* As falas de Llosa são adaptadas a partir da resenha que ele publica no livro La Verdad de las Mentiras - Alfaguara (2002).
Daniela: Oi, Llosa, tem um tempinho pra jogar conversa fora? Gostaria de papear sobre The Golden Notebook (TGN), da Doris Lessing. Na sua tradução: El Cuaderno Dorado.
***
Llosa: Com efeito, é um romance ambicioso. Encontramos: psicanálise, stalinismo, relações entre a ficção e a realidade vivida, experiências sexuais, neurose e a cultura moderna, a guerra dos sexos, a liberação da mulher, a situação colonial e o racismo. E todos estão relacionados, é claro. Você teria um favorito?
"Why do our lot never admit failure? Never. It might be better for us if we did."
Llosa: Trata-se, isto sim, de um romance sobre as ilusões perdidas de uma classe intelectual que, desde a guerra até meados dos anos cinquenta, sonha em transformar a sociedade segundo as pautas ditadas por Marx e em mudar a vida como pedia Rimbaud, mas que acabou percebendo que seus esforços não haviam servido para grande coisa.
Daniela: Acho que concordo com você. Seria, aliás, o motivo que particularmente me leva a admitir uma curiosa contradição no livro: percebo-o datado — não no sentido pejorativo, mas apenas por refletir extremamente bem o espírito de seu tempo —, contudo simultaneamente atual e relevante.
Llosa: Compreendo. Sim, centenas de ficções dos anos 50 e 60 tentaram capturar o espírito daquela época, com sua ilusões, seus terríveis fracassos e profundas transformações históricas; e Doris Lessing conseguiu.
Llosa: Acrescentaria ainda que, embora a história seja narrada pela perspectiva de uma mulher, a condição feminina não é a que aparece - abstratamente - como assunto central do livro. O tema principal é o fracasso da utopia experimentado por uma intelectual — aqui, uma mulher.
Daniela: Nesse ponto, acredito que tenho dúvidas, Llosa. Não sei. Muitos personagens masculinos dessa história, até onde me lembre, pareciam estar bastante bem consigo mesmos. Os homens do livro aparentam possuir um pragmatismo que os impede de se abalar e de ruir mentalmente. Ou, no mínimo, eles seriam capazes de esconder melhor o destrambelhamento.
Llosa: Por falar nisso, sabe que uma das críticas que o romance recebeu na ocasião refere-se ao fato de que todos os personagens masculinos são repulsivos ou desprezíveis? E, realmente, nenhum deles tem a menor hombridade.
Daniela: Haha, não estou falando?! Pois eu cheguei até a comentar, com outra leitora da Ferrante, que TGN estava repleto de "Ninos Sarratores", que é o personagem masculino mais desprezível da Tetralogia Napolitana, quiçá da literatura. O Richard e o Michael não devem nada ao Sr. Nino, vou te contar.
Llosa: Ok, pois aproveitarei o momento para fazer uma provocação: as mulheres do livro, por acaso, são melhores?
Daniela: Eita; cuidado nessa hora, Sr. Llosa. rs Ah, eu acho que elas são, sim. Veja, não digo que, ao contrário dos personagens masculinos, elas sejam perfeitas; mas que possuem um pouquinho mais de dignidade e consideração, lá isso elas possuem.
Llosa: Daniela, mas nem Anna, a personagem que conhecemos mais intimamente, é capaz de nos seduzir! A vida dela é seca em decorrência dos princípios ideológicos e da incapacidade de adaptação que garante-lhe infelicidade e inutilidade social. Ela luta contra o convencionalismo, contudo sucumbe a certos estereótipos no momento de julgar homens, ou até os EUA, por exemplo.
Daniela: Não, Llosa; aí você me perdeu por completo. Afirmo que fui totalmente seduzida por Anna - exceto, é verdade, durante o final, como já mencionei. Sei lá, consegui estabelecer uma enorme empatia por ela. Poxa, esse bendito livro me fez até chorar no metrô, Llosa!
Llosa: Entendo. Concordamos em discordar? Queria retomar aquela questão da maternidade que você havia citado. Você a incluiu entre os fracassos da protagonista, e eu destacaria que, possivelmente, a filha de Anna representa o maior fracasso.
Llosa: Seguindo um instinto de defesa, a garota busca diferenciar-se da mãe e, a todo custo, reintegrar-se à sociedade alienada e conformista da qual Anna quer desvencilhar-se. Muito provavelmente, Janet conseguirá transformar-se em uma dama inglesa indiferente e neurótica.
Daniela: É, e a própria Anna compartilha com o leitor seu espanto diante das diferenças de comportamento entre ela e a filha. Falando em filhos: o que dizer sobre Tommy, o filho da Molly? Aquele garoto me desvairou bastante também.
Daniela: Ah, e Llosa, eu não poderia perder a oportunidade para perguntar: o que você teria a me dizer sobre a forma narrativa desse romance?
Daniela: Parece-me que a fragmentação nos quatro cadernos e a linha narrativa presente correlaciona-se bem com este temor de Anna:
Daniela: Na introdução de 1971, Lessing escreve que Anna mantém quatro cadernos porque, em resposta ao medo do caos e da falta de uma forma (formlessness), ela pressupõe que necessita separar e catalogar as coisas. A autora acrescenta que, no caderno dourado final, os elementos se agregam, as divisões são rompidas e Anna atinge a formlessness através do fim da fragmentação. E ela arremata: é o tema da unidade. Lessing acredita que, dentre as diversas temáticas de TGN, esta seria a dominante.
Daniela: Retornando à Ferrante, isso lembra demais a relação da personagem Lila com a experiência que ela denomina "dissolving margins". Já não é fácil perceber a evidente semelhança apenas pelos termos?! Lila igualmente temia a perda de sua forma. Dado que, em minha leitura, o sumiço final de Lila significa que ela rompe finalmente suas margens, dissolvendo-se com o mundo; parece-me que Anna também termina a história de maneira correlata; apenas não simbolizada por um sumiço, mas pelo caderno dourado que substitui e rompe as margens dos outros quatro.
Llosa: Correto, o caráter fragmentado do livro não é gratuito. Essa estrutura responde à emaranhada realidade emocional e social tal como é vivida e analisada pela protagonista. Esta organização é desmentida pela prática.
Llosa: Anna não consegue manter invioláveis as fronteiras temáticas que ela mesma fixa para seus cadernos. Isso mostra, graficamente e através do domínio da forma, que o racional e o irracional constituem uma realidade indissolúvel que confere à vida humana uma característica fundamental: sua imprevisibilidade.
Llosa: Ressalvo apenas que é importante lembrar que o conteúdo da obra está em paridade com a riqueza inventiva dessa forma.
Llosa: Agora, uma pergunta: de que maneira aquele tema "realidade x ficção" foi seu favorito? Como você o percebeu?
Daniela: Destaquei essa questão a você pensando principalmente nas ponderações e frustrações que Anna compartilha a respeito do único romance dela, o "Frontiers of Wars". Deixou-me bastante reflexiva, a enorme exasperação e desencanto que ela sente ao dar-se conta de que seu livro falhou em captar a real verdade da África colonial, do racismo. Parte do bloqueio criativo dela, avalio, deve-se a isto; quero dizer, deve-se à pergunta: "Pra que serve, afinal, a literatura? Por que escrever, então?"
Daniela: É engraçado, pois já até comentamos que Lessing logrou êxito precisamente em captar a essência daquela época, não é mesmo? Sendo assim, a boa literatura, pelo menos, é capaz disso, sim? De captar a realidade? E, para não complicar, é melhor nem emendar com a elucubração "O que é a realidade?"
Llosa: Creio que compreendi seu ponto de vista. De fato, Anna escreve um livro baseado em suas experiências na África, no qual ela insere uma crítica severa ao colonialismo. Entretanto, o grande sucesso comercial que ele obtêm deve-se ao apagamento de seu aspecto político, o qual resta convertido em um produto de consumo para o mero entretenimento de um público que não associa a literatura a questões de ordem alguma.
Daniela: Ah, se pararmos para pensar e novamente resgatarmos o que discutimos, Lessing teve de enfrentar o mesmo com TGN?! Reduziram seu livro a um panfleto feminista, quando ele é tão mais do que apenas isso. Essas conexões são peculiares.
Daniela: Llosa, mais uma vez, muitíssimo obrigada por reservar uns minutinhos de seu tempo para papear.
Llosa: Foi um prazer. Abraços.
Daniela: Abraço; até mais.
"Afterwards I fought with a feeling that always takes hold of me after one of these exchanges: unreality, as if the substance of my self were thinning and dissolving."Daniela: Inutilmente, Anna tenta frustrar essa dissolução caótica e desorganizada de sua realidade mediante a categorização de sua vida por assuntos/aspectos em cada um dos cadernos; como se fosse possível desconjuntar cada uma das partes de nossa existência. Não é, logicamente.
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