05/12/2018

Alejandra Pizarnik; Diarios (#01) - Setembro/1954

* Proposta do post: (1) anotar trechos, (2) devanear a partir das entradas de Pizarnik, (3) dar pitacos inúteis sobre o que ela escreve e/ou (4) estabelecer conexões. Uma conversa.

 Texto sinalizado com 📔, em verde itálico = entradas originais de Alejandra Pizarnik.


Cuaderno de Septiembre de 1954 

24 de Septiembre 
📔 "Un nuevo día lleno de sol. Despego mi ventana y la luminosidad cae en la habitación. Luz amarilla y vital. Me da miedo por sus ansias fugitivas. No me acompaña en las horas de estudio, no me sonríe en mi encierro benéfico; todo lo contrario; me llama junto a sí, al paseo matinal, lleno de árboles y seres que caminan."

Essa presença da luz do dia como aparente entidade viva que invade nossas casas, nossa intimidade, para nos incitar à fuga e chamar (quase ordenar!) para o passeio matinal - para a vida? - remeteu-me diretamente ao artifício similar concebido por Bruno Schulz no conto Agosto (coletânea Lojas de Canela). Naquela ocasião de meu primeiro contato com esse incrível escritor, os trechos da brincadeira metafórica com a luz solar, que a todos inebria, me causou forte impressão por conta da enternecedora beleza. Creio haver semelhança, porém simultaneamente existe uma diferença crucial: a escritora argentina lamenta o antagonismo entre seu ânimo e o da luz; enquanto o polonês celebra o entusiasmo compartilhado pela luminosidade e suas personagens. Esta é a citação de Schulz a que me refiro:

Tradutor: Henrik Siewierski

📗

📔“De lejos, de muy lejos, venían los latidos de un perro. Se le ocurrió ubicar a ese perro en la cima de un planeta, Saturno, rodeado de los anillos de fuego (amarillo).”

Não resisti e arrisquei converter essa divertida imagem em uma colagem no journal:

Na continuação da frase, Pizarnik sinaliza que tentava se esquivar do sofrimento psíquico mediante o universo da imaginação, do irreal – escrita, leitura, sonhos –; embora reste sugerido que a dor a acompanhava inclusive por tais bandas. Parece corresponder ao grave estágio da depressão em que o indivíduo não consegue sequer realizar as atividades usualmente prazerosas e potencialmente terapêuticas.
📗

📔 "Los aullidos se acercaban, lo que motivaba el alejamiento del planeta fantaseado. A medida que se acerca lo comúnmente llamado real, se aleja (o se expulsa) la fantasía. En verdad no sabía qué preferir: si lo real o lo irreal. En cualquiera de ambos, se hallaba triste. Dejó correr el hilo esperanzado de su imaginación, mientras suspiraba inquisitiva y semirresignada."

No romance History (La Storia), escrito por Elsa Morante, esbarrei com uma valiosa expressão que imediatamente incorporei ao meu vocabulário, constatando agora que talvez ela também pudesse ter sido adotada por Pizarnik. É esta aqui: The Paralysis of Unhappiness – A Paralisia da Infelicidade. Quando meus olhos avistaram esse termo nas páginas da italiana, exclamei um eureka! repleto de alívio. Quantas vezes pelejei para explicar à terapeuta que os problemas do trabalho me paralisavam mesmo fora dele... Daí, numa obra de ficção, eu trombo com um rico garoto judeu e anarquista que, ao juntar-se (voluntariamente) aos camaradas operários no piso de uma fábrica insalubre, acaba acometido pela referida Paralisia da Infelicidade. Minha terapeuta não entendeu, porém a revelação de que uma escritora italiana sabe perfeitamente do que falo é confortante. Literatura é, por certo, a única terapia possível; não tem jeito.
Tradutor (italiano → inglês): William Weaver


Misturando minhas palavras às de Pizarnik e Morante: às vezes o real é suficientemente corrosivo - uma irrealidade contranatural de total infelicidade - a ponto de destruir até o subterfúgio construído, do que resulta uma paralisia devastadora. 
📗

📔“(…) sensación de no ser más que un corpúsculo rebelde en el cosmos descomunal.”

Esse tipo de pensamento me causa uma vertigem alucinante. No último mini-documentário que vi sobre a missão Apollo 8 da Nasa, o discurso dos astronautas relacionado ao confronto direto com a visível e irrefutável insignificância do planeta de mármore azul que simplesmente flutua na infinita imensidão negra me deixou extremamente ansiosa. [-Mas e eu, então; que sou um mero grãozinho de areia dentro desse balão que boia no nada?!] Sempre que minha mente envereda-se pela reflexão de que sou um corpúsculo rebelde no cosmos descomunal un corpúsculo rebelde en el cosmos descomunal, tenho a sensação de que o chão onde piso desaparece.

Este é o doc, dirigido por Emmanuel Vaughan-Lee e disponibilizado no canal The Atlantic:


No desenvolvimento do texto, a escritora inclui outra inspirada descrição daquilo que ela efetivamente é (e somos, sim?) no contexto cósmico. Aqui: 📔"Soy un trozo de humo solidificado. Soy un residuo que alguien olvidó en el Olimpo." Curiosamente, imagino que a própria Lua diria isso de si mesma, especialmente depois do que é mencionado a respeito dela no vídeo anexado.

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Por falar em Lua, Pizarnik associa o satélite natural terrestre ao plano dos sonhos, à realidade onírica. O sol, como inferi naquele trecho da luz, resta associado à vida real. E, como ela, lamento profundamente minha incapacidade de engatar psicodélicos sonhos lúcidos. Voilà:

📔"Tocó su rostro proveniente de allá, de la región desconocida plena de sueños que ahora no recordaba. Intentó atraer alguna señal que le permitiese el acceso consciente a ese mundillo nocturno del que acababa de surgir tan pálida como un habitante imaginario de la luna, cansada como una guerrillera valerosa; aspiró fuertemente sintiendo que su cuerpo se llenaba de un olor vivificante, olor de las mañanas, olor de café y de sol. Poco a poco sus ojos se abrían hacia el extraño arco iris matinal. Sus ojos eran el verde que faltaba para completar el prisma cotidiano."

📗

Retornando à luminescência, gostei da maneira como Pizarnik conecta nossa percepção da diária alternância luz/sombra à passagem do tempo: 

📔 "(...) El cuarto se hundía lentamente en una gris penumbra equilibrada por la luz breve del velador. (...) Su habitación se había introducido en las penumbras mientras ella estuvo elucubrando su fobia dominical. Se irritó. Nunca podía palpar realmente el cambio de luces y sombras de los días. Era como contemplar un reloj para comprobar empíricamente la velocidad del tiempo."

Trouxe à memória aquelas animações aceleradas, frequentemente exibidas em documentários/séries para transformar a passagem do tempo em imagem. No mesmo conto Agosto, Schulz também brinca poeticamente ao descrever sombras:

Hum, percebendo que tenho grande afeição a essa temática “luz x sombra”... Acho que é hora de sacar da estante o livro do Junichiro Tanizaki, Em Louvor da Sombra

Voltando ao que Pizarnik compartilha naquela passagem, acredito que sei do que ela escreve. Infelizmente, tenho certa familiaridade com o estado psíquico que faz com que treze horas ininterruptas sejam investidas dormindo, ao fim das quais o despertar ocorre a contragosto; um desentendimento entre o corpo que recusa-se a prolongar o sono e a mente que tenciona o apagão eterno. No momento dessa emersão à consciência, a distinção visual das nuances luminosas do quarto revela-se inútil para a localização temporal. Não raro, sobrevém a suspeita de que o tempo, só de pirraça, permaneceu suspenso durante o anestésico refúgio no palácio de Morfeu.

De fato, é mais ou menos isso que a escritora relata posteriormente:
📔 "8 y 1/2 h. Mi cuerpo no quiere levantarse, sino seguir durmiendo. Entreabro los ojos, aspirando los objetos de la habitación. Los cierro de nuevo, suspirando. ¡Cuántas cosas pierdo! ¡Cuántas sensaciones, vivencias, aprendizajes! ¡Todo por morir un poco más! ¡Todo por vivir menos, en ésta, mi dolorosa e irreal realidad! Y esa voz que te grita vives y no te veo vivir."

📗
26 de Septiembre

📔 "Entro en una librería desconocida. Me dirijo a los anaqueles coloreados, llena de curiosidad y tensa de emoción. La esperanza de hallar «algo nuevo» es quebrada por la voz del empleado que me pregunta qué títulos busco. No sé qué decirle. Al fin, recuerdo uno. No está. Hubiese querido seguir mirando, pero sentía sobre mí el peso de esa mirada comerciante, tan estrecha y desaprobadora ante alguien que «no sabe» lo que quiere. ¡Siempre lo mismo!"

Antecedendo esse trecho específico, houve a confissão de que o futuro angustia Pizarnik, ponto em que ela dispara a assustadora pergunta: "¿qué será de mí?". No livro The Gift of Therapy, Irvin Yalom menciona que a figura do paciente que não sabe o que quer é bastante comum na prática clínica. A piada é que, ainda segundo Yalom, há casos tão ~complicados~, que até o terapeuta precisa se segurar para não perder as estribeiras e deixar transparecer a tal desaprovação social referida por Pizarnik no trecho que transcrevi acima — el peso de esa mirada comerciante, tan estrecha y desaprobadora ante alguien que «no sabe» lo que quiere. Nas palavras de Yalom:



Nem preciso confessar os motivos pelos quais essa informação do livro de Yalom ficou incrustada em minha memória, né? 

No mais, curti a correlação que Pizarnik estabelece entre o frequente desnorteio perante a vida e a experiência da visita a livrarias. Aliás, a última (e deliciosamente maluca) animação japonesa a que assisti - The Night is Long, Walk on Girl - brinca proximamente com a metáfora que a poeta apresentou:


Por fim, confabulei que talvez eu possa utilizar a alegoria de Pizarnik em benefício próprio; digo, usá-la para fazer as pazes com minhas dúvidas. Tal qual a caça ao livro, a caça ao tesouro vital (= decisões/respostas saturadas de certeza) pode ser alegre e exultante. Será? Os caminhos possíveis para a vida são muitos, ok; mas o desafio das escolhas precisa ser necessariamente sofrido? Se panz, o barato do jogo da vida é justamente este: o contínuo processo de "escolha-erro-acerto-escolha-acerto-erro-escolha...". 

Ah, e para conectar essas divagações aos acontecimentos recentes de minha realidade: lamentável que 600 livrarias tenham fechado suas portas no país, consequentemente inviabilizando a mágica pesca para tantos leitores. Para não bancar a hipócrita, é imperioso reconhecer que talvez eu tenha contribuído para essa conta - ou, no mínimo, não cooperei na prevenção. Neste ano, por exemplo, estimo ter comprado apenas 01 livro em livraria física. E foi para presentear uma amiga. Adianta usar a falta de carro como desculpa? (Por onde circulo, não há ne-nhu-ma livraria; veja bem.) Oh well.

📗

📔 "Acá, entre el cansancio y el humo, entre el Miedo y las ansias inmortales, me digo: he de escribir o morir. He de llenar cuadernillos o morir."

No dia anterior àquele em que li essa frase da Pizarnik, eu havia me deparado com uma construção / proposição relativamente parecida em um conto de Ernest Hemingway, entremeado de elementos autobiográficos. O americano escreveu:

Desde que constatei, com o livro The Lonely City, escrito por Olivia Laing, que até artistas relacionados às artes visuais variavelmente sucumbem à arte da escrita, fiquei ainda mais tentada a desvendar este grande mistério: o que instiga uma pessoa a escrever? Que impulso doido é esse? E, por favor, o famigerado papinho “Ãin, mas nem consigo me ver não escrevendo; Ãin, escrever é como respirar” não me serve pra nada, porque as considero falas clichês vazias de significado (pelo menos, para meus propósitos). Sim, eu escrevo umas groselhas neste espaço, contudo quem disse que eu sei por quê? Enfim, tenho estado especialmente atenta, durante minhas leituras, a trechos que abordam essa questão que tanto me intriga e fascina. Nos casos de Pizarnik e Hemingway, a escrita parece representar uma rota de fuga da realidade fatual, ou, de outra forma, um artifício aniquilador da realidade opressora. Por meio da escrita, a autora argentina escapa do real mediante o mundo imaginário; o americano, por sua vez, consegue apagar determinados elementos do real, espécie de descarrego pela palavra.

Na entrada de 28/09/1954, entretanto, Pizarnik acrescenta este dado:
📔 "Compruebo que no es posible escribir bajo el «dolor puro». Hace unos instantes me sentía tan, pero tan angustiada que, cuando traté de concretar por escrito mis emociones, la pluma resbaló de mis dedos llorosos."

Ou seja, novamente ela reforça que, por vezes, a depressão era tão intensa, que paralisava sua escrita. A Paralisia da Infelicidade! Não disse?!

📗

📔 "(...) porque yo no pedí nacer en forma de signo de interrogación (...)"

Nascer em formato de ponto de interrogação… Não é esplêndido?! Penso que, se eu juntar essa ideia ao bordão da personagem Settembrini, do livro A Montanha Mágica (Thomas Mann), chegarei à definição perfeita da minha pessoa: sou um ponto de interrogação que leva uma vida horizontal,

sou uma interrogação horizontal! 

📗

📔 "el reloj es un viejo que murió de un ataque al corazón y luego resucitó (para vengarse de los que se sentían molestos con el ruido de sus latidos)." 

O relógio é um homem velho que morreu de um ataque cardíaco e depois ressuscitou (para se vingar daqueles que se sentiam incomodados com o barulho de seu batimento cardíaco).

Nunca mais olharei para um relógio do mesmo jeito. 

📗

28 de Septiembre

📔 ¿Quién me enseñó el nombre de Shakespeare? Nadie. Nací con este nombre grabado a priori en mi nebulosa. ¡«Esto» es eternidad!

Possível firmar conexão direta com Borges, é claro; visto que essa concepção permeia toda a obra dele. No conto O Imortal, conforme divaguei aqui no blog, Borges defende justamente o mesmo que Pizarnik: a imortalidade, da qual deriva a eternidade, provém dos livros. Recorda-se de quando ouviu o nome do Bardo pela primeira vez? Será que Shakespeare já faz parte de nosso código genético?!

📗

📔 "Una humilde mujer ha tocado el timbre. Viene a ofrecerse como sirviente. La miro: morena, mal vestida, grosera, con una horrible voz agudizada por el hambre (quizás). Le hablo. Para mí, su imagen no es más que una experiencia, es un «modelo» de la clase que representa. Nuestra conversación merece de mi parte la consideración de un juego empírico. Y, ¿cómo será para ella? ¡Ah! Es algo muy serio. Acá se debate su trabajar o no; su vivir o no; su subsistir o no… Creo que no fue posible hallar un golpe más brusco para mi angustia trascendental."

Esse tipo de autocrítica aparece recorrentemente nas palavras de Pizarnik. Ela faz chacota de si mesma, da dor que lhe parece risível e simplória, visto que a vida dela, quando analisada pela lupa da consciência, não oferece razões que justifiquem tamanha tristeza.

O confronto com outra mulher cujas aflições existenciais correspondem ao “será que arrumarei trabalho? será que terei o que comer amanhã?” efetivamente não aquieta o conflito interno da autora, segundo a entrada destacada acima. Perspectiva: a valiosa joia que também é uma merda.

A zombaria auto-depreciativa rende, inclusive, versos:

📔 (...) ¡Háblenme de gitanas sucias y despatriadas!
     ¡Háblenme de estrellas sin cielo!
     ¡Háblenme de flores sin pétalos!
     ¡Yo, sólo yo sufro! (...)
📗

📔 "Atisbó su alma para comprobar el efecto que le producía esta palabra fatal: morir. No. Sólo nada. Su alma asentía en silencio. Ya no le importaba no ser. Quiso sonreír y el llanto sobrevino. ¡No ser! Y ahora, ¿acaso ella era? ¿Qué era? ¡Un grito de dolor! Un simulacro fastidioso de agonía humana que ocultaba un prosaico y pequeño fracaso: ¡el de su vida!
(...)
Trató de ocultarse, de sonreír aun cuando la falsedad de su alegría fuese conciente."


Sim, suponho que aqueles versos do poema O Quarto do Suicida, de Wislawa Szymborska
aludem justamente à ocultação referida por Pizarnik. Trata-se de processo extenuante e frágil, que costuma ruir diante das mais tolas pressões externas.

📗

Para o primeiro caderno, é isto. Super alto-astral, hein?

24/11/2018

To ring or not to ring, that is the question


Eu, Daniela, uma lazarenta spinster balzaquiana sem muita vergonha na cara, faço parte da tripulação de um ship de série de TV. Shippo, não nego, paro quando puder. Se inicio esse alinhavo com tão embaraçosa confissão, é porque tomei uns cruzados de direita cravados por leituras recentes; justamente porque o ship me fez baixar a guarda. Explico.

Em companhia dos colegas tripulantes do ship, aturei muitas idas e vindas rocambolescas e estapafúrdias de meu glorioso One True Pairing - OTP; todas porcamente arquitetadas por incompetentes roteiristas sem coração. A despeito dessas amargas intempéries, toda a tripulação permaneceu firme e, após longos anos repletos de raiva e dor, obtivemos finalmente a sonhada recompensa: nosso casal foi reconhecido canon e o casamento oficial aconteceu. Pronto; agora é o momento da segunda revelação constrangedora: cada vez que o OTP aparece em cena e a câmera enquadra graciosamente as alianças nos dedinhos dos dois, eu banco a tonta assim: 💖😍💖 (Estou velha demais pra posar de fangirl adolescente; mas é que eles estão super bonitiiiiiiinhos.) Embora eu não estabeleça um diálogo próximo com outros tripulantes do ship, pude perceber, mediante comentários em sites diversos, que essa reação parece ser compartilhada por muitos. Em rápido levantamento retrospectivo, consegui localizar este exemplo:

Enfim, esse lero-lero introdutório serve para demonstrar que, nos últimos meses, meu lado romântico está embriagado pela imagem da aliança matrimonial. Nesse estado deplorável, acabei servindo de presa fácil para uns textos que ~meio que~ descem o sarrafo na marmota aliança de casamento. Hum, seria mesmo uma marmota? Cenas dos próximos pontos do alinhavo.

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O primeiro peteleco partiu de um trecho do livrinho ali ↰. Atualmente escalo (a sofridos passos de tartaruga) essa tal Montanha Mágica concebida por Thomas Mann e, em certo ponto da subida, apareceu um papo a respeito de alianças que, claro, imediatamente despertou minha atenção. 

O lance começa com moço Hans Castorp, o protagonista paspalhão que está lá todo suspirando por Mme Clávdia Chauchat, paciente russa do Sanatório Internacional Berghof. Aproveitando a pasmaceira que reina no lugar, Hans puxa conversa fiada com a professora Engelhart, vizinha de mesa dele, a fim de obter informações sobre o crush.

Entre as curiosidades que Hans deseja apaziguar, consta a preliminar necessidade de confirmar se Cládvia é casada. Como o bobalhão não avista aliança no dedo da moça, ele desconfia do relato prévio de que o crush é uma senhora oficialmente comprometida. Já que quem pergunta o que quer, ouve o que não quer; ao externar tais questionamentos, ele acaba tendo de escutar um textão lacrador da senhora Engelhart. Aliás, ele e eu. Acho? Bom, para a senhora Engelhart, essa coisa de aliança é prosaica e negativa; mero símbolo de servidão que confere às mulheres um quê de freira, um quê de florzinhas não-me-toques. Visto que a professora sabe por fontes seguras que Mme Chauchat é, sim, casada; Engelhart conjectura que a russinha, sendo tão jovem e moderna, simplesmente não deve ter vontade, nem ver motivos para mostrar seus laços conjugais a todo cavalheiro que lhe aperta a mão. Engelhart supõe que Cládvia julga o uso de aliança um costume burguês (eita), afirmando mesmo que "andar assim com uma argola lisa no dedo - só falta o molho de chaves num cestinho..." E aí; que tal o discurso da professora? Minha deusa interior feminista interior, até então inebriada pelo suposto gaslighting (?) promovido pelo ship casado, reagiu deste jeito (imagens reais):

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E não parou aí, pois em seguida acabei vítima de outra bordoada desferida por - ninguém mais, 

ninguém menos que - Angela Carter. Especificamente, o golpe partiu do conto The Bloody Chamber, versão da autora inglesa para o conto de fadas O Barba Azul, escrito originalmente por Charles Perrault. A narrativa de Carter atira símbolos para todos os lados e, evidentemente, a aliança surge majestosa no meio do tiroteio.

A protagonista do conto é uma humilde mocinha virgem de apenas dezessete anos que se casa com um rico marquês que já tinha despachado para o caixão três esposas. Quem conhece o conto de fadas que serviu de inspiração sabe o destino final que aquelas pobres mulheres efetivamente tiveram. No contexto dessa obra, a aliança — precisamente, uma solitária opala:

(1) É símbolo da longa sucessão de mulheres que padeceram nas mãos de homens violentos e opressores. A linhagem de dedos femininos ornados pela opala, antigo presente de Catherine de Medici (!), remonta à avó do marquês e inclui todas as esposas que repousavam eternamente na câmara sangrenta do marido algoz. E, se dependesse das intenções do Barba Azul de Carter, a continuidade da genealogia conjugal estaria garantida mediante o anel que ele faz questão de exigir de volta.
"Give it me back, whore." 
The fires in the opal had all died down. I gladly slipped it from my finger and, even in that dolorous place, my heart was lighter for the lack of it. My husband took it lovingly and lodged it on the tip of his finger; it would go no further. 
"It will serve me for a dozen more fiancees," he said. "
(2) Integra toda a parafernália que representa o exílio doméstico da heroína. A visão do brilho da opala obriga a protagonista a reconhecer que, por conta de sua ingenuidade e inexperiência, ela havia se deixado seduzir pelas riquezas do marquês.
"My first thought, when I saw the ring for which I had sold myself to this fate, was, how to escape it."
(3) Simboliza a relação de poder; a posse do marido que, sem maiores surpresas, exige que a esposa exiba a opala inclusive por cima da luva. A imagem da aliança sinaliza aos demais que aquela mulher era um objeto que tinha dono. 
"My husband liked me to wear my opal over my kid glove, a showy, theatrical trick -- but the moment the ironic chauffeur glimpsed its simmering flash he smiled, as though it was proof positive I was his master's wife".
(4) (de arrepiar os cabelos:) Representa o marido onipresente; a opala, os olhos do esposo que tudo vê.
" The light caught the fire opal on my hand so that it flashed, once, with a baleful light, as if to tell me the eye of God -- his eye -- was upon me."
Obviamente, a vozinha da feminista interior veio me aporrinhar de novo os pacovás:

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Posteriormente, dei asas às minhas tendências mexeriqueiras ("shame on me" número 3) para investigar se, conforme eu tinha passado a suspeitar, o símbolo da aliança surge em algum verso de Sylvia Plath com conotação similar àquelas encontradas nas recentes leituras. Dado o que conhecemos da biografia de Plath, notadamente do casamento dela com Ted Hughes, a bisbilhotice espontaneamente surgiu. (Perdão?) Bom, dei de cara com isto (grifos meus):

The Couriers

The word of a snail on the plate of a leaf?
It is not mine. Do not accept it.

Acetic acid in a sealed tin?
Do not accept it. It is not genuine.

A ring of gold with the sun in it?
Lies. Lies and a grief.


Frost on a leaf, the immaculate
Cauldron, talking and crackling

All to itself on the top of each
Of nine black Alps,

A disturbance in mirrors,
The sea shattering its grey one——

 Love, love, my season.

E isto:

The Rabbit Catcher (* incluí apenas a estrofe final:)

(...)

And we, too, had a relationship——
Tight wires between us,
Pegs too deep to uproot, and a mind like a ring
Sliding shut on some quick thing,
The constriction killing me also.


Continuei alimentando minhas tendências conspiratórias, dessa vez com Ana Cristina César e, por coincidência (?), a metáfora da aliança como espécie de objeto constritor que sufoca, que tolhe a liberdade feminina (algo próximo ao poema de Plath...?) também aparenta estar presente:
(Por favor, focar no "aparenta", porque 1. não manjo de poemas, 2. desconheço detalhes da biografia de ACC)

Sábado de aleluia (* incluí apenas alguns versos:)

(...)

Eram brincos caídos
e um anel de jade que selasse numa dura castidade
minha fúria de batalha
que viaja e volta.
                                                                                        ---

Considerando-se que a toca do coelho já se encontrava aos meus pés, decidi me atirar; porém sem me aprofundar, admito. Realizei somente uma googlada fajuta que pudesse confirmar resumidamente a história básica: quando e como, afinal de contas, começou a tradição da troca de alianças em casamentos? Rá!; “troca”?! A primeira questão crucial que esqueci de notar refere-se exatamente à inexistência de uma troca nos primórdios dessa prática. O uso compartilhado do ornamento por casais é agora tão popular e dominante, que de fato meus devaneios não atinaram que homens casados só começaram a ornar seus dedinhos com um anel a partir da segunda metade do século XX (!). Essa mudança, pelo que apurei, teria sido preliminarmente patrocinada pelos combatentes da 2a. Guerra Mundial, para quem o objeto simbolizava uma lembrança afetuosa das esposas e famílias que eles tinham sido obrigados a deixar para trás. Movimentos feministas daquele século também parecem ter exercido algum papel na mudança do padrão. 

A dinâmica social relacionada à histórica presença da aliança em casamentos realmente aproxima-se mais àquela explorada por Carter e defendida por Engelhart, visto que só era usada pelas esposas e usualmente sinalizava que a mulher tinha dono, era propriedade de um marido. E, nesse sentido, meu instinto fangirl sentimental não foi acalentado pela recordação de que as cerimônias de celebração dos contratos feudais frequentemente usavam anéis para simbolizar a investidura e os laços de fidelidade firmados entre suserano e vassalo durante a idade média. (Holy shit)

O uso compartilhado do adorno é hoje muito mais prevalente; certo, contudo minha superficial pesquisa revelou uma anedota curiosa que eu desconhecia: o príncipe William esnobou a aliança. Sim, o Duque de Cambridge, segundo matéria que li, alegou ser avesso a joias de todo e qualquer tipo, razão pela qual ele teria optado manter os dedos desnudos. Embora eu considere que o sentido da coisa resta amplamente perdido quando apenas um lado usa a peça; julguei ~tudo tranquilo~ - se os dois estão de acordo, quem sou eu para dar pitaco, confere? Igualmente não embarco na onda "hum, ele quer deixar o terreno livre hahaha", pois a lorota de usar aliança para coibir galanteios de terceiros — uma espécie de sinal vermelho — é por demais tola e disparatada. O legal dessa brincadeira reflexiva, entretanto, correspondeu à indagação provocadora feita pelo jornalista do artigo: e se o único repudiador da aliança tivesse sido a esposa, Duquesa Kate Middleton, hein? Será que a galera estaria de boas se a Duquesa fosse o cônjuge a desfilar por aí sem um anel* no dedo? Ora, ora; veja só. (*Anel que, a propósito, pertencera à falecida sogra traída pelo respectivo marido, o senhor Charles. Oh boy.)

Para arrematar o alinhavo, resgato a pergunta que deixei suspensa na introdução: aliança de casamento é uma marmota? Bem, a despeito do ponto de vista encontrado nas últimas leituras e dos achados da superficial pesquisa, lamento reportar que, após sérias ponderações embaixo do chuveiro, o lado romântico bobinho persistiu levando a melhor em cima da feminista interior. Placar final: sem objeções ao uso *compartilhado* do anel (quem quiser, usa; quem não quiser, não usa); caráter não marmotoso. O resultado foi apertado, é verdade, porém acredito que é o que tenho para hoje


Em minhas toscas divagações, confabulei que gastar energia problematizando um anel significaria desvirtuar-se da real questão: estruturas sociais patriarcais e concretas dinâmicas matrimoniais perniciosas. Pode ser, ou nem? Naquele próprio conto da Angela Carter, por exemplo, a heroína casa-se novamente com um homem capaz de construir uma relação de respeito e companheirismo recíprocos com uma mulher. Conforme também afirma Rosemary Moore, a protagonista "substitui uma relação marcada pelo poder e submissão por outra de afeto e igualdade mútuos." A narrativa de Carter não diz se houve uma nova aliança na parada, mas ousarei lançar a hipótese no mundo ficcional: e se a narradora tivesse afirmado que sim? Essa segunda aliança presumida, naquela nova realidade conjugal, teria valor simbólico equivalente ao da opala reluzente do marquês? Deveria ser igualmente condenada? Sei lá, estou humildemente assumindo que minha ingenuidade lírica teima em não abrir mão do objeto que, para os egípcios, encarnava a vena amoris = a veia do amor que parte do coração até o quarto dedo da mão esquerda. Enquanto dois seres humanos forem capazes de estabelecer entre si um genuíno e recíproco laço afetivo (são? aqui, é meu lado cínico que manifesta uma duríssima contestação), acredito que resistirei à tentação de demonizar em absoluto todo e qualquer objeto trocado para simbolizar, celebrar e reforçar a existência do elo. Aliás, encerro a postagem deliberadamente com a palavra "objeto", em vez de anel/aliança, porque considero imprescindível ressaltar que 1. a ideia à qual me apego aqui não exige necessariamente um anel, 2. nem refere-se necessariamente a uma relação de amor romântico; 3. ah, e tampouco restringe-se a casais héteros, é lógico. Lanço dois caros exemplos ficcionais que representam bem (acho) o teor da defesa que porcamente tentei apresentar. São eles:

 → Anel "BFF - Melhores Amigos Para Sempre", dos amigos Bob Esponja e Patrick:


→ Os colares de caveira usados pelo lindo e apaixonado casal vampiresco do filme Only Lovers Left Alive (💛):

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Ok; hoje, fico de fato com esse posicionamento e escolho continuar a bordo do ship, conservando a empolgação pueril diante das cenas protagonizadas pelas alianças do OTP.  Amanhã? Sequer sei se estarei viva amanhã, portanto: ¯\_(ツ)_/¯

06/11/2018

má oi; tá ok ou não tá?!


E lá vou eu para outro episódio da série "Se uma agente do futuro me disesse que logo mais eu estaria fazendo X, eu mandaria um '- haha, tá louca, amiga?' ". O X da vez é escrever sobre política. Inicialmente, a perspectiva de aprontar tamanho despautério me deixou bem apoquentada, porém os ânimos se apaziguaram quando lembrei das sábias e certeiras palavras da grande filósofa Leslie Knope:
"Política, né?
Fazer o quê?"
                                                                                            - Leslie Knope

Considerando-se que este espaço é um reles diarinho temático pessoal, apenas registrarei um inocente desabafo entremeado de livros, de tal modo que as análises políticas acertadas permanecerão reservadas àqueles devidamente capacitados.
...

Para começar os trabalhos, apelo (sem muita originalidade) para Radiohead - "2+2=5":

It's the devil's way now
There is no way out
You can scream and you can shout
It is too late now

Parece que é isso? Agora, dançaremos a coreografia idealizada pelo capiroto e não adianta espernear? Bom, pelo menos a trupe está dizendo que "é melhor já ir se acostumando", então acho que é isso, sim. Mas, sei lá, esse slogan que o Mestre bolou para nos dar as boas-vindas à nova era soa tão acolhedor e carinhoso, não? Aquece tanto o coração, que talvez a gente até se divirta, né? É, pode ser. (...) De qualquer jeito, a previsão cantada por Thom, de que o ritmo da dança mudaria porque eu não estava prestando atenção, é definitivamente precisa. Sendo assim, meu presente desabafo será caracterizado exatamente pela descrição das tresloucadas fases transcorridas até a queda da ficha.

Bora lá.

[fase da negação]
Quando a referida candidatura do novo coreógrafo despontou de forma consolidada, eu a encarei como uma completa piada — de mau gosto, mas ainda assim uma piada — e estava absolutamente convicta de que todos estavam nessa mesma sintonia. Ou seja, até alguns meses atrás, eu tinha certeza de que nenhum eleitor em sã consciência sequer cogitava tascar um confirma ao lado da foto daquele candidato. Contudo, ~certo~ dia, eis que descubro que uma ~certa~ pessoa, de um ~certo~ meio por onde circulo (forçada etc), não apenas votaria naquele candidato, como estava engajada ativamente naquela campanha. De início, chacoalhei a cabeça tentando espantar a confusão promovida pela inesperada descoberta, em seguida arrisquei uma ponderação racional. Efetivamente, pensei coisas do tipo "nah, tá tudo bem, ela é só o ponto fora da curva"; "ah, mas dessa pessoa, talvez eu nem devesse ter esperado algo diferente. tá beleza, tudo normal."
 
[fase da raiva]
O procedimento de negação foi tão eficiente que, por alguns instantes, fiquei ansiosa para compartilhar com os demais colegas a hilária anedota de que tínhamos entre nós uma "maluca" eleitora daquele coreógrafo. Deus deve ter sentido compaixão por mim (às vezes, ele tem dessas), porque antes mesmo que tal vexame ocorresse, fui exposta à autêntica realidade: TO-DOS daquele lugar votariam efusivamente naquela candidatura. Acho que o choque foi tão desconcertante que, durante alguns minutos, embarquei em uma discussão ligeiramente acalorada com eles. Ora, dado que usualmente eu mal falo com aquele povo, minha reação foi um tanto surpreendente.

Dentre treze candidatos, como diabos (ai) aquele poderia ser quem a galera julgava menos pior melhor preparado??!! Será que prestaram atenção nas propostas coreográficas do moço?! Opa, retifico: será que prestaram atenção, por trás da espessa cortina de fumaça moral, na ausência de propostas referentes às questões verdadeiramente primordiais no momento? Nem a própria figura sabe a dança que proporá, caso assuma o posto, caramba!! Para onde foi o diálogo? E as discussões, negociações? Ler a Constituição, que é bom, nem parece ter rolado por aquele lá. Ah, e então a estratégia à la "O Senhor das Moscas" (William Golding) — alimentar a crença na existência do Bicho (-Papão), para lacrar seguidores obedientes a um líder — ainda cola?!?! O passo "salvador da pátria milagreiro" ainda não foi superado pelos caros colegas bailarinos? WTF??!!

[fase da barganha]
O estágio seguinte correspondeu à radical montanha-russa de devaneios introspectivos nos quais me afoguei. Pelejei para processar toda a novidade e, como tentativa de auxílio, a memória catapultou, à minha reflexiva consciência, alguns livros previamente lidos.

Acontecimentos na Irrealidade Imediata, escrito pelo romeno Max Blecher, aflorou no início das divagações. Especificamente, resgatei a cena em que a protagonista do livro faz "uma descoberta assombrosa": o quadro familiar que supostamente representava um rei e uma rainha com traços finos e seguros era, na verdade, um amontoado de letrinhas visíveis apenas mediante auxílio de uma lupa. Segue o trecho em que a personagem expõe sua consternação com a experiência:

Max Blecher; Acontecimentos na Irrealidade Imediata
Cosac Naify, Tradutor: Fernando Klabin

Percebi que a proximidade do dia da eleição operou pra mim tal qual uma lupa: não havia votos do tipo "qualquer candidato, exceto aquele". A pintura que me espreitava consistia em um único traço: "o voto é naquele candidato".

Também me lembrei prontamente da personagem Cassandra; do instante em que ela questiona suas próprias convicções proféticas quanto à queda de Troia e a guerra descabida. Na narrativa do mito grego concebida pela autora alemã Christa Wolf, foi isto que li:
Christa Wolf; Cassandra
Estação Liberdade; Tradução: Marijane Vieira Lisboa

Do mesmo modo que Cassandra, me vi rodeada por opiniões emitidas de maneira tão enérgica, que facilmente titubeei e conjecturei se eu seria a única doida da história. Até porque sequer possuo poderes proféticos infalíveis, veja bem. Eu já tinha pleno conhecimento de ser - isto, sim - uma total destrambelhada (minha psiquiatra e terapeuta nem me deixariam mentir), no entanto não tinha ciência de que a dimensão de minha loucura atingia níveis tão estratosféricos. Minha percepção da realidade estaria assim tão desregulada?? Tentei pôr em funcionamento as sinapses que pudessem me fazer perceber a realidade do jeito que ela se apresentava ao meu grupo, porém falhei miseravelmente. Não; por mais que me empenhasse, o meu real persistia representado pela asseveração de que aquele candidato era completamente incompetente e inadmissível do ponto de vista moral.

Logicamente, o terror marcou o passo seguinte. O medo de estar isolada em uma ilha e, pior, incapaz de discernir se eu estava na ilha da ignorância ou da clareza, passou a me dominar. Conforme questiona Cassandra: o que significa ter razão?! Essas palavras podem soar exageradas, contudo me senti de fato tomada pelo pavor de ser a lunática solitária que não entende patavina do que ocorre ao seu redor. Esse foi o ponto em que Sanna, a jovem narradora protagonista do livro After Midnight (Nacht Mitternatcht; 1937), escrito pela alemã Irmgard Keun, retornou aos meus pensamentos. Esse livro é muito interessante, pois retrata a rotina, os sentimentos e a realidade dos, digamos, alemães comuns; nos anos iniciais após a vitória eleitoral de Hitler pelo Partido Nacional Socialista  (Pré-Segunda Guerra). Imersa na máquina nazista que rapidamente começava a ditar as novas regras de conduta sócio-políticas, Sanna sucumbe algumas vezes ao desespero, por simplesmente não compreender aquele horror. Sei que seria ridículo comparar o que vivo hoje ao que os alemães viveram naquele período, é evidente, entretanto foco aqui na natureza do sentimento que acredito compartilhar com Sanna, destacando-se em especial que minha percepção da realidade atual teima em denunciar alguns elementos muito similares àqueles que a narradora descreve em After Midnight. Incluo passagens:

Irmgard Keun; After Midnight
Mellville House; Tradutora: Anthea Bell

Por fim, subitamente me dei conta de que minha estante contava com um novo livro do Alberto Manguel que inclui um capítulo - o primeiro - cujo título é "Cassandra". E o título do livro, ademais, é "A Cidade das Palavras". Durante uma eleição em que a proliferação de notícias falsas desempenhava aparente papel determinante, um livro cujo título inclui "Palavras" parecia promissor. Através da palavra, Deus criou o mundo; o homem, por sua vez... decidiu eleições?

Logo na largada da leitura daquele capítulo, Manguel me deixou muito feliz, uma vez que ele praticamente ratificou a estratégia reflexa adotada pelo meu cérebro: "deu tilt na decodificação da realidade? voltemos aos livros para tentar recalibrar o processador."

Alberto Manguel, A Cidade das Palavras
Companhia das Letras, Tradutor: Samuel Titan Jr.

Simultaneamente, porém, o autor justificou uma de minhas inquietações pessoais. Manguel explica que a linguagem surgiu há cerca de 50 mil anos "como um instrumento baseado numa representação convencional do mundo capaz de garantir a um grupo de homens e mulheres a convicção, por incerta que fosse, de que seus pontos de referência eram os mesmos e de que suas expressões traduziam uma realidade percebida de modo semelhante." Pois muito bem, a pergunta que me aporrinha os pacová, hoje, é a seguinte: se os indivíduos de uma sociedade permanecem inundados por um lamaçal de notícias deliberadamente manipuladas e falseadas segundo interesses, é possível evitar a formação de amplos abismos entre as diferentes percepções da realidade? A sociedade restaria, assim, fadada a extremismos? Assusta constatar que os próprios elementos que nos permitem construir a realidade estão corrompidos ou, de outra maneira, que muitas vezes sequer somos capazes de identificar o que está ou não corrompido. Na dúvida, galerinha está decidindo esse impasse por conta própria, seguindo o juízo e a conveniência pessoais. Tudo é verdadeiro e falso, simultaneamente, a depender do avaliador. Para piorar, Manguel ainda repete aquela lei do Padeiro, na Caça ao Snark de Lewis Carroll: “Tudo que eu disser três vezes é verdade”. Tudo que é replicado centenas e centenas de vezes em uma rede social, então, vira o quê? Uma ultra-mega-power verdade insuscetível à desconstrução?  

Para acalmar meus próprios ânimos, acredito que Manguel sugeriu uma saída (ingênua?): literatura. O argentino recorda que escritores e poetas iluminam a realidade e sempre forçam-nos a reavaliar crenças, arejar definições e questionar respostas. "(...) a linguagem da poesia e das histórias, que reconhece a impossibilidade de nomear o mundo de modo preciso e terminante, nos reúne sob a égide de uma humanidade fluida e compartilhada, ao mesmo tempo que nos confere identidades transparentes." Isso me trouxe um pouco de paz, pois demonstrou que talvez eu não esteja tão biruta quanto imaginava. Meu mundo sempre foi dominado por incertezas, dúvidas, perguntas (e todo o temor que isso provoca); e encontrar-me envolta de tanta gritaria incisiva e autoritária não deve necessariamente ser motivo para tamanha inquietação. 
Alberto Manguel, A Cidade das Palavras
Companhia das Letras, Tradutor: Samuel Titan Jr.

[fase da depressão (*mais)]
Para a depressão, foi um pulo.

A meu ver, a melancolia que me assomou nem era provocada exatamente pela perspectiva de vitória de um coreógrafo que desaprovo por completo. Não; o que mais me angustiava era ter evidenciado, em um piscar de olhos, que me encontrava rodeada por pessoas com as quais eu não conseguia estabelecer qualquer tipo de conexão. Digo, eu não conseguia pensar como os demais, vibrar em suas frequências. Sim, admito que sempre tive dificuldades para me enturmar (Forever Alone Club – Lifetime Member), contudo este fenômeno prodigiosamente piorava as coisas. Drama queen? Pode ser. Afinal, já disse que não sei de mais nada.


[fase da aceitação]

No fim das contas, tratei de embarcar na onda do bordão vencedor = fui me acostumando (ou quase). Democracia é o que tem pra hoje (e pra amanhã, e depois, e depois... **espero**), sendo forçoso dançar a coreografia democraticamente eleita, porém sempre recorrendo contra passinhos de dança capengas, mediante os meios previstos na regra dos ensaios e apresentações. No mais, torcer, sim? Torcer para que a apresentação transcorra da melhor forma possível, já que estamos em muito maus lençóis. Suspeito, né, sei lá; quem sou eu na fila do pitaco político?

Nessa fase final de resignação, pensei muito no livro A cada um o seu  (título bacana para o momento, não?), escrito pelo italiano Leonardo Sciascia. Em sua obra, Sciascia retrata principalmente o papel da máfia e da igreja católica na política e sociedade italianas nas décadas de 60-80, demonstrando que os conceitos de direita/esquerda, fascista/comunista eram (e são?) fluidos feito água. Na política italiana, o alvo está no Poder. Resguardadas as devidas proporções, acho que há um match entre países, hein.  ¯\_(ツ)_/¯
Leonardo Sciascia; A cada um o seu
Alfaguara; Tradutor: Nilson Moulin

Bom, A cada um o seu é protagonizado pelo professor Laurana, um homem que, basicamente:

"- Era um imbecil." 
                             
                                                   - Leonardo Sciascia; A cada um o seu

Mas calma, que a piada ainda não chegou. Quando li o livro, ri desavergonhadamente do pobre Laurana, um homem dos livros (rá! lógico) que, por viver de olhos fechados e sem tempo para ver certas coisas, se meteu desprecavido nos meandros mafiosos da política italiana. Tal qual Meursault de Camus, Laurana tocou a ordenação do sistema e foi exposto à luz crua das leis (p.67), ou seja, acabou com a boca cheia de formiga sob um pesado monte de escórias, numa mina de enxofre abandonada. Pronto, agora sim vem a piada: e quem é que está com a boca cheia de formiga agora? Achei que sacava as coisas melhor que Laurana, entretanto as últimas eleições cruelmente provaram que sou mais tapada do que o tímido professor da Sicília. Porca miseria!
Leonardo Sciascia; A cada um o seu
Alfaguara; Tradutor: Nilson Moulin

12/06/2018

Lendo Contos | O Aleph - Jorge Luis Borges / os teólogos

 (Editora Companhia das Letras / Tradução: Davi Arrigucci Jr.)

A poeta Aline Aimée, do ótimo canal (no You Tube) Chave de Leitura, disponibilizou resenhas em vídeo para cada um dos contos da coletânea O Aleph, de Jorge Luis Borges (link aqui). Aproveitando a chance de poder contar com alguém para enriquecer minha experiência de leitura, tentarei incluir postagens em resposta aos vídeos da Aimée. Um clube de leitura formado por duas leitoras, maaaaais ou menos. A sequência proposta para o post é a seguinte:

Leio o conto > Escrevo e registro minhas impressões gerais  >
> Assisto ao respectivo vídeo da Aline Aimée > Complemento as impressões com as novas informações e reflexões.


** RISCO DE SPOILERS **


[Impressões pessoais após a leitura do conto:]

E após um conto de "nível médio de dificuldade", encaro agora um de "nível hardcore" repleto de citações filosóficas e teológicas a respeito do tempo; um assunto, assim, fácil e simplezinho, não é mesmo? Pois aceito o desafio, ansiosa para descobrir o tamanho da presepada que cometerei desta vez.

***

Ok; concluída a leitura, fui tomada por uma empolgação e por um furacão caótico de ideias e reflexões. Tentando ordenar a bagunça mental, elaborei um resuminho de três páginas (A4) para Os teólogos (cujo texto consome cinco páginas ~A5. Ou seja: """resumo"""), porém minha situação permaneceu mais ou menos assim:


São tantas as conexões possíveis, que eu sequer sabia por onde começar a escrever estas impressões. O socorro veio através de um artigo da BBC Culture, o Every story in the world has one of these six basic plots, no qual Miriam Quick 1. resgata a tese de Vonnegut sobre os seis formatos gráficos assumidos pelos arcos narrativos dos protagonistas de histórias e 2. expõe as conclusões da pesquisa coordenada pelo professor Mathew Jockers concernentes à existência de seis tipos básicos de histórias graficamente transponíveis. Essas informações me renderam o momento "Eureka!": "Sim, acho que consigo colocar os principais pontos do conto de Borges em único gráfico!"
Aqui está o resultado da minha audaciosa empreitada:


Fala sério, nem preciso explicar, preciso? Brincadeira; me esforçarei, sim; até porque nem sei se marquei um gol ou se chutei feio pra fora. Opto por listar os aspectos principais da minha teoria tresloucada; vejamos se consigo:

(1) A própria estrutura narrativa de Os teólogos adquire a temporalidade circular proposta pelos Monótonos e igualmente confirma a profecia que Euforbo vaticina enquanto queima na fogueira: "Isto aconteceu e voltará a acontecer."  Transcorre no conto a sequência destacada no círculo: Surge uma "nova" teoria/"nova"(s) comunidade(s) supostamente herética(s) → Um sabidão aparece para refutá-la → Algo/Alguém vai parar na fogueira / queima → Surge uma "nova" teoria/"nova"(s) comunidade(s) supostamente herética(s) → Um sabidão aparece para refutá-la → Algo/Alguém vai parar na fogueira / queima → 

(2) A marcação no círculo dos eventos recorrentes parece demonstrar que a cosmologia dos Histriões, baseada na ideia dos espelhos e suas imagens especulares, não contradiz nem se opõe à prévia teoria circular dos Monótonos. Cada evento que retorna, que se repete, tem seu reflexo no exato ponto oposto da circunferência conforme assinalado pelas setas "↔" - 0°x 180° / 60° x 240°/ 30° x 210°... E, desse modo, a narrativa também se constrói em concordância com a proposição dos Histriões. 

(3) Os eventos especulares, avalio, funcionam como duplos, são as facetas opostas que compõe uma mesma unidade. Em outras palavras: são os dois lados da mesma moeda. Na minha análise maluca, isso ganha relevância especialmente quando pensamos nas diversas teorias heréticas que repetidamente surgem ao longo da linha temporal circular proposta nesse conto: sendo duplos de uma entidade una, como podemos considerá-las totalmente distintas? Segundo insinua meu esquema, afinal, as doutrinas dos Monótonos e Histriões se complementam; elas não se anulam absolutamente. Exponho toda essa lenga-lenga devaneante para tentar corroborar a sensação de que tudo e todos que queimaram na fogueira o fizeram em nome das mesmíssimas teses, cujas expressões por metáforas dificultam a percepção da equivalência.

E se as teses atacadas são as mesmas, logo os respectivos textos impugnantes repletos de metáforas também são essencialmente os mesmos, ainda que reapareçam na forma do duplo da mesma unidade. Aureliano e João de Panônia se digladiavam intelectualmente defendendo ideias coincidentes, eles próprios personificando a metáfora do duplo. Não à toa, já no céu, Deus toma Aureliano por João de Panônia, visto que inexiste diferença entre os dois. 
"(...) no paraíso, Aureliano soube que para a insondável divindade ele e João de Panônia (o ortodoxo e o herege, o abominador e abominado, o acusador e a vítima) constituíam uma única pessoa."
Quando os teólogos supunham refutar a herege corrente histriônica, nem percebiam que continuavam concomitantemente refutando a velha corrente dos monótonos, dado que ambas se complementam para construir uma doutrina única. Inclusive, é disso, em parte, que transparece certo teor tragicômico presente na morte de João de Panônia: o que ontem ele escreveu sob acalorada recepção, hoje é considerado blasfêmia, porque as "novas" heresias transpõem seus ditos passados para a posição do duplo oposto. Sinto-me afoita o suficiente para montar uma tabelinha explicativa:

                        Tese B
Heresia  A |    Refuta
Heresia -A |    Ratifica

(Fez sentido?! Nem eu sei! Espero que sim.) A coisa toda fica ainda mais hilária quando Panônia, em sua defesa, refere que não poderia negar o que ele dissera em sua antiga tese, pois isso implicaria confirmar a própria heresia dos Histriões baseada nos espelhos; ou seja, reconheceria o duplo, a existência de entidades reflexas no mundo. (Tese B da tabela.)

Em decorrência de todas essas ruminações, uma impactante frase de Joseph Campbell, com a qual cruzei recentemente assistindo ao "O Poder do Mito", reverberou em minha cabeça durante toda a leitura desse conto. Transcrevo, a seguir, a breve passagem da entrevista, grifando a frase específica a que me refiro - ah!, e incluo a cara do Campbell ao pronunciá-la, pois é perfeita demais para permitir que se perca no meu limbo memorial:
(Joseh Campbell:) Goethe diz: ''Todas as coisas são metáforas. (...) Tudo que é transitório não passa de uma referência metafórica." É isso que todos nós somos. 
(Bill Moyers:) Mas como se pode reverenciar uma metáfora... amar uma metáfora, morrer por uma metáfora?

(Joseh Campbell:) É isso que as pessoas fazem em todos os lugares. Em todos os lugares do mundo. Elas morrem por metáforas.

Certo. Pois eis que Borges conclui Os teólogos com esta frase:
"O final da história só pode ser contado por metáforas, uma vez que se passa no reino dos céus, onde não há tempo."

Detalhe relevante: esse "no reino dos céus, onde não há tempo.", pra mim, é metáfora, hein. O reino nada mais é do que o "aqui e agora". Nossas histórias são contadas por metáforas. As histórias dos Monótonos, dos Anulares, dos Histriões, dos Especulares, de Aureliano, de João de Panônia, a minha etc; todas são contadas por metáforas que, com pequenas variações, acabam afirmando a mesma coisa.

De qualquer maneira, eu nem precisava ter apelado para o auxílio de Campbell, visto que o próprio Borges tratou desse assunto no ensaio A esfera de Pascal, incluído no livro Outras Inquisições.
"A história universal é, talvez, a história de umas quantas metáforas. 
(...)  
A história universal é, talvez, a história da diferente entonação de algumas metáforas."
- Jorge Luiz Borges, A esfera de Pascal (Outras Inquisições - trad.: Davi Arrigucci Jr.)

Nesse ensaio, Borges sustenta que a metáfora geométrica da esfera retorna continuamente, com mínimas variações, através das vozes e escritos de diferentes poetas, teólogos, filósofos e pensadores desde o século 6 a.C. até o século XVII, com Pascal: "Uma esfera terrível cujo centro está em toda parte e a circunferência, em nenhuma." Aliás, a metáfora permanece sendo utilizada até hoje, sim? Jung e a galera que curte mandalas (círculo sagrado) e a busca pelo centro estão aí para comprovar. Campbell, instigado por Moyers no mesmo programa, curiosamente também fala da figura do círculo.

(4) Divertidamente, as premissas centrais dos dois contos anteriores da coletânea - O imortal e O morto -  retornam em Os teólogos, estabelecendo uma perfeita sintonia com a ideia de que "as coisas recuperarão seu estado anterior." Como? Nas minhas elucubrações, assim:
     4.1. (O imortal:) Cada heresia e respectiva contestação regressa continuamente nos ciclos seguintes na forma de duplos, processo que representa o único meio possível para a conquista da imortalidade = mediante propagação, pelas gerações, das palavras, dos livros, das ideias. Nesse contexto, a descrição do modo com que cada teoria era elaborada (as hereges e as refutadoras) chama muita atenção, uma vez que todas consistiam praticamente em uma mera colagem de vários pequenos trechos pinçados a partir de obras escritas anteriormente, de autorias diversas;

     4.2. Com O morto, aprendi que é necessário estar atenta para não bancar o "leitor otálora", aquele que equivoca-se ao ler sua própria narrativa e que, acredito, facilmente se deixa ludibriar por metáforas que - adivinhe? sim: - tratam da mesma coisa.

***

Para arrematar minhas especulações, destaco um interessante esclarecimento escrito por Hernán Nemi e incluído no livro Borges Babilônico, enciclopédia organizada por Jorge Schwartz (Companhia das Letras, 2017), no qual o autor ressalva que Borges, ao longo de sua obra, nem sempre defende exclusivamente a teoria circular do tempo associada ao eterno retorno. Isto foi o que encontrei em os teólogos - tanto no tratamento do tema, como na própria estrutura narrativa -, porém, em outros contos borgianos, poderei deparar-me com concepções diversas sobre o tempo. Anotado!
"Contudo, o maior achado borgiano não consiste em mencionar em meio a seus textos posturas distintas referentes ao tempo, mas em construir relatos cuja trama se desenvolve respondendo a diferentes concepções temporais. Isto é, em alguns contos, a ação se inscreve em um tempo linear, enquanto em outros este é circular ou subjetivo, ou coexistem tempos simultâneos. Isso demonstra ser errado sustentar que o Borges autor adere a uma concepção circular do tempo, relacionada ao eterno retorno. Em alguns contos, ele adere a essa concepção, mas, em outros, a desmente de forma taxativa, e opta por outras. Nesse sentido, sua posição diante do conhecimento vai ao encontro das ideias do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (v.), o qual vê toda concepção do mundo como uma ficção útil para explicar em caráter momentâneo a falta de sentido da existência mas que nem por isso deixa de ser uma ficção transitória, sem um valor de verdade em si e que necessariamente deverá dar lugar a outras novas ficções que de modo progressivo ajudem a dar conta da realidade. (...) 
Ao longo de toda a produção de Borges, coexistem concepções diferentes e antagônicas sobre o tempo: linear, circular, subjetivo ou simultâneo. Seu maior êxito não foi incluir tais conceituações nos contos, à maneira de comentários ou digressões, mas haver conseguido que seus textos narrativos se estruturassem de acordo com cada uma dessas noções temporais. Nesse sentido, a obra de Borges demonstra a relatividade de toda concepção do mundo."
- Hernán Nemi, Borges Babilônico (Organização: Jorge Schwartz)

***
"Como todo possuidor de uma biblioteca, Aureliano se sabia culpado de não conhecê-la até o fim; (...)
E esse trecho do conto me obriga a tomar emprestado aquele versinho de Gilberto Gil: 
"a paz invadiu o meu coração..."  


Ok, hora de apertar play no vídeo da Aline Aimée. (*Medo*) > LINK AQUI



[Comentários pessoais pós-vídeo:]

Ah, mas que beleza: após descobrir que sou uma leitora otálora, encaro agora a revelação de que escrevo "aurelianamente". Ok, ok; é a vida, fazer o quê? Ou melhor (conforme abordou Aimée, dentre as temáticas de Borges): ~é o acaso~.  ¯\_(ツ)_/¯

Bom, vista a resenha da Aimée, julgo que me saí ~razoavelmente~ bem. Poxa, poderia ter sido muuuuito pior. Vale a pena assistir ao vídeo — como de praxe: excelente —, no qual ela faz uma bela lapidação nas questões que consegui captar e incluir em minhas impressões.

Seguidamente, insiro apenas algumas passagens da resenha dela que me foram caras e que complementam com maior destaque esta minha viagem borgiana:

→ Admito logo que os presentinhos cômicos, os easter eggs borgianos (e temos mais essa; ora, ora), voaram, sim, por cima da minha cabeça. A verdade é que, quando os diversos nomes que ele solta no texto começaram a se empilhar formando uma montanha gigantesca, desisti sem dó de sair googlando um por um. Perdão.

No entanto, ainda que eu não tenha pescado a piadinha que Aimée relata sobre a dupla Bossuet e Harnack, esses dois não tinham me passado batido. Uma vez lida, esta passagem foi circulada
"(porque os testemunhos diferem e Bossuet não quer admitir as razões de Harnack)"
e, ao seu lado, interroguei à lápis: "esse par (Bossuet + Harnack) representaria O Retorno de Aureliano + Panônia?!" Derrapo no sabão, ou faz sentido?

→ A Aimée ressalta a estrutura do conto, que realmente é peculiar; quase todo escrito como um artigo teológico, não fosse o parágrafo final que pitorescamente quebra o tom acadêmico geral.

→ Quando Aimée comenta que Borges exibe um humor que revela certo prazer no caráter especulativo das teorias teológicas, minha memória devolveu esta informação presente na obra Com Borges, do Manguel:
"(Borges) Lia teologia com um prazer entusiasmado. << Eles acreditam, mas não se interessam; eu me interesso, mas não acredito.>>  Admirava o uso metafórico dos símbolos cristãos feito por santo Agostinho. <<A cruz de Cristo nos salvou do labirinto circular dos estoicos>>, citava, deliciado. E depois acrescentava: <<Mas ainda prefiro o labirinto circular>>."
- Alberto Manguel, Com Borges (Editora Ayiné; trad. Priscila Catão)

→ Não atentei, de fato, à possibilidade de classificar a presença do duplo como um artifício usado por Borges para refutar a ideia da personalidade. Aimée aponta que, tal qual ocorre em O Imortal, A Forma da Espada e O Tema do Traidor e do Herói, o conto Os teólogos denuncia a equivalência entre os homens. Herói e traidor se equivalem, de modo que a distinção entre eles existe apenas no campo da humanidade. E a escolha de quem assume o papel de herói e o de traidor é responsabilidade do digníssimo Acaso.

Ainda quanto ao duplo, Aimée acrescenta outro importante ponto que me fascina bastante: ele permite a autoanálise. É através da relação com João da Panônia que Aureliano percebe a equivalência existente entre ambos, o que o induz a questionar todas suas prévias certezas a respeito de si mesmo e, em última instância, de sua própria concepção do mundo. Peguei-me refletindo que, nos tempos atuais marcados por tamanha intolerância em relação àqueles minimamente diferentes, essa temática da “autoanálise pelo duplo” ganha considerável relevância.

Complemento apenas mencionando que, no começo do conto e antes de todo o imbróglio teológico superveniente, Aureliano já compreendia que as “verdades espirituais” costumam ser tratadas pelos homens de um jeito meio, digamos, ensaboado:
(grifo meu:)
“Aureliano (...) sabia que em matéria teológica não há novidade sem risco; depois refletiu que a tese de um tempo circular era demasiado ímpar, demasiado assombrosa, para que o risco fosse grave. (As heresias que devemos temer são as que podem se confundir com a ortodoxia.)”
→ Para concluir circularmente esta parte do post, retorno ao tema borgiano do "acaso", tratado por Aimée na discussão do duplo em Os teólogos. No instante em que ela tocou nesse tópico, e dada a maneira com que ela se expressa, me lembrei prontamente da dedicatória que Borges escreve no seu livro Primeira Poesia:
(grifo meu:)
"a quem ler 
Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de ter sido, previamente, por mim usurpado. Nossos nadas pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor destes exercícios, e eu seu redator." 
- Jorge Luis Borges, Primeira Poesia (Companhias das letras; trad.: Josely Vianna Baptista)

Ele é Borges, eu sou essa pateta leitora otálora; e é tudo obra do estimável Acaso. Beleza. 👍

P.S.: mais uma vez, agradeço Aline Aimée pelo ótimo vídeo.