19/12/2017

Lendo Contos | O Aleph - Jorge Luis Borges / o imortal

 (Editora Companhia das Letras / Tradução: Davi Arrigucci Jr.)

A poeta Aline Aimée, do ótimo canal (no You Tube) Chave de Leitura, disponibilizou resenhas em vídeo para cada um dos contos da coletânea O Aleph, de Jorge Luis Borges (link aqui). Aproveitando a chance de poder contar com alguém para enriquecer minha experiência de leitura, tentarei incluir postagens em resposta aos vídeos da Aimée. Um clube de leitura formado por duas leitoras, maaaaais ou menos. A sequência proposta para o post é a seguinte:

Leio o conto > Escrevo e registro minhas impressões gerais  >
> Assisto ao respectivo vídeo da Aline Aimée > Complemento as impressões com as novas informações e reflexões.


** RISCO DE SPOILERS **


[Impressões pessoais após a leitura do conto:]

Parece que comecei me dando mal, pois esse primeiro conto é repleto de referências literárias,  históricas e geográficas. Logo de cara, digo que o meio de campo embaçou, tendo em vista que não li nenhuma obra de Homero (eu sei, eu sei). De qualquer maneira, efetuarei um voo rasante sobre questões que chamaram minha atenção, além de algumas correlações, digamos, desajuizadas.

Bem, acredito que a epígrafe escolhida por Borges seja crucial, posto que aparenta ser a chave que revela a temática principal do conto. Reproduzo o trecho escrito por Francis Bacon (* a edição da Companhia das Letras não conta com tradução do trecho):

"Salomon saith: There is no new thing upon the earth.
So that as Plato had an imagination, that all knowledge
was but remembrance; so Salomon giveth his sentence,
that all novelty is but oblivion."
Francis Bacon, Essays, LVIII

Conforme esse raciocínio de Bacon, não existiriam inovações no mundo, dado que toda e qualquer novidade e/ou novo conhecimento seriam, na verdade, espécies de ecos de rememorações de algo preexistente e esquecido. Sendo assim, seria possível concluir que tudo que existe é, de certo modo, imortal. Segundo a própria narrativa de Borges:
"Entre os imortais, por sua vez, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que não esteja como que perdida entre incansáveis espelhos. Nada pode acontecer uma única vez, nada é preciosamente precário."
Remete muito à ideia de um retorno eterno, porém com a ressalva irônica de que não haveria retornos, visto que não haveria exatamente partidas (mas, sim, esquecimentos). Refletidas umas nas outras, todas as coisas do mundo tornam-se eternas, sem hiatos. Trata-se de uma imortalidade que, além de brincar com os espelhos queridos por Borges, reproduz outra característica imagética favorita do autor: a circularidade. Os imortais existiriam na forma de uma verdadeira simbiose, o que fundamentaria uma conclusão expressa neste outro trecho do conto:
"Ninguém é alguém, um único homem imortal é todos os homens. (...) o que é uma cansativa maneira de dizer que não sou."
O título daquele livro do Pirandello (vira e mexe o cito nesse blog) resumiria bem o trecho: Um, Nenhum, Cem Mil. Se nossa existência torna-se perene através dos outros, conseguimos ser todos e, concomitantemente, nenhum.

Ademais, os imortais do conto decidiram viver no pensamento, ao qual se entregavam esquecendo-se do mundo físico. Ou seja, o caminho para a imortalidade estaria no pensamento. Como pensar sem linguagem? Sem palavras? Hum, então as palavras seriam o veículo para esse universo dos imortais e, dessa forma, os pensamentos expressos mediante palavras estariam sempre ecoando em outros pensamentos, em outras palavras.
"Quando o fim se aproxima, já não restam imagens da recordação; só restam palavras. (...) Eu fui Homero; em breve, serei Ninguém, como Ulisses; em breve serei todos: estarei morto." 
Nesse sentido, a forma e a estrutura narrativa do conto trazem uma metalinguagem que recria, ela própria, a imortalidade circular tratada pela história. O protagonista reverberou em seu texto as palavras de outros autores e, no seu processo ficcional, assim também o fez Borges. Avançando nessas elucubrações, este meu próprio post dá continuidade a essa circularidade, uma vez que ecos de Homero, de Bacon, de Borges surgem aqui reproduzidos. Seria essa a razão inconsciente que me leva a escrever todas estas groselhas no blog? Garantir minha própria imortalidade e, simultaneamente, contribuir para a imortalidade dos livros e autores que leio? Será? Seria cômico, visto que, conscientemente, não sinto nenhuma intenção de ser imortal, porque, como descrito no próprio conto de Borges:
“(...), aumentar a vida dos homens era aumentar sua agonia e multiplicar o número de suas mortes.”
Tratando-se desse modo a imortalidade, desafia-se a própria percepção do conceito de tempo, não é mesmo? O qual, aliás, é outro tema favorito do escritor argentino. Seria lógico falar em passado, presente e futuro, quando tudo é eterno?

***

Certo, agora é o momento das correlações nada acadêmicas. Ocorre que, em O Imortal, a imortalidade seria conquistada através das águas de um rio:
"(...) "o rio secreto que purifica os homens da morte. (...) rio cujas águas dão a imortalidade."
Pois muito bem; e que tipo de associações esdrúxulas minha mente elaborou com essa informação?

1. A mais óbvia (??!!): o Poço de Lázaro - The Lazarus Pit! Entendo bulhufas a respeito de super-heróis, contudo, vendo a série ajambrada Arrow, do canal CW, aprendi que o vilão da DC Comics chamado Ra's al Ghul tem esse tal Poço de Lázaro que lhe garante a imortalidade, veja só. A razão para usar “Lázaro” - homem ressuscitado por Jesus – no título dessa arma secreta é fácil captar, entretanto o “poço/pit” ficou mais interessante com a leitura desse conto.

Borges x DC Comics! Às vezes, nem eu acredito nas minhas presepadas audaciosas.

2. Na sequência, aprontarei mais esta: Borges x The Leftovers! Isso mesmo, aquela série excelente da HBO, que tornou-se uma das minhas favoritas da vida. Elaborarei uma breve explicação para essa segunda presepada. Dentre os diversos temas tratados em The Leftovers, encontramos estes: o enigma maior sobre nossa existência, os desafios relacionados à compreensão de nossa realidade e mortalidade (alguns dos temas recorrentes na obra de Borges!). Nesse contexto, os roteiristas recorrem ao elemento água inúmeras vezes ao longo dos episódios. No universo ficcional constituído por realidades paralelas (opa, Borges novamente), a personagem interpretada por Theroux, Kevin Garvey, seria aparentemente imortal - pelo menos, ele retorna do mundo dos mortos cerca de 02-03x -, e a água é o veículo utilizado para essa travessia. Selecionei algumas cenas a fim de tentar ilustrar essa onipresença da água na série:



      
                
Já que a água molhou meu caminho novamente com o conto de Borges, aproveitarei para dar uma olhadela rápida no livro de símbolos que possuo. Antes, algumas alusões são muito fáceis de serem feitas, obviamente. Nossa existência, afinal, começa dentro de uma bolsa preenchida por líquido amniótico e, regredindo ainda mais na linha temporal, o surgimento dos primeiros seres vivos na Terra foi patrocinado amplamente pela presença da água. Ah, e temos ainda a água utilizada no batismo, representando vida, morte e ressurreição.

J.C. Cirlot, no Dictionary of Symbols, afirmou algo meio óbvio, mas para o qual eu não tinha atinado. Por não possuir uma forma fixa, a água correlaciona-se bastante à noção que discuti de uma existência simbiótica infinita. Ou não? Este trecho, escrito por Cirlot, resume bem o que tento expressar:
“On the cosmic level, the equivalent of immersion is the flood, which causes all forms to dissolve and return to a fluid state, thus liberating the elements which will later be recombined in new cosmic patterns.”
Esta segunda afirmação, do mesmo autor, tornou as coisas divertidas:
“This ‘fluid body’ is interpreted by modern psychology as a symbol of the unconscious, (...)”
Uma eternidade conquistada através da água ou, em outras palavras, de um inconsciente coletivo?! Mas é claro! É precisamente isso! Hum, ou ainda... Uma memória coletiva?

Os dados que encontrei a respeito do símbolo “rio” também caem como uma luva (nenhuma surpresa) em O Imortal  - grifo meu:
 “River is an ambivalent symbol since it corresponds to the creative power both of nature and of time. On the one hand it signifies fertility and the progressive irrigation of the soil; and on the other hand it stands for the irreversible passage of time and, in consequence, for a sense of loss and oblivion.”

No mais, apenas acrescento o tom onírico de toda a narrativa, o que nos faz questionar se aquilo que lemos é real ou um sonho. Contudo sempre surge a interrogação: o que seria o Real? 

Ok, acho que essas foram minhas impressões principais. Fico devendo possíveis correlações com Ilíada/Odisseia, pois, como confessei, nunca os li. 


Vamos ao vídeo da Aline Aimée. Play! > LINK AQUI.


[Comentários pessoais pós-vídeo:]

Peço perdão, pois concederei espaço para um breve autoelogio: considerando-se o teor da ótima análise de Aimée, parece que me saí melhor do que eu imaginava. Poxa, consegui, sim, captar boa parte da essência do conto. Yay!

Quanto ao que me escapou, aponto que foi, principalmente, a ideia explorada por Borges de que a imortalidade, tal como a concebemos imediatamente (= viver no plano físico eternamente), seria terrível, visto que tiraria do Homem o senso de propósito. A morte é o que confere sentido à vida. O próprio nome Joseph Cartaphilus, citado logo no início do conto, já carrega esse conceito de que a imortalidade seria um castigo ao Homem. Eu até tinha pesquisado o nome e encontrado a informação de que ele era o judeu errante, no entanto morri na praia antes de fazer a ligação de que a "maldição" que Jesus aplica-lhe é justamente a imortalidade. Como esclarece Aimée: "Ele não morreria até que Jesus voltasse, até o fim dos tempos." Interessante demais. Quando escrevi que eu mesma, conscientemente, não tinha nenhum desejo de ser imortal, nem tinha pensado sob essa perspectiva do Borges, mas, sim, porque me agrada muito mais "ser ninguém" - inclusive, aprendi com a Aimée que essa é uma frase da obra de Homero.

A proposta de Borges para o tipo de imortalidade possível, do modo como discuti e como também o fez Aimée, seria portanto o contraponto efetivamente viável. Ou seja, a imortalidade sobrevém apenas com a tradição cultural que se propaga com a atuação de todos os homens. Aimée ressalta que Homero teria conseguido exatamente isso, uma vez que ele é recorrentemente referido por outros escritores. Todos escritos seriam continuação de Homero.

Outra ligação que falhei em estabelecer foi entre palavras (como registrei, os instrumentos para a imortalidade) e, logicamente, livros! São os livros que assumem o papel daquele espelho do mundo, com ele estabelecendo reflexos mútuos. Evidente! Livros são formados por vários outros livros, e gostei desta fala da Aimée: "Os textos de Borges são como bibliotecas." Igualmente não tinha percebido ativamente que Borges reproduz, nesse conto, sua teoria da imortalidade não somente pelas citações e referências - como afirmei -, mas também mediante reprodução da “narrativa de jornada” desenvolvida por Homero. Além disso, desconhecia que o autor referia a si próprio como um escritor leitor; um autor que simplesmente reescreve tudo que lê. Fascinante.

Para finalizar, uma especulação. Aimée optou por não discutir as correntes filosóficas exploradas no conto por Borges, entretanto ela cita brevemente isto: "Ele cita aqui um filósofo Gianbattista Vico que falaria de uma teoria cíclica (...)". Daí, confabulo: ignorando a teoria desse filósofo italiano, será que consegui inferir corretamente a referência filosófica, ao fazer aquela relação da circularidade?! Em pesquisa breve no site Wikipedia, localizei estes dados

"Cyclical history (Corsi e ricorsi)

Vico believed in a cyclical philosophy of history where human history is created by man. His term for the cyclical nature of history was "corsi e ricorsi". Most importantly, man and society move in parallel from barbarism to civilization.
As societies become more developed socially, human nature also develops, and both manifest their development in changes in language, myth, folklore, economy, etc.; in short, social change produces cultural change.

Vico is therefore using an original organic idea that culture is a system of socially produced and structured elements. Hence, knowledge of any society comes from the social structure of that society, explicable, therefore, only in terms of its own language. As such, one may find a dialectical relationship between language, knowledge and social structure.


Relying on a complex etymology, Vico argues in the Scienza Nuova that civilization develops in a recurring cycle (ricorso) of three ages: (...)"

Não houve uma equivalência exata, mas cheguei relativamente perto. Boa. 

***
Adorei a brincadeira! Farei um esforço para manter esse exercício com a Aimée; a quem agradeço imensamente pelos vídeos. 

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