01/02/2017

[DL #03] Middlemarch - George Eliot (Mary Ann Evans)

Em 2016, inicio a leitura de Middlemarch pela primeira vez e tento registrar aqui um diário de leitura com possíveis postagens para cada um dos oito livros que compõem a obra. Não li previamente nada sobre o livro e desconheço quase tudo sobre ele.

Edições adotadas: 

LIVRO 03
Waiting for Death


✒ Quando avistei o título do Livro 3, confesso que, a despeito da quantidade enorme de personagens presentes em Middlemarch (e continuam aparecendo mais!), fiquei aflita pela possibilidade de já ter de despedir-me de alguém - quem?! Ciente dessa provocação que o "Waiting for death" causaria nos leitores, Eliot decide ser ainda mais perversamente ardilosa, arquitetando uma série de personagens adoecendo sequencialmente. É o Bolão da Morte em Middlemarch!

Fred Vincy com febre tifoide - "Eita, ele é um porre, mas tão novo para morrer...";
↓ daí
 Mr. Casaubon com angina (acho) - "Ah, então é ele? Ok.";
↓ daí
Mr. Featherstone nos últimos suspiros - "Xi, É ELE!".

E a gaiatice da narrativa não parou aí, pois ela logo revela o deboche implícito no título "Waiting for death / À espera da morte": quem aguarda a visita da Inevitável não é uma personagem doente, mas os urubus da família do futuro morto, ansiosos para finalmente abocanhar a carniça herança. Que cena tragicômica, todos os parentes e aparentados do Mr. Featherstone - os ricos e os pobres; de perto e de longe - batendo ponto diariamente na casa do moribundo, para tentar garantir uma vaga final no testamento.

"The troublesome ones in a family 
are usually either the wits or the idiots."

Resta, porém, descobrir o(s) nome(s) do(s, a, as) herdeiro(os, a, as) do falecido Mr. Featherstone (R.I.P.), o que talvez não será tão fácil, visto que o camarada complicou a treta deixando dois testamentos; o "último" e o "último versão definitiva the final countdown." Torço para que a grana vá para a Mary Garth, mas suspeito de que o bocó Fred Vincy levará essa para... Adivinha? Conseguir casar com a Mary! Será? Essa é minha aposta, especialmente considerando-se minha nova hipótese para um outro possível tema desse livro.


✒ No DL#02, comecei a especular a respeito de temáticas subjacentes que estariam sendo exploradas pela Eliot e presumo que o Livro 3 ofereceu-me sinais mais claros sobre uma outra: o "Casamento", particularmente sob a perspectiva da jovem esposa provinciana.

Eis que já contamos com os seguintes power couples:
- Mrs. Dorothea Casaubon + Mr. Casaubon;
- Miss Rosamond Vincy + Mr. Lydgate;
- Miss Celia Brooke + Mr. Chettam;
- Miss Mary Garth + Mr. Fred Vincy ??? - Bem, há indícios de que serão um casal, mesmo com a negativa firme da Mary. Ou não? Veremos.

A narrativa insinua que essas moças fizeram/farão cagadas monumentais durante a escolha de seus maridos, todas ludibriadas por suas próprias suposições ingênuas, equivocadas e/ou precipitadas. Como bem lembra nosso narrador, com ar fatalista:
"In all failures, the beginning is certainly the half of the whole."
Lamentavelmente, parece que a regra será a da constatação tarde demais do vacilo. Sendo assim, tenho a impressão de que o livro me agraciará com um grupo de pobres mulheres infelizes no matrimônio, cada uma à sua maneira, ao lado de maridos medíocres. Será?


Retomando cada um daqueles casais:
(1) Mrs. Dorothea Casaubon + Mr. Casaubon
Nossa, está bem penoso acompanhar a tragédia em que transformou-se a vida de Dodo. Retornando a Lowick depois da lua-de-mel, ela não consegue mais enxergar a velha propriedade carcomida com o mesmo encanto promissor de quando a conhecera enquanto noiva.

No DL#01, registrei que a história da tia de Mr. Casaubon, a Julia (avó de Ladislaw) envolvida em um tal "~mau casamento~", pareceu-me bastante suspeita para fins da narrativa e vejo que acertei. Agora, Dorothea olha para o quadro da Aunt Julia buscando o acolhimento de alguém que supostamente a entenderia como ninguém mais seria capaz.
"(...) the miniature of (...) aunt Julia, who made the unfortunate marriage. Dorothea could fancy that it was alive now (...). Was it only her friends who thought her marriage unfortunate? or did she herself find it out to be a mistake, and taste the salt bitterness of her tears in the merciful silence of the night? What breadths of experience Dorothea seemed to have passed over since she first looked at this miniature. She felt a new companionship with it, (...) Here was a woman who had known some difficulty about marriage."
Agravando a lastimosa situação, o piripaque de Mr. Casaubon veio apenas para jogar a pá de cal sobre as esperanças de Dodo, visto que a prescrição de Lydgate ao seu esposo consistia em menos trabalho e mais repouso. Foi doloroso vê-la suplicando à Lydgate que ajudasse Mr. Casaubon, quando eu (leitora) e o médico podíamos perceber que, na verdade, Dorothea rogava desesperadamente em causa própria:
"Oh, you are a wise man, are you not? You know all about life and death. Advise me. Think what I can do. He has been laboring all his life and looking forward. He minds about nothing else. - And I mind nothing else-."
É bastante aflitivo acompanhar a jornada de uma mulher apaixonadamente ambiciosa que não consegue vislumbrar outra forma de concretizar seus sonhos, senão por intermédio de um marido.

Ah, e Ladislaw (pivô da nova briga entre Dorothea e Casaubon) está prestes a retornar. Esse quiproquó segue em suspensão. Adultério? Segundo casamento? A ver.

(2) Miss Rosamond Vincy + Mr. Lydgate
A doença de Fred Vincy acabou ajudando a tirar esses dois do chove-não-molha. Depois de uns xavecos sem graça aqui, uma intervenção da tia Bulstrode ali (à la Lady Catherine de Bourgh, de Pride and Prejudice), uma recuada assustada de Lydgate acolá e uma choradinha terna de Rosamond mais para lá; eis que os dois afinal noivaram. 

A narrativa joga várias pistas que parecem indicar que esse matrimônio também vai dar merda. Ora, o enlace até começa mediante circunstâncias, no mínimo, precipitadas. Esta certeza que Rosamond tem, de que Lydgate seria um cara com boas conexões e que, sendo estrangeiro, estaria em clara vantagem sobre os demais cavalheiros de Middlemarch... Hum, sei não. Minha aposta é que, assim como Dorothea, ela descobrirá que estava errada. Bem, vamos acompanhar. 

(3) Miss Celia Brooke + Mr. Chettam
Aqui, minha percepção é que Celia acabou ficando com as sobras da irmã. Mr. Chettam aparenta tentar reiteradamente convencer-se de que superou a esnobada que tomara de Dorothea, contudo não estou botando fé de que isso seja verdade. E se ele tiver ido lá e se contentado com a segunda da fila? A princípio, a suposta candidata número dois aceitou felizona a proposta de casamento. Resta observar.

(4) Miss Mary Garth + Mr. Fred Vincy 
Com todo meu coração, desejo que esta minha suposição revele-se completamente infundada, contudo acho que isso não acontecerá, infelizmente. O papinho cheio de segurança da Mary refutando Fred; os pais dos pombinhos contrários à união e tentando pôr juízo na cabeça dos filhos... Suspeitíssimo. Caramba, Mary consegue até sentir dó de Fred, mesmo depois que ele arruína financeiramente a família dela. Ademais, este conselho que Mary recebe do pai também sustenta bastante essa nova hipótese temática que apresentei:
"(...) a woman, let her be as good as she may, has got to put up with the life her husband makes for her. Your mother has had to put up with a good deal because of me." (Ou seja, as mulheres precisavam escolher direitinho com quem se casariam, caso contrário teriam de engolir o choro da frustração obrigatoriamente.)
Vale ressaltar, contudo, que Mary tem uma diferença crucial em relação às outras três middlemarchers citadas: ela conhece bastante bem seu pretendente Mr. Bocó Fred Vincy, e há muito tempo. Essa desculpa, ela não terá permissão de invocar, caso cometa essa presepada. A ver.
...

Claro, reconheço que não é possível colocar a culpa unicamente na conta dessas jovens, pois as particularidades do contexto geral e de cada uma delas não cooperam muito. Um aspecto curioso, por exemplo, é como toda a galera de Middlemarch gosta de meter o bedelho nos assuntos matrimoniais alheios. Todo mundo tem uma análise acertada para compartilhar a respeito de qualquer casal, real ou hipotético, da cidade. A intromissão é realmente hilária. 

Enfim, haverá mesmo um bando de esposas infelizes e frustradas, presas a maridos imprestáveis? Cenas dos próximos capítulos.


✒ Retomando a temática hipotética que lancei no DL#02 - diferentes relações entre oportunidades na vida x aproveitamentos para homens e mulheres -, houve uma fala da Mary (para Fred) que a reforça:
"(...) how can you bear to be fit for nothing in the world that is useful? And with so much good in your disposition, Fred, - you might be worth a great deal."
Ele tinha tudo para ser um sucesso na vida, e só mandava bola fora; enquanto havia personagens femininas loucas para conquistar o mundo, mas que não possuíam as mesmas chances. Outros rapazes, por sua vez, sabiam aproveitar avidamente todas as vantagens.

✒ E o narrador, hein? Modo "sangue nos olhos" ativado nesse livro, mandando diversas bordoadas maravilhosas e elaborando muita ~crítica social foda~.  Recapitulando aqui, penso que todas as personagens tomaram alfinetada dele... Aliás, começo a suspeitar de que esse narrador é ainda mais irônico do que eu havia captado. Por exemplo, agora estou incerta se aquelas defesas de personagens que ele faz (mencionei nos DLs anteriores) são realmente defesas, ou se ele estaria bancando o cínico comigo. (O momento em que ele disse "Por que sempre Dorothea? O ponto de vista dela era o único?" foi o catalisador.) Ele é extremamente capcioso, e quase o enxergo com um risinho no canto da boca, enquanto banca o imparcial comprometido com a verdade. Comentando alguns dos vários momentos magistrais:

(1) A descrição da fanfarronice representada pela figura do Fred Vincy foi espetacular. Eliot constrói frases preciosas (quase um discurso indireto livre), para demonstrar ao leitor como a personalidade desse mancebo é ensaboada. Se entendi direito, Fred é um exemplar da espécie "deixa a vida me levar"; ele é a versão do século XIX dos nossos playboyzinhos mimados da classe média, aqueles que não assumem responsabilidade com nada, que estão no mundo para curtir a vida sem estresse, uma vez que tudo se ajeita no final (= os papais se encarregam disso).
"During the vacations Fred had naturally required more amusements than he had ready money for (...)" (Naturalmente, sim; é apenas lógico.)
"(...) his assets of hopefulness had a sort of gorgeous superfluity about them." 
"(...) the universal order of things would necessarily be agreeable to an agreeable young man."  (Como as coisas não dariam certo para um rapaz tão bacana, não é?)
"(...) being implicitly convinced that he at least (...) had a right to be free from anything disagreeable."
E no fim das contas, quem é que cai na armadilha desse tipo de garoto? Indivíduos como Mr. Caleb Garth, um senhor humilde que trabalhava de graça para boa parte dos middlemarchers e que encarava o trabalho como uma religião edificante. Poxa, o pai da Mary não consegue nem mesmo culpar Fred pela presepada da dívida. Para defender-se, Fred mal hesita antes de apontar o dedo para Mr. Garth com o revoltante "ninguém mandou ele assumir minha dívida". Ódio!

O ápice da crítica que Eliot faz a esse tipo de rapaz ocorreu, para mim, neste trecho certeiro e que, assustadoramente, aplica-se à nossa sociedade atual:
"Fred was conscious that he would have been yet more severely dealt with if his family as well as himself had not secretly regarded him as Mr. Featherstone's heir (...) - just as when a youthful nobleman steals jeweler we call the act kleptomania, speak of it with a philosophical smile, and never think of his being sent to the house of correction as if he were a ragged boy who had stolen turnips."
Já no século XIX, o roubo/a merda que o jovem riquinho comete representa um mero lapso pueril a ser perdoado, a fim de não macular o futuro promissor dele. Do outro lado, o jovem pobretão, quando faz bobagens similares, vira o vagabundo que merece apodrecer detido. Fiquei bem abobalhada com isso.

(2) Eliot aproveita o caso da família Garth para demonstrar que, em Middlemarch, na hora de "fazer uma social", não importa a índole da pessoa, mas suas posses. Rolava quase um sistema de castas, onde as classes não se misturavam.
"(...) there were nice distinctions of rank in Middlemarch (...) be connected with none but equals, (...). (...) his honorable exertions had won him due esteem; but in no part of the world is genteel visiting founded on esteem, in the absence of suitable furniture and complete dinner service."
Aquela: "Diz-me teu saldo bancário, e te direi se comparecerei à tua festinha."

(3) Lydgate manda a real: doente rico é muito chato! (Eu ri; desculpe.) De quebra, ele assume que rola uma diferença de tratamento.
"But I don't really like attending such people so well as the poor. The cases are more monotonous, and one has to go through more fuss and listen more deferentially to nonsense."
(4) Sabe quando vamos às reuniões de família, e uma tia distante, que só nos vê nessas ocasiões, nos encara da cabeça aos pés? Então; tais olhadas pouco sutis - julgando/cobiçando/invejando - aconteciam em Middlemarch.
A tia: "(...) Rosamond's bonnet was so charming that it was impossible not to desire the same kind of thing for Kate, and Mrs. Bulstrode's eyes, (...) rolled round that ample circuit, while she spoke." 

A sobrinha: "Rosamond's eyes were roaming over her aunt's large embroidered collar."
(5) Para ilustrar a ironia por vezes bastante sutil do narrador; trago esta:
"Mr. Casaubon, (...) in a few days began to recover his usual condition."
Pescou? O narrador não afirma que Mr. Casaubon "melhorou"/"ficou bom", mas, sim, que recobrou sua ~condição usual~. Aquela, sabe qual? Coitado. (É, eu ri de novo.)

(6) E a descrição do rapaz sem queixo?
"To superficial observers his chin had too vanishing an aspect, looking as if it were being gradually reabsorbed." 
Brilhante!

✒ Finalizo atualizando duas listas dos DL's anteriores;
(1) DL#01 - Lista "Homens x Mulheres x Matrimônio"
Segundo Fred, as mulheres tinham a responsabilidade moral de sempre pensar o melhor a respeito dos homens, esforçando-se sempre para torná-los em pessoas melhores. Ok.
"(...), Mary. (...) It is not generous to believe the worst of a man. When you have got any power over him, I think you might try and use it to make him better; but that's is what you never do."
(2) DL #02 - Lista da "Realidade Médica no séc. XIX"
O estetoscópio começava a ser mais largamente utilizado:
"He not only used his stethoscope (which had not become a matter of course in practice at that time), (...)"
 ✒ Avante ao Livro 04! ᕕ(ᐛ)ᕗ

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