes, e tenho plena confiança de que a justa análise pelos senhores resultará em uma conclusão que não discordará de meu posicionamento. Obrigada.

 DEFESA:

Senhores jurados leitores, parece-me que a acusação chupou muito limão antes de comparecer ao presente julgamento. Estou realmente perplexa. Pois sabem o que eu recomendaria à nobre acusação? Justamente a leitura de Vida e Proezas de Aléxis Zorbás. Não a leitura superficial aparentemente já concedida, mas uma leitura permitindo-se imergir no verdadeiro espírito da obra e da alma de Zorbás.

Inicialmente, o desdém concedido pela acusação à ambientação da história na encantadora e paradisíaca ilha de Creta é incompreensível. Que tipo de azedume, senhores, resistiria ao mar de Creta; à areia fina com conchas e loendros floridos; à maresia, ao ar com cheiro de bagaço das caldeiras de aguardente; às figueiras, tamarindeiros, oliveiras, alfarrobeiras, limoeiros e laranjeiras, ao sol e à lua refletidos pelas ondas do oceano, à aldeia com suas pequenas casas caiadas e com solários, como crânios esbranquiçados enterrados na terra? Não duvidem, porque é exatamente para esse lugar que acabo de descrever que o autor grego os leva através da leitura desse livro. E sem que tenham de mexer um único fio de cabelo para isso! Não parece-lhes esplêndido?

Os leitores também não passam fome durante a viagem, pois a narrativa serve um farto e delicioso banquete mediterrâneo preparado por Zorbás; repleto de vinhos, queijos, azeitonas, romãs, pães, cebolas, queijos, figos secos, amêndoas, peixes... E todas essas delícias ainda são embaladas pelas harmoniosas e tocantes notas do santir de Zorbás – desde que ele esteja com a boa disposição que o instrumento exige, é verdade; pois a arte requer a plena dedicação do espírito. Não, senhores, a atitude da acusação em fazê-los desconsiderar tamanhos prazeres é inadmissível.

A imprudência da acusação em comparar aquilo que a narrativa pode nos ensinar – ou ajudar a refletir - a um mero livro ruim de autoajuda é igualmente bastante exagerada e equivocada. Observem esta imagem e texto, por favor:
A Mão de Deus - Rodin

          - O que está pensando?
          - Se fosse possível escapar!
          - E ir para onde? A mão de Deus está em toda a parte. Não há salvação. Lamenta isso?
          - Não. É possível que o amor seja a mais intensa alegria sobre a terra. É possível. Mas agora                     que estou vendo esta mão, eu gostaria de escapar.
          - Prefere a liberdade?
          - Sim.
          - E se só formos livres obedecendo à mão? E se a palavra "Deus" não tiver o sentido         
          descuidado que a multidão lhe dá?
          - Não entendo. - disse ela e afastou-se, assustada.

Os senhores avaliam que conseguiriam encontrar a formidável escultura de Rodin – A Mão de Deus – associada a esse diálogo em um livro qualquer de autoajuda? Eu presumo que não. Ademais, a redução das lições de Zorbás ao simples Carpe Diem apenas comprova a superficialidade da leitura realizada pela acusação. Nosso protagonista é capaz de demonstrar, através de simples, mas astuciosos, atos e colóquios, 1. PORQUE o famigerado Carpe Diem é tão importante, não devendo ser esquecido jamais; e, ainda, 2. COMO colocá-lo em prática. Costumeiramente, inclusive, não são as coisas mais simples que nos impõem as maiores dificuldades para aprendizado?

Além disso, a discussão proposta pela obra não restringe-se apenas àquela frase em latim, uma vez que aborda conceitos importantes e complexos como a liberdade, a morte, a religiosidade e, amplamente, nossa própria existência. Ao contrário do que seria mais fácil supor, o texto de Kazantzákis refuta admiravelmente a noção de que as religiões são o caminho impreterível para conquistarmos a felicidade e a resposta para nossas angústias existenciais. Duvido mais uma vez, senhores membros do júri, que isso seja o tipo de coisa facilmente encontrada em um livro qualquer de autoajuda. Pelo menos, não com a sensibilidade própria da prosa de Kazantzákis.

Quanto às acusações de que o texto é machista e misógino, esta defesa não ousará negá-las de maneira irresponsável, tendo em vista que as evidências são, de fato, bastante claras. Contudo, acreditamos que isso não seja razão para desqualificar completamente o valor dessa grande obra. Mediante arrazoada contextualização, a narrativa viabiliza um essencial debate e reflexão a respeito de como a mulher já foi e continua sendo tratada em nossa sociedade. Melhor do que ignorar um problema, fingindo que ele não existe, é encará-lo com a pertinente responsabilidade.

Por todo o exposto, estou convicta de que os senhores membros do júri chegarão a um entendimento concordante com nosso ponto de vista. Obrigada.

VEREDITO:

...
P.S.: Mas tenho certeza de uma coisa: adoro a ideia de poder dançar meus pensamentos desesperados. Como também já disse Thom Yorke ():

This dance 
Is like a weapon 
Of self-defense 
Against the present 
Present tense
(..)
As my world
Comes crashing down
I'll be dancing
Freaking out
Deaf, dumb, and blind

- Thom Yorke, The Present Tense.

Dança comigo?

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