16/01/2018

Lendo Contos | O Aleph - Jorge Luis Borges / o morto

 (Editora Companhia das Letras / Tradução: Davi Arrigucci Jr.)

A poeta Aline Aimée, do ótimo canal (no You Tube) Chave de Leitura, disponibilizou resenhas em vídeo para cada um dos contos da coletânea O Aleph, de Jorge Luis Borges (link aqui). Aproveitando a chance de poder contar com alguém para enriquecer minha experiência de leitura, tentarei incluir postagens em resposta aos vídeos da Aimée. Um clube de leitura formado por duas leitoras, maaaaais ou menos. A sequência proposta para o post é a seguinte:

Leio o conto > Escrevo e registro minhas impressões gerais  >
> Assisto ao respectivo vídeo da Aline Aimée > Complemento as impressões com as novas informações e reflexões.


** RISCO DE SPOILERS **


[Impressões pessoais após a leitura do conto:]


Eis que, justamente após ler um conto de Borges sem elementos fantásticos, me encontro desprovida de uma imediata impressão global de leitura. A princípio isso é tão cômico, que chego a ouvir o tema de abertura de Curb Your Enthusiasm. Bom, sendo assim, procederei resgatando os destaques que grifei no conto para, a seguir, pontuar elucubrações pessoais.

(1) 
A presença de um recurso narrativo que me parece ser recorrente na obra de Borges chama atenção logo no início: um narrador observador que não conhece todos os fatos da história e que, "pior", sequer é capaz de atestar a veracidade daquilo que nos conta. Em parte, talvez essa seja a causa de meu pronto desnorteio ao final da leitura; o qual ainda me obriga a segurar um "tá, e daí?" entalado na garganta.
(Err, desculpe. ¯\_(ツ)_/¯)
"(...) quero contar o destino de Benjamín Otálora, de quem talvez não reste lembrança (...) Ignoro os detalhes da sua aventura; quando me forem revelados, tratarei de corrigir e ampliar estas páginas. Por ora, este resumo pode ser útil." 
"Muitas coisas vão acontecendo depois, de que sei pouco. (...) Outras versões mudam a ordem desses fatos e negam que tenham ocorrido num único dia."
- Jorge Luis Borges, O Morto

Confabulo se objetivaria enaltecer a literatura oral, fazendo o leitor refletir a respeito de sua evolução para o registro escrito e seu importante papel na preservação da cultura e história de um povo. Novamente, explicaria minha reação ao final da leitura: na tradição oral, a extração de uma mensagem fundamentada na narrativa fica por conta do ouvinte (aqui, documento escrito, da leitora).

Curiosamente, isso resgatou de minha memória a experiência que tive ao ler "O Obsceno Pássaro da Noite", de José Donoso. Nesse livro, a narrativa do autor chileno realça inúmeras vezes o papel daqueles pequenos causos que são contados entre gerações, crescendo cada vez mais, ganhando múltiplas versões e ares pitorescos. Trata-se de uma tradição que julgo ser, de fato, típica da cultura latino-americana. Saquei o livro da estante e, na página 24 (Editora Francisco Alves, 1979),  localizei esta passagem (um exemplo apenas, pois há vários outros) que dialoga muito bem (acho) com o recurso usado por Borges em O Morto:
"(...) as velhas, não me lembro qual delas, tanto faz, estavam contando mais ou menos esta fábula, porque a ouvi tantas vezes e em versões tão contraditórias, que todas se confundem."
- José Donoso, O Obsceno Pássaro da Noite (* nome do tradutor não localizado)

A identificação desse elemento provoca divertidos questionamentos devaneantes:
- A ausência de um atestado de veracidade daquilo que é narrado compromete seu valor? Repercute em nossa interpretação, certo, no entanto invalida a história contada? Tudo indica que não.

- Essa incerteza em relação àquilo que é narrado não lembra bastante a forma com que contamos nossos sonhos a terceiros?! Sonhos!! Rá!

- Uma vez que o narrador afirma desconhecer alguns fatos, ao mesmo tempo que reconhece a existência de outras versões e uma disposição para ampliar posteriormente seu relato; teríamos então uma anedota... infinita?! Passível de engrandecimento e correções infinitas?! Ora, ora, hein?

**Atualização em 27/05/2018**
A leitura recente do livro Com Borges, de Alberto Manguel, me revelou outro aspecto importante dessas informações de natureza imprecisa no texto: remetem aos romances policiais, tão amados por Borges!! Puxa, mas é claro! Conforme o livro de Manguel, Borges cita um trecho de Dom Quixote, o começo "Em um lugar de la Mancha, cujo nome não quero recordar...", e propõe o seguinte: "e se lêssemos Dom Quixote como um romance policial?" O "não quero recordar" já levantaria suspeitas no leitor, do tipo "por quê? que pistas está escondendo?"
**Fim da atualização**

(2)
Depois, pude perceber outro tema também caro a Borges (a própria nota de rodapé inicial do tradutor facilita): o gaucho e seu vasto mundo das planícies. Dando uma olhadela na coletânea Ficções, pesquei dois contos aparentemente responsáveis pela minha recordação: O Fim e O Sul. Segue um trecho de O Morto que sugere bem tal temática:
"Começa então para Otálora uma vida diferente, uma vida de vastos amanheceres e de jornadas que têm o odor do cavalo. Aquela vida é nova para ele, e às vezes atroz, mas já está em seu sangue, porque, da mesma forma que os homens de outras nações veneram e pressentem o mar, assim nós (também o homem que entretece esses símbolos) ansiamos pela planície inesgotável ressoando sob os cascos. Otálora fora criado nos bairros do carreteiro e do quarteador; antes de um ano se torna gaucho."
- Jorge Luis Borges, O Morto.

Aproveitei para recorrer, finalmente, ao Borges Babilônico, enciclopédia organizada por Jorge Schwartz (Companhia das Letras, 2017). Prontamente, topei com uma direção mais clara quanto à anteriormente referida tradição oral: ela relaciona-se ao próprio gauchesco! Fascinante. E registro, super resumidamente, que o termo "gaucho" surgiu no último terço do século XVIII (a história do conto transcorre em 1891), tendo sofrido mudanças de significações até atingir o mitificado emblema de uma identidade nacional. Para detalhes, recomendo a leitura direta do texto contido na enciclopédia, do qual extraio os seguintes trechos:
"(...) no rio da Prata, uma coisa é a tradição e a produção oral dos gauchos (v.) (...) O efeito oralizante da gauchesca é tão forte que até os mais argutos leitores esquecem que com grande frequência esses textos estabelecem outra ficção: a de que o lido corresponde a algo — gazeta, carta, manifesto, reclame, anúncio, ameaça — escrito por imaginários gauchos letrados, embora de forma muito distante do conceito das belas-letras contemporâneas, como se, ao escreverem, estivessem falando."
"As primeiras atitudes de Borges quanto à questão dos gauchos e às temáticas que a rodeiam, nos textos impregnados de um vanguardismo de matiz criollista (v. criollo) que ele depois eliminou das Obras completas, foram de fascínio pelo personagem e pelas modalidades de sua fala e tons, que contaminaram as próprias opções léxicas e de fonetização da escrita."
- Julio Schvartzman, Borges Babilônico (Organização: Jorge Schwartz)

O fato de que Otálora não nasce gaucho, mas, sim, que torna-se um a partir de sua condição de compadrito (plebeu das cidades) parece particularmente relevante, contudo encontro dificuldade em delinear precisamente a intenção de Borges aqui. Acredito que essa reflexão exige maior conhecimento dos aspectos políticos e históricos formadores da identidade nacional dos países da bacia platina, o qual não possuo infelizmente. Ouso lançar uma pergunta especulativa: a metamorfose explicaria o destino que a narrativa reservou a Otálora? Sendo um gaucho (mal) "convertido", digamos, seu final restaria fadado a tamanha prematuridade? Aliás, quando a imagem dele não apareceu refletida no espelho embaçado, vaticinei um "xi, ferrou, Otálora."

E olha só! Buscando "Otálora" no Borges Babilônico, encontrei uma informação bastante esclarecedora: a transformação do protagonista também se relaciona à ambiguidade do espaço de fronteira.
"Ali (fronteira) a ambiguidade é possível e a identidade pode ser alterada, refeita, como faz o personagem de “O morto” (O Aleph), Benjamín Otálora, um argentino que se torna um gaucho (v.) no Uruguai — uma ironia sobre a possibilidade de definir a nacionalidade argentina tendo como ponto de partida o gaucho."
- Pablo Martínez Gramuglia, Borges Babilônico (Organização: Jorge Schwartz)

Mas é claro. Boa. 

 (3) 
Ademais, acrescento somente que parece-me peculiar que as coisas tenham dado errado para o jovem Otálora exatamente quando ele se deixa guiar cegamente pela ambição, caindo na crença falaciosa de que sua juventude derrotaria a larga experiência do velho Azevedo Bandeira. Outro grave erro cometido pelo rapaz foi subestimar os laços de fidelidade construídos na sociedade gauchesca. Ele erra embaraçosamente ao apostar que o fiel capanga Ulpiano Suárez estaria disposto a passar a perna em seu velho chefe. Haveria, desse modo, lições de paciência e de respeito pela sabedoria e tradição que nos antecede? Deixo a especulação. 

E achei igualmente interessante que uma liderança bem-sucedida naquele meio gauchesco tenha sido caracterizada pela conquista de uma tríade (descrita por dois grupos distintos de palavras):
"A mulher, o arreio e o alazão são atributos ou adjetivos de um homem que ele almeja destruir." 
"(...) o amor, o mando e o triunfo, (...)"
- Jorge Luis Borges, O Morto.

Indica que, nas amplas e infinitas (oi!) planícies, esses seriam os bens que realmente importam.

Por fim, ressalto o gosto amargo produzido pelo destino final de Otálora. Considerando-se a frase “lhe permitiram o amor, o mando e o triunfo, porque já o davam por morto, (…)”, minhas conjecturas contemplativas concentraram-se nesta pergunta: a morte seria a única maneira de conquistar a tríade gloriosa? Opto concluir que, quando metemos os pés pelas mãos como o fez o jovem gaúcho Otálora, sim.


É, ficarei por aqui. Vamos ao vídeo da Aimée. Play! > LINK AQUI


[Comentários pessoais pós-vídeo:]

Enquanto leitora que teve de segurar um “tá, e daí?” ao terminar de ler O Morto (porém ressalvo que a Aimée admite ser um conto simples), afirmo que é espantosa a complexidade que se revela quando nos dispomos a lê-lo minuciosamente. A análise do vídeo ficou excelente. Procederei à complementação das minhas impressões.

“O Imortal → O Morto”: é verdade! A ironia na sequencia dos títulos, comentada por Aimée, tinha me escapado vergonhosamente. Concordo quando ela diz que Borges era um fanfarrão. Se duvidar, é por isso mesmo que gosto tanto do que ele escreveu. 

Preciso anotar uma informação significativa que ela fornece no vídeo, a qual eu ignorava. Borges, em sua obra, contesta três certezas de nossa existência:

- O Universo;

- A Personalidade;

- O Tempo.

Ótimo, terei isso em mente para os próximos contos. Aimée refere que, em O Imortal, ele explora a contestação da personalidade. Contudo, como escrevi em minha postagem anterior, penso que o autor contesta conjuntamente também o tempo naquele conto. Como falar de “tempo” em um contexto de imortalidade, afinal? Em O Morto, Aimée esclarece que também encontramos a discussão da personalidade, visto que Otálora passa por extremos de identidade. Além disso, essa ambiguidade aparece não só no espaço de fronteiras e nesse lugar movente da personalidade do protagonista (as quais consegui captar), mas igualmente na cena em que o protagonista leva o chá para Bandeira. Era uma tarefa medíocre e, simultaneamente, notável por permitir que Otálora se aproximasse de seu alvo. Há lógica; e achei formidável!

Certo; contudo a parte mais legal da resenha da Aimée ficou por conta do comentário referente às leituras distintas que Otálora e Bandeira fizeram daquela situação. Otálora cai nas pistas falsas que surgem em seu percurso colocadas por Bandeira, o melhor leitor* e a personagem que efetivamente escrevia aquela história. Nesse sentido, a identidade que Otálora cria para si é uma mentira, ou seja, uma ficção. (O que, uma vez mais, contesta a ideia de personalidade.) Essa chave, penso, encaixa-se na pergunta que eu havia lançado (repito:): "A ausência de um atestado de veracidade daquilo que é narrado compromete seu valor? Repercute em nossa interpretação, certo, no entanto invalida a história contada? Parece que não, confere?". Resta evidente, nesse ponto, que uma inveracidade não apenas não invalida uma narrativa; mas, inclusive, constrói a ficção. É divertido. Ah, e Aimée lembra que isso estabelece um paralelo com o conto A Morte e a Bússola, da coletânea Ficções. Não vislumbro outra saída, senão repetir a exclamação: é verdade!

[** Atualização em 20/01/2018:**]
Atualmente estou lendo o livro Autumn, escrito pela escocesa Ali Smith, e surgiu uma passagem  - um diálogo entre duas personagens, para ser mais precisa - que acredito também traduzir de uma boa maneira o que eu quis dizer quanto à relação entre histórias x verdades x mentiras. Decidi incluir o trecho nesta postagem. Segue:
"The world exists. Stories are made up, Elisabeth said. 
But no less true for that, Daniel said. (...) And whoever makes up the story makes up the world, (...) And if I'm the storyteller I can tell it in any way I like, (...) 
So how do we ever know it's true? Elisabeth said. 
Now you're talking, Daniel said."
                                                                                                                      - Ali Smith, Autumn. 
[** ...Fim da atualização de 20/01/2018**]

Agora, para algo que me aparvalhou: há, no texto, sutis referências bíblicas. Meu deus (intencional). Benjamin é o nome do filho de Jacó, havendo reflexos (oi!) entre a jornada da figura bíblica e a da borgiana (Benjamín Otálora). Outra: a cena do beijo que Otálora recebe de sua amante, antes de morrer, lembra o beijo de Judas. Não dou conta desse fanfarrão argentino. Amo.

- Aimée, obrigada pelo vídeo.
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* Hum, eu seria uma Leitora Otária Otálora??!