28/03/2017

[DL #06] Middlemarch - George Eliot (Mary Ann Evans)

Em 2016, inicio a leitura de Middlemarch pela primeira vez e tento registrar aqui um diário de leitura com possíveis postagens para cada um dos oito livros que compõem a obra. Não li previamente nada sobre o livro e desconheço quase tudo sobre ele.

Edições adotadas: 

LIVRO 06
The Widow and the Wife


✒ E a tensão sexual presente na narrativa das duas (!) despedidas entre Will e Dorothea, hein? Uma palavra: excepcional. Gostei especialmente da forma com que Eliot utilizou a descrição minuciosa da linguagem corporal do casal para construir a atmosfera aflitiva que salta das páginas e exaspera o leitor, quase como a marcação de cena em uma peça de teatro. Lembrei de que não é um recurso que surge somente nesse momento, pois, ao longo do livro, a autora descreve detalhadamente vários pequenos gestos trocados entre Mr. e Mrs. Garth que reforçam a grande intimidade e cumplicidade do casal, já sugeridas pelos diálogos.

A relação entre Will e Dorothea está rendendo um fôlego que me impulsiona a concluir quanto antes a leitura, a fim de que eu possa vê-los finalmente juntos. Ou não ficarão juntos? Hum... A ver.


✒  P.S.:  está sendo super gratificante me reencontrar com a Dorothea do livro 01. Digo, ela é quase a mesma Dodo, pois houve amadurecimento e aprendizado de lições valiosas para qualquer pessoa.
"Sorrow comes in so many ways. Two years ago I had no notion of that - I mean of the unexpected way in which trouble comes, and ties our hands, and makes us silent when we long to speak. I used to despise women a little for not shaping their lives more, and doing better things. I was very fond of doing as I liked, but I have almost given it up."
Acho que essa foi uma das passagens mais incríveis que li em Middlemarch. Que personagem instigante!

P.S.2: o Will Ladislaw não lembra, mais ou menos, uma espécie de Mr. Darcy "pobretão" (por azar e por escolha)? Viajei demais? Acredito que não há como esse cara tornar-se mais orgulhoso, sinceramente. Will tem lá seus motivos, talvez ele acredite que o orgulho seja a única coisa que lhe resta, mas continua chamando muita atenção.


✒ Agora, sim, a treta do passado que inesperadamente liga Mr. Bulstrode a Will Ladislaw foi explicada em todos os seus pormenores; não apenas para o leitor, mas para o próprio Will. Deixe-me resgatar a teoria que eu havia elaborado no DL#05: "minha suposição é que Will Ladislaw teve seu patrimônio "roubado" duplamente. Parece-me que o pai dele - o Ladislaw filho da avó Julia - casara-se com uma moça que só era pobre porque tivera sua herança roubada pelo padrasto, o Mr. Bulstrode. Ou seja, minha suspeita é que o pai e a mãe de Will Ladislaw são herdeiros que, de alguma maneira, tiveram as fortunas a que tinham direito surrupiadas. Por enquanto, foi o que entendi." Ah, meu entendimento nem foi um fiasco completo. Resta tapar  buracos e acertar arestas com as minúcias disponibilizadas no livro seis.

Quando era um jovem membro de uma igreja calvinista dissidente, época em que dedicava-se avidamente à sua vocação para o trabalho missionário, Bulstrode fora convidado para trabalhar como sócio de um dos membros mais ricos da congregação, Mr. Dunkirk - o (futuro) avô materno de Will Ladislaw. A "honestidade" do negócio da família Dunkirk, no entanto, era questionável - pelo menos para os termos da comunidade religiosa - , pois tratava-se de uma casa de penhor que lucrava em cima de almas perdidas. Mesmo assim, após digladiar-se com sua consciência, Busltrode cede à tentação do dinheiro. E quando Mr. Dunkirk bate as botas, Bulstrode ainda aproveita a deixa para se casar com a rica viúva, então sozinha no mundo, visto que a filha - a (futura) mãe de Will - fugira de casa por discordar das transações comerciais da família. Posteriormente, Bulstrode consegue localizar a enteada, entretanto decide omitir a informação da esposa. Por conseguinte, depois que a avó de Will morre, é Bulstrode quem herda sozinho toda a grana dos Dunkirk. Dirty Business.

E por mais inconcebível que possa soar, essa ardilosa tramoia do fervoroso religioso de Middlemarch nem foi o que mais me impressionou. Não; o que mais me abalou foi testemunhar Will Ladislaw abrir mão de toda a grana a que teria direito, e que Bulstrode o entregava (finalmente) de bom grado, porque ele decide ratificar a pregressa escolha de sua mãe. Se o dinheiro era sujo, então ele não queria tocar nele. Ou seja, Will opta por fazer aquilo que Bulstrode não tivera coragem, nem idoneidade de fazer quando jovem. Mas calma, pois Will ainda dispôs de uma outra motivação especial que me desmontou completamente:
"No one but himself then knew how everything connected with the sentiment of his own dignity had an immediate bearing for him on his relation to Dorothea and to Mr. Casaubon's treatment of him. And in the rush of impulses by which he flung back that it would have been impossible for him ever to tell Dorothea that he had accepted it."
Se aceitasse aquele dinheiro, o desgraçado acredita que não estaria digno e à altura de Dorothea que, caso estivesse naquela mesma posição, com certeza rejeitaria a oferta de Bulstrode. Como lidar com esse cara, depois dessa? [P.S.: se eles não ficarem juntos no final, a Eliot terá de lidar com meu rancor. (Mentira, pois a leitura foi ótima e Dorothea está muito bem sozinha. Mas não custa nada, não é?)]


✒ Aproximando-me da conclusão da leitura, alguns temas da obra deixam de ser meras hipóteses e já se consolidam de modo mais concreto e inquestionável, portanto gostaria de organizar melhor essas ideias. Pontuando, sucintamente, em gifs ilustrativos e anotações:

1. 

Muitas questões morais discutidas nesse livro. Quase todas as personagens se veem metidas em uma situação que as coloca contra a parede da moralidade. Recapitulando passagens pregressas, percebo agora que a posição de Lydgate, lá no livro 2, tendo de votar para a escolha do novo guia espiritual do hospital, já era o primeiro (algum outro antes?) de uma sequência de pequenos testes morais de Middlemarch. Alguns exemplos de dilemas:

- Lydgate → 1. Devo votar no candidato que beneficiará minha jornada ou naquele que julgo mais preparado para a vaga? 2. É correto associar-me a um indivíduo de caráter duvidoso, em nome da conquista de um bem maior que beneficiará todos?

- Ladislaw → 1. Devo apoiar um político que votará a favor daquilo que desejo para meu país, ainda que ele seja um completo incompetente hipócrita? 2. É justo me beneficiar de dinheiro adquirido às custas da desgraça de vidas alheias? 

- Farebrother, Fred, Bulstrode → Devo trabalhar com algo para o qual não tenho a menor vocação, simplesmente pela promessa de dinheiro relativamente fácil, mesmo sabendo que me tornarei um profissional incompetente e infeliz? Melhor ser pobre exercendo aquilo para o qual tenho vocação?

- Bulstrode → Deus é quem está garantindo este dinheiro que recebo, a fim de que eu consiga fazer valer suas vontades na Terra, certo? A desventura alheia que gera minha riqueza é um contratempo menor, diante da vontade de Deus, confere? Confere, né? Fazer o bem por aí sai caro, afinal.

- Dorothea → Devo dar seguimento ao trabalho inconcluso do meu falecido marido, ainda que eu discorde plenamente de sua relevância? O matrimônio cria esse tipo de responsabilidade após a morte do meu companheiro?

- Mary Garth → É certo queimar, na calada da noite, um dos testamentos de um doente que agoniza em seus últimos momentos? 

2. 

Eu já havia associado a frase de Brás Cubas  - "tantos sonhos, e não sou nada" - a Mr. Casaubon, porém percebo que ela pode ser aplicada a outras personagens do livro. A maioria almeja por algo bastante específico, traça planos ambiciosos que são perseguidos com grande afinco, contudo a vida, ironicamente, as atropela cruelmente no começo/meio/fim da jornada. Para umas, definitivamente. Para outras, não? Vamos acompanhar.

Criar sonhos é fácil, concretizá-los, por sua vez, já é uma outra história. 

3. 

Não é notável a quantidade de circunstâncias em que o Dinheiro assume o papel de vilão no meio dessas mesmas jornadas idealistas? Recorrerei àquela famigerada frase: dinheiro não traz felicidade, mas compra. Certo, pode até comprar, só que seríamos obrigados a voltar para o primeiro item desta  lista: vale qualquer coisa para conseguir a maldita/bendita grana? Quer dizer, todas essas questões temáticas aparecem engenhosamente interconectadas na narrativa.

4. 

Esse, eu já discuti bastante por aqui, porém vale destacar que a dinâmica estabelecida entre Lydgate e Rosamond fortalece muito a concepção de que fazer um casamento funcionar não é uma tarefa exatamente fácil. Aliás, qualquer relação, antes mesmo da fase matrimonial, impõe grandes desafios, Will e Dorothea que o digam.

O título do livro seis chama atenção para o que eu havia comentado no DL#05, a respeito da enorme diferença de comportamento e de personalidade existente entre Rosamond e Dorothea. Ao contrário do que fez Dodo, Rosamond resiste a submeter-se passivamente às vontades do marido e não demonstra qualquer interesse pela profissão que Lydgate tão apaixonadamente exerce. Como já citei, houve praticamente uma troca de casais: Dodo deveria estar com Lydgate e Rosamond com Casaubon. Mas será que a troca daria um jeito em tudo? Existiria uma fórmula capaz de garantir o sucesso de um casamento? Aliás, a própria instituição pode estar sendo questionada, especialmente o que ela representa na vida das mulheres. 

Dessa reflexão, é igualmente possível retornar aos pontos 2 e 3 desta lista. Quantos sonhos são construídos em torno de um matrimônio perfeito que não resiste à primeira dificuldade financeira? Em Middlemarch, conhecemos pelo menos um caso: Rosamond e Lydgate. Ou eles conseguirão superar a má fase e a completa dissintonia? Vamos acompanhar.

Obs.: todas essas conexões temáticas conferem enorme humanidade às personagens do livro, acho. Sinto-me muito constrangida e desconfortável em julgá-las. Como poderia fazer isso?! (Ok, fiz um pouquinho com o Casaubon, mas ele facilitou.)


✒  Para encerrar a conversa, quero só atualizar duas listas de DL's prévios.
1. Informações históricas
Como registro da leitura, destaco que Eliot novamente demonstrou a ignorância provinciana diante das inovações da época, desse vez por conta da construção de estradas de ferro interligando o país. Trabalhadores chegavam até a atacar os agentes das companhias das linhas de trem. 
"(...) as mulheres consideravam a locomoção a vapor audaciosa e arriscada, (...) nada iria convencê-las a embarcar num vagão; ao passo que os proprietários (...) eram porém unânimes na opinião de que vendendo terras (...) agências deveriam ser forçadas a pagar um preço bem alto pela permissão de fazer mal às pessoas."
Ademais, o narrador ressalva brevemente que também ocorriam os horrores da Cólera.

2. Mulher na sociedade provinciana do século XIX
O que se esperava de uma viúva em Middlemarch? Que ela se casasse de novo, claro, pois uma mulher morando sozinha inevitavelmente tornava-se psicótica. Ora, o que ela teria para fazer, sem um marido e filhos, ué? Bom, quem disse isso foi a Mrs. Cadwallader.

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