27/11/2016

The Door (A Porta) - Magda Szabó

(Sobre o livro: info, sinopse, etc.) (Edição NYRB, Tradução para inglês por Len Rix)


Dando mera largada na minha tentativa de processamento dessa leitura, ousarei adaptá-la, com admitida leviandade, a uma hipotética parábola:

“Após tomar dolorosos socos desferidos por circunstâncias atrozes e por pessoas estimadas que apenas a desapontaram, uma honrada senhora opta pelo único meio de defesa de que dispunha: isolar-se de tudo e de todos, trancafiando-se em seu castelo. A despeito da severa solidão, a estratégia adotada transcorre com absoluto êxito e sem perturbações, até que uma desconhecida jovem genuinamente bem-intencionada bate à porta. Com comedida cautela, a encastelada decide abrir uma brechinha da entrada para a inesperada visitante, e as duas acabam tornando-se cada vez mais íntimas com o passar dos dias. Gradativamente a visitante desperta na honrada senhora uma afeição esperançosa que há tempos não experimentava, a qual era demonstrada por formas pouco convencionais que recorrentemente confundiam a estranha. Não tardou para que a encastelada adquirisse coragem de escancarar a pequena brecha, contudo infelizmente também não demorou para que a convidada, com um impensado e cruel golpe, revelasse ser indigna da generosa confiança recebida. A velha senhora não resiste finalmente à derradeira pancada, e os muros do castelo começam a ruir lamuriosamente."

Qual seria a moral dessa história? Mais vale amargar uma vida de solidão, do que tomar soco na cara? Mesmo que haja fatídico arrependimento, as alegrias propiciadas pelo convívio com outras pessoas, ainda que breves e inconstantes, justificam os riscos inerentes? Se vai bater na porta de alguém, esteja completamente seguro de que fará jus à benevolência recebida? Questões, questões (como sempre, tratando-se do presente blog, não respondo nada).

Ratificando o que já reconheci, explicito que meu resumo acaba sendo exageradamente negligente, pois as circunstâncias da trama em que estão envolvidas as duas protagonistas desse livro – Emerence (a “encastelada”) e Narradora Protagonista Inominada (a “visitante”) – são muito mais complicadas. Como melhores pistas do enredo, deixo o trailer da respectiva adaptação do livro para o cinema (Atrás da Porta - 2012):


Um usuário disponibilizou o filme inteiro no YouTube aqui: x.

Boa parte da complexidade da obra pode ser atribuída à fácil constatação de que a relação entre as personagens principais e os eventos de The Door (1987) retratam e simbolizam bastante daquilo que efetivamente ocorreu à população da Hungria durante o século XX; notadamente as duas guerras e a posterior ocupação russa, sob o regime comunista (a história do livro transcorre durante o Pós-Segunda Guerra). Assim como Magda Szabó, por exemplo, a narradora personagem é uma escritora cujos livros haviam sido alvo de severa censura política no passado (entre 1949 e 1956, a publicação dos livros de Szabó foi proibida pelo regime stalinista). Lendo um artigo no site Hungarian Literature Online, pude constatar que os críticos oferecem algumas distintas chaves de interpretação para este livro, com foco especial sobre a relação estabelecida entre Emerence (empregada) e a Narradora Personagem (escritora e patroa). Listo-as a seguir:

- Conflito entre classes, um tema que parece ter sido comumente explorado pelos intelectuais da Hungria durante a década de 60;
- Feudalismo húngaro perpétuo, com a lealdade dos servos sendo traída;
- Conflitos e dinâmicas sociais firmadas entre os intelectuais e os trabalhadores braçais da sociedade húngara;
- Companheirismo entre mulheres, as quais oferecem ajuda e suporte mútuos;
- Solidariedade como meio de transpor as barreiras sociais;
- Topos do reencontro simbólico com uma família perdida; aqui destacando-se as posições de mãe e filha;
- Questões morais em escala individual e nacional relacionadas à perseguição de judeus e comunistas, anarquismo político.

A despeito de todas essas opções interpretativas, admito que, durante a leitura, as minhas atenções voltaram-se muito mais para os “tipos de pancadas” (voltando à minha fábula) sofridas por Emerence e suas respectivas sequelas, pois esse aspecto do livro, de fato, me tocou profundamente. Desejei, acima de tudo, tentar compreender Emerence. Essa tarefa não é nada fácil, mas humildemente dispus-me a arriscar.

Encontrava-me incerta de como começar essa exploração da personagem, até que, através de uma resenha do livro "A guerra não tem rosto de mulher", da Svetlana Aleksiévitch, cruzei com uma citação que me ajudou enormemente:
Assim que a li, pensei em sobressalto: “Acho que é isso!". Minha impressão é que Emerence simboliza exatamente a pergunta lançada por Svetlana nesse trecho: é possível sair sã e salva em meio à infinita experiência de morte?

Calculo que, com algumas ressalvas (?), Emerence (★ 1905) possa representar amplamente as pessoas dos países europeus (principalmente a Hungria, claro) que foram forçadas a tomar parte de duas grandes guerras, testemunhando antissemitismo e genocídios, bem como padecendo severamente da miséria que tais barbáries patrocinaram. É possível passar por tudo isso e sair ileso? Como pessoa/ser humano, sair do mesmo jeito com que se entrou? Quem conseguiu escapar (testemunhas inclusive), foi obrigado a carregar cicatrizes mais ou menos profundas, visíveis ou não. Nas palavras da própria narradora, passando por uma espécie de epifania:
“I stood gazing at the tress lined up in rows like soldiers, contemplating the memories the land must hold, with so much blood, so many dead, and all their dreams, all that failure and defeat. How could it bear to go on producing, with a burden like that?”
Aos poucos, junto com a narradora, o leitor descobre que não foram poucas as enormes atrocidades testemunhadas e vividas por Emerence durante as duas grandes guerras. A narrativa lentamente nos revela, além disso, que a personagem havia arriscado a vida por mais de uma vez, para salvar pessoas da morte; ao mesmo tempo em que perdera outras em circunstâncias tremendamente penosas.

Ao embarcar na empreitada de desvendar (ou quase) Emerence, surgem ensinamentos pertinentes e a imposição de reflexões que podem ser desconfortáveis:

1. A dinâmica estabelecida entre as duas protagonistas é peculiar, tratando-se de uma amizade que desenvolve-se de maneira intrincada. Com Emerence, a narradora aprende esta lição valiosa para todos – (embora ela tenha deixado de aprender outras, na minha opinião):
“I know now what I didn't then, that affection can't always be expressed in calm, orderly, articulate ways; and that one cannot prescribe the form it should take for anyone else.”
Ou seja, é insensato esperar que as pessoas expressem seus sentimentos de forma igual, todas seguindo uma fórmula preestabelecida. É preciso exercer a sensibilidade e a empatia para compreender e aceitar a complexidade dos outros.

2. A solidão é inerente, de maneira irremediável, à vida humana? Sobre isso, creio que concordo com Emerence:
“Who isn't lonely, I'd like to know? And that includes people who do have someone but just haven't noticed. (…)”
Persistindo no tema, li recentemente este artigo interessante no The Washington Post: "Loneliness can be depressing, but it may have helped humans survive."

3.
“If someone can't be helped, then they don't want help. If she'd had enough of life, no one had the right to hold her back. (…) Try to understand. When the sands run out for someone, don't stop them going. You can't give them anything to replace life. (…) It's just that, as well as love, you also have to know how to kill. (…) If I hadn't loved her, I would have stopped her.”

A passagem de onde extraí a citação acima é uma das mais impressionantes: Emerence ajuda uma amiga a cometer suicídio, explicando à narradora o seu ponto de vista marcado por desconcertante pragmatismo.

Por extensão, fiquei refletindo que Emerence, de certo modo, manifesta uma defesa que é relativamente apropriada ao caso de Yeong-hye, a protagonista do livro A Vegetariana, escrito pela coreana Han Kang. Caso tal personagem tivesse apresentado à Emerence a mesma pergunta que ela lançara à irmã - “- Estou agindo desse jeito porque tenho medo de que você morra!  - Por quêMorrer é algo assim tão ruim?” - , suponho que Emerence não vacilaria em responder “-Não, morrer não é assim tão ruim."

E apenas como complemento dessa discussão, de novo Svetlana Aleksiévitch me auxilia. Do mesmo "A Guerra não tem rosto de mulher" ("War’s Unwomanly Face"), trombei com uma outra frase que pode, talvez, ajudar a explicar o pensamento de Emerence: “Suffering justifies our hard and bitter life. For us, pain is an art.”

4. Por conta das "pancadas", algumas “cicatrizes possíveis”: incredulidade - em instituições políticos ou religiosas, por exemplo -, desconfiança, perda da esperança.
(Emerence:) They want peace. Do you believe that? I don't, because who then will buy the guns, and what pretext will they have for hanging and looting? And anyway, if there's never been world peace before, why should it happen now?”
5. Por fim, junto-me à narradora na revelação garantida por Emerence:
“At that moment I understood our recent history as I never had before.”

E apenas neste instante, ao final do post, percebo que, em vez de “cicatrizes”, talvez eu pudesse ter escolhido uma outra palavra: memórias (sempre elas). Hum, e surge o gancho para outra postagem...
... 

↪ P.S.: é mandatório destacar que, em The Door,  Magda Szabó constrói absurdamente bem um cachorro como personagem, o Viola. Sem surpresas, talvez o singelo bichinho seja superior a todos os outros humanos que passam pelas páginas do livro.

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