20/03/2018

[Ifigênia em Áulis - Eurípides] + [Iphigenia in Tauris - Goethe]

** Esta postagem é um anexo do Diário de Leitura registrado neste blog para o livro Ifigênia, da autora Teresa de la Parra.**

Visando reduzir os vacilos cometidos no Diário de Leitura para o livro Ifigênia, escrito por Teresa de la Parra (Post #01 - primeira parte - aqui), resolvi adiar a leitura da segunda parte, para que eu pudesse ler estas duas obras sobre o Mito de Ifigênia. Como li somente a primeira parte do livro da venezuelana, ainda não tenho absoluta certeza se a narrativa dela relaciona-se de fato com esse mito, porém as suspeitas são altas; especialmente agora. Se o prosseguimento posterior da leitura contradizer minhas suspeitas: ¯\_(ツ)_/¯

Informações sobre as edições lidas:
1- Para a peça escrita por Eurípides, utilizei a edição publicada pela Editora Zahar, com tradução do grego feita por Mário da Gama Kury: Coleção Tragédia Grega, Volume V. Mais informações, aqui.

2- Para a peça escrita por Goethe, utilizei o livro digital disponibilizado gratuitamente no site do Projeto Gutenberg (*aqui); com o texto traduzido para o inglês por Anna Swanwick.

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IFIGÊNIA EM ÁULIS - EURÍPIDES

Com boa vontade, é possível reconhecer que a trama na peça de Eurípides é relativamente simples. O lance é o seguinte: o exército grego encontra-se aglomerado em Áulis, louco para zarpar e tocar o terror em Troia, porém as más condições climáticas que impedem a progressão do grupo só cessariam depois que a deusa Ártemis recebesse em sacrifício o sangue de Ifigênia, filha de Agamêmnon, o chefe da expedição. Moleza, não? Mata-se uma moça inocente que não tem nada a ver com o engodo, e então a carnificina de outra guerra fica liberada. Conforme diz Spock: é lógico. Ou não? Bom, antecipo aí a reflexão.

Ifigênia é ludibriada a partir de Argos rumo a Áulis sob o falso e estapafúrdio pretexto de que ela se casaria com o grande guerreiro Aquiles – assim, do nada -, quem, inocente na mentira arquitetada, teria exigido uma esposa em contrapartida à participação na guerra. Quando a moça chega a Áulis acompanhada da mãe Clitemnestra, só descobre a verdade do sacrifício através da boca do velho criado da mãe, pois Agamêmnon não se dignou nem a confessar-lhe a trama asquerosa. Após certas trapalhadas com idas e vindas na decisão a respeito do que fazer, Ifigênia acaba resignadamente aceitando seu "destino", entregando-se à morte em nome da glória dos gregos.

Ifigênia, no entanto, é salva por um deus ex machina: imediatamente antes do golpe fatal, a virgem é sugada pela terra, desaparecendo feito mágica. No lugar dela, surge uma corça cujo sangue transborda no altar da deusa. Para onde Ifigênia foi? Mistéééério. Na falta de uma satisfação concedida pela geniosa Dona Ártemis, as pessoas presentes conjecturam que Ifigênia teria se juntado aos deuses. Fim de papo.

Tentando tornar as coisas mais divertidas, pontuarei alguns aspectos.

Agamêmnon é uma figura incrivelmente tragicômica. Ambicioso, sabemos que ele tinha se virado pelo avesso para conseguir ocupar o posto máximo de chefia da expedição grega, contudo, quando o primeiro “probleminha” aparece durante o exercício do nobre cargo, o sujeito se contorce em uma lamúria patética, maldizendo sua “sina”. Ué, o grande filósofo Tio Ben afirma que “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”, confere? Agamêmnon (passarei a chamá-lo de Aga, ok?) realmente pretendia ficar só no bem bom, longe de qualquer pepino? É um momento da peça que permite uma liçãozinha interessante: antes de brigar por uma posição de destaque, é preciso estar ciente do pacote completo de responsabilidades que acompanha a honraria, sendo honesto consigo mesmo quanto ao preparo para lidar com o “brinde”. No próprio diálogo estabelecido entre Aga e o velho criado da família, esse tema é estendido para a ponderação do que valeria mais na vida: ser um zé ninguém de consciência tranquila, mas esquecido no tempo; ou um indivíduo magnânimo enaltecido pela história, porém subjugado pelo peso de decisões difíceis. “Complicado” no. 01.

Acrescento que o discurso de Aga alterna comicamente entre diferentes culpados de sua situação aflitiva; jamais ele próprio, é claro. Uma hora os culpados são os deuses, noutra hora é Helena, depois é Príamo, daí passa a ser seu irmão Menelau, que cede o lugar para Calcas, o adivinho do Oráculo... Acho que ele só não tem coragem de culpar a própria filha, o que muito me espanta, sendo honesta. O digníssimo Aga não lida bem com escolhas espinhosas.

Para oferecer um tratamento justo a Aga, sinto que devo pintar melhor o buraco em que ele estava metido. Segue imagem ilustrativa, uma adaptação do famigerado Dilema do Bonde.

É uma decisão difícil, não é? Quando adaptei essa ilustração identificando cada personagem, até achei que seria imoral equiparar a glória da Grécia à vida de vários gregos, de muitos homens, entretanto recordei que a própria Ifigênia lança uma pergunta que atesta bem como as coisas funcionavam na sociedade grega:
este guerreiro —Aquiles — terá de lutar
contra o exército dos gregos e arriscar-se
por uma só mulher — por mim —, pois a existência
de um homem só tem certamente mais valor
que a de muitas mulheres juntas? E se Ártemis
Ok; persisto escondendo informação importante ao julgamento imparcial de Aga, e é correto compartilhá-la. Os gregos encaravam a guerra contra os troianos não apenas como uma vingança de Menelau pelo rapto de sua esposa Helena, mas também como uma maneira de castigar os bárbaros pela afronta sofrida ao seu país (era assim que enxergavam o rapto) e, principalmente, como forma de evitar que todas as mulheres gregas fossem atacadas e raptadas. Admito que é um dado significativo, e que me ajudou até a compreender as motivações dessa guerra, uma vez que, antes da leitura da peça, eu não entendia por que os gregos arriscariam suas vidas com tanto ardor apenas para vingar um único homem que se sentia traído. Voltando, assim, àquela ilustração do dilema de Aga: no outro lado do trilho, estariam efetivamente a honra e segurança do país, mais as vidas de todas as mulheres gregas. “Complicado” no. 02.


A intervenção dos Deuses nas vidas dos gregos é uma questão que ganha muito destaque na obra de Eurípides. Eu fico aqui metendo o sarrafo no Aga, porém não posso esquecer que madame Ártemis comporta-se de maneira nada lisonjeira, para dizer o mínimo. A exigência da deusa não se encaixa facilmente no que poderíamos classificar como “solicitação razoável”.

Além disso, é penoso superar uma vivência assim tão impotente pela sujeição quase completa aos gênios e dissabores dos deuses. De um lado, promove imensa angústia e frustração pela falta de controle e liberdade do indivíduo; de outro, é forçoso reconhecer, acaba amenizando os sentimentos de culpa, uma vez que muita coisa pode ser incluída na conta dos deuses.


Bastante engraçada é a quantidade de vezes que as personagens mudam de opinião. Há um vai e vem de posicionamento que parece levar menos tempo do que um bater de asas de borboleta. Aga mudou de ideia umas três vezes; Menelau e a própria Ifigênia, coitada, duas vezes.

Dessas mudanças de opinião, chamou-me atenção o caso de Menelau. No início da pendenga, ele sequer piscara os olhos antes de decidir que logicamente Ifigênia deveria ser sacrificada. O curioso da evolução discursiva dele é que não é a morte de sua pobre sobrinha, ou até de uma jovem mulher inocente, o que o faz mudar de parecer. Ele só se compadece diante do sofrimento do irmão Aga. O tom da argumentação de Menelau não parece conceber Ifigênia como sua parente (gregos não ligavam para sobrinhas?), indicando, isto sim, que a morte de uma mulher não significava absolutamente nada, diante de sua dignidade ferida de homem.

Registro também a expressão que ele escolhe usar:
prevaleceu o afeto que me une a ti,
pois afinal somos filhos de um mesmo pai.
Em linhas gerais, as falas de Menelau adiantam o panorama da posição ocupada pelas mulheres na sociedade grega. O que pesa é o sofrimento do irmão homem, e não a vida de sua sobrinha, uma mera mulher. Menelau e Aga não são “filhos dos mesmos pais” ou “da mesma mãe”; o que importa é o pai em comum.


Aproveitando essa deixa, devanearei um pouquinho sobre a realidade das mulheres gregas, e da própria Ifigênia, construída pela tragédia de Eurípides.

Conforme a postura de Menelau sugeriu, parece que a vida do sexo feminino não valia grandes coisas por aquelas bandas. Além da reação do próprio tio, Ifigênia também não pôde contar com o apoio dos homens do exército que, tão logo descobrem a exigência de Ártemis, começam a esbravejar ensandecidos pedindo o pescoço da virgem. Para os senhores guerreiros gregos, aquela circunstância não representava nenhum problema moral e nem havia o que ponderar. O único que sente-se ultrajado pela  reação do povo e que demonstra compaixão por Ifigênia é Aquiles, quem, sozinho contra o batalhão grego, não poderia fazer muita coisa. O moço era um fodástico “filho da deusa”, é verdade, no entanto até pra ele havia limites.

Helena, por sua vez, é achincalhada por ter “descuidado da honradez e boa fama”, sendo que a única informação disponível é que ela foi raptada por Príamo. A turminha do mediterrâneo não necessita conhecer todos os detalhes do ocorrido antes de julgá-la, porque é evidente que a culpa sempre é da mulher. Ademais, quando Menelau se lembra de que poderia trocá-la com enorme facilidade por outra, ele percebe que poderia realmente estar reagindo de modo exagerado. Para que tanto escândalo, se mulheres poderiam ser encontradas em qualquer esquina? Confere? Ou não? Hum.

Mas retomando o gancho da “honradez de Helena” e começando as comparações com o livro de Teresa de la Parra: a aparente similaridade entre o tratamento da honra da mulher na Grécia antiga e na Caracas do começo do século XX é fascinante e, bem, um tanto assustadora. Conforme registrado no DL#01, Tio Pancho explica a Maria Eugênia que apenas o mau comportamento das mulheres era capaz de manchar a honra de um homem, os quais sempre buscavam se casar com mulheres castas e virtuosas, enquanto as mulheres tratavam de manter a honra imaculada. Por consequência, para garantir o bom nome das filhas, as famílias de Caracas protegiam suas mocinhas com um rigor que se aproximava àquele observado em presídios. Lembrando que, como as mulheres na sociedade venezuelana não tinham dinheiro próprio, elas dependiam largamente de um casamento afortunado a fim de garantir o próprio sustento. Tio Pancho ressalta que as caraqueñas veneravam os homens tais quais verdadeiros deuses, obedecendo-os em tudo. Esse foi o quadro geral de Caracas. Pois bem, e como eram as coisas na Grécia de Eurípides? Praticamente a mesmíssima coisa! Deixe-me recapitular brevemente o que encontrei.

Logo na abertura da peça, me deparei com algo que julgo completamente disparatado: como assim é o pai quem decide com quem a filha se casa; simplesmente ordenando, via carta, que ela compareça ao altar a fim de casar-se com um maluco que ela nunca antes tinha visto?! Dado que este foi o incrível artifício utilizado por Aga para despistar mãe e filha do ritual de sacrifício, concluo que tratava-se de uma prática perfeitamente habitual, razoável e aceitável. Mais adiante, durante um diálogo de Clitemnestra e Aga, explicita-se que todas as mulheres deviam total obediência ao homem chefe da família. Quando muito, o cara liberava alguma autonomia à esposa nos limites da casa, em tarefas domésticas. Quer dizer, o discurso de tio Pancho sobre Caracas admite transposição para a Grécia: o homem da família era o deus da segunda religião praticada pelas mulheres.
AGAMÊMNON
Sabes, mulher, qual é o teu dever? Escuta-me. 
CLITEMNESTRA
Que vais dizer? Acostumei-me a obedecer-te. 
(…) 
AGAMÊMNON
Deves-me obediência! 
CLITEMNESTRA
Nesta hora, não!
Juro pela deusa de Argos! Aqui fora
a competência é toda tua, mas em casa
e quando o assunto são as bodas de uma filha,
tenho o direito de tomar as providências!
Na peça aparece igualmente uma alusão ao fato de que os homens só se casavam com as mulheres decentes e obedientes, tal qual ocorria em Caracas. Assim afirma Agamêmnon:
para mim são fatais. O homem de bom senso
deve ter em seu lar uma boa mulher
e sempre dócil; se não for assim, não case!
Já nesta fala de Aquiles, percebemos como uma comportamento condenável de uma mulher era capaz de ferir a integridade de um homem. E de um homem morto, veja bem.
AQUILES
Esperarei por ti como guarda atilado
em um lugar conveniente; não é bom
que sejas vista em correrias incessantes
tentando descobrir-me entre as tendas dos gregos.
Não queiras aviltar o sangue de teu pai;
Tíndaro não merece ser depreciado,
pois seu renome é grande entre nossos soldados.
Há, na obra de Eurípides, várias referências à exigência de que as mulheres resguardassem suas virtudes e composturas, das quais dependiam a própria honra dos homens. Em um dos cantos, o coro de mulheres ecoa o seguinte:
Concede-nos a graça de sentir
apenas os desejos moderados,
ornadas de uma graça sempre casta!
Possamos nós, sob as vistas de Cípris,
manter-nos livres dos furores dela!
A natureza dos mortais varia,
varia sua maneira de ser,
mas a índole realmente boa
revela-se apenas pela conduta;os dons que devemos à educação
ajudam-nos a sermos virtuosas,
pois o pudor é prova de prudência.
O que há de mais belo é discernir
nosso dever graças à inteligência.Temos, então, direito de esperar
como prêmio de nossa compostura
a glória imune ao transcurso do tempo.
É valioso o apego à castidade;
a quietude das almas sem mácula
A marcação colada que Maria Eugênia sofria da avó, quem sempre exigia da neta bons modos e a permanência preferencial nos limites da casa, encontra reflexo na obra clássica. Pelas falas das personagens, aprendi que, na Grécia, as virgens deveriam ser sempre discretas, falar o mínimo possível e permanecer seguras no “quarto das virgens”, não aparecendo gratuitamente entre homens.

É, supus que Maria Eugenia estivesse exagerando ao comparar sua realidade à da Idade Média, contudo Eurípides me mostrou que ela pode ter sido até bastante gentil com a Venezuela. Ai, caramba!


Por fim, apenas umas elucubrações sobre o que encontrar no cruzamento das jornadas de Maria Eugenia e Ifigênia. Assusta-me o fato de que, na peça de Eurípides, a viagem para uma terra estrangeira (Argos → Áulis) tenha surgido como metáfora para a morte, aquela viagem definitiva da qual nenhum de nós escapará. Agamêmnon explicitamente utiliza o termo “viagem” quando tenta despistar a filha da morte que a espera. Meu receio intensifica-se especialmente quando lembro do tom fatalista usado por Eugenia ao descrever sua viagem de retorno a Caracas. Será que Maria Eugenia morrerá no final do livro de Parra, sacrificada em nome de uma cagada cometida por algum homem? O casamento que tio Pancho arquiteta no final da primeira parte para Eugenia teria as mesmas características daquele preparado para Ifigênia: despiste de um sacrifício?! Ai, caramba (no. 02)! Só me resta acompanhar o desenrolar dos fatos.


IPHIGENIA IN TAURIS - GOETHE

Essa obra de Goethe funciona como uma espécie de continuação da peça de Eurípides e, nesse sentido, é bem generosa por oferecer ao leitor uma resposta sobre o que teria acontecido a Ifigênia após aquele “milagre” no momento exato em que ela seria sacrificada. E não apenas isso: há nela, achei, uma mensagem global esperançosa e otimista, com boas abordagens morais, sociais e filosóficas.

A galera de Áulis que pôde testemunhar a incrível dádiva da deusa Ártemis acredita que a virgem teria partido para o Olimpo, onde compartilharia da companhia dos deuses, porém as coisas não ocorreram exatamente desse modo. Bom, pelo menos, não na versão escrita por Goethe. Quando a peça do alemão começa, já alguns anos haviam transcorrido desde o fim da Guerra de Troia, ou seja, Goethe não continua do ponto exato em que termina a peça de Eurípides. Certo, e onde está Ifigênia afinal? Por ocasião da “evaporação” da moça em Áulis, Ártemis fez com que ela se materializasse em Tauris (Táuride). Naquela região, os estrangeiros eram usualmente recepcionados de maneira brutal e impiedosa, contudo o rei local, a majestade Thoas, decide conceder a Ifigênia um gentil tratamento diferenciado, permitindo-lhe o exercício da função de sacerdotisa da deusa Diana (= Ártemis), uma espécie de secretária intermediadora. Quem primeiro aparece em cena é a própria Ifigênia e, especificamente, ela queixa-se consigo mesma de sua situação angustiante. A despeito de todos os anos vividos em Tauris, Ifigênia confessa que ainda sente-se como uma completa estrangeira naquelas terras, sentindo-se terrivelmente solitária e saudosa de sua família. Quando ela compara aquela vida com uma segunda morte, penso que Goethe lança ao leitor a isca para uma reflexão filosófica pertinente: uma existência solitária, longe daqueles que amamos e dedicada a um trabalho que não nos apetece, pior, um trabalho que sequer escolhemos, equivaleria a uma morte em vida?
A useless life is but an early death;
This, woman's lot, is eminently mine.
Exato; mal a peça começa, somos forçados a pensar no que seria efetivamente viver. Tenso.

Ifigênia não acha que aquilo era vida e, penso, é assim que Maria Eugenia também se sente durante os meses iniciais em Caracas. De fato, a Ifigênia de Goethe demonstra nítidos sinais de amadurecimento e uma personalidade que a aproxima muito mais da Eugenia que encontrei na primeira parte do livro de Parra. Imagine que agora Ifigênia consegue até assimilar mais claramente que o diferenciado tratamento social então reservado a homens e mulheres era responsável, em grande parte, pela desgraça de sua atual condição. É impressionante como ela se dá conta do quanto as mulheres não tinham voz nas decisões de suas próprias vidas, sempre obrigadas a se sujeitarem às ordens dos homens ou mesmo dos deuses. Uma vida eternamente submissa, sem espaço para glórias ou grandes conquistas, era a única coisa que a Grécia antiga reservava às suas mulheres. E, pelo que tio Pancho conta a Eugenia, isso era o mesmo que a Caracas da primeira década do século XX teria a oferecer ao sexo feminino.
Yet, truly, woman's lot doth merit pity.
Man rules alike at home and in the field,
Nor is in foreign climes without resource;
Possession gladdens him, him conquest crowns,
And him an honourable death awaits.
How circumscrib'd is woman's destiny!
Obedience to a harsh, imperious lord,
Her duty, and her comfort; sad her fate,
Whom hostile fortune drives to lands remote:
Thus I, by noble Thoas, am detain'd,
Bound with a heavy, though a sacred chain.
A personagem Arkas, secretário do monarca Thoas, dispara um discurso que até seria engraçado, caso não soasse tão aviltante. Para ele, Ifigênia não tinha o direito de sentir-se desesperançada e infeliz, considerando-se que o grande rei Thoas tinha sido tão bondoso com ela. Surge aqui mais pano para a manga reflexiva: quem presta um favor tem o direito de exigir uma reação específica do agraciado? Afunilando o quesito para aquilo que realmente se apresenta: se um homem ajuda uma mulher desamparada, esta lhe será eternamente subserviente? E não esqueçamos de que o desamparo dessa mulher foi causado por outros homens, hein. Com o intuito de ser correta com o moço Arkas, preciso acrescentar que ele elogia o excelente trabalho que Ifigênia estava realizando como sacerdotisa, destacando que ela sempre demonstrava a sabedoria necessária para evitar mortes na resolução dos conflitos que eram-lhe apresentados.

No desenrolar da obra, Ifigênia é confrontada com alguns dilemas morais. Em primeiro lugar, o senhor Thoas, tendo perdido seu único filho em uma guerra, decide que era hora de casar-se novamente. Quem é a felizarda noiva eleita? Sim, é Ifigênia. Não contente em “apenas” jogar na cara da moça que ela “devia-lhe” isso, o sujeito tem a pachorra de afirmar que, caso ela se recusasse, só restaria a Thoas lançar-se ao sacrifício pelas mãos de seu próprio povo. É claro que Ifigênia é grata àquele rei, contudo não a ponto de desejar casar-se com ele, nem de fincar os pés em definitivo no estrangeiro. O que ela mais queria era retornar a Grécia e à sua família, e sabia que um casamento com Thoas afastaria de vez esse sonho. A deusa Diana é outro imbróglio dessa sinuca de bico, pois como poderia Ifigênia contrariar a vontade da deusa? Thoas demonstra um egoísmo incrível ao colocá-la em uma cenário tão complexo, impondo a Ifigênia sua única vontade. Aliás, essa representa a segunda vez que um homem apronta isso com ela.

O segundo e principal impasse moral da obra de Goethe apresenta-se a Ifigênia através de seu irmão Orestes, que aporta milagrosamente em Tauris. Orestes não fazia ideia de que a irmã estava lá, e Ifigênia também não foi capaz de identificar o irmão tão crescido, após tantos anos. Quando a surpreendente narrativa de Goethe desfaz o equívoco aos dois irmãos, a gravidade da situação se revela. Orestes está ali em fuga da ira punitiva das Fúrias, buscando redenção para o crime de matricídio! Sim, com o objetivo de vingar o pai morto por Clitemnestra, o rapaz assassinara a própria mãe. Seguindo orientações de Phoebus (Apollo), ele obteria salvação caso fosse para Tauris e:
Back to Greece the sister bring,
Who in the sanctuary on Tauris' shore
Unwillingly abides; so ends the curse!
Eis que, pela terceira vez, a burrada de um homem coloca Ifigênia em múltiplas encruzilhadas. Primeiramente, ela precisa desdobrar-se para trazer o irmão de volta à sanidade, afastando-lhe o literal estado de loucura provocado pelo peso da culpa. Depois, ela tem de decidir se ajudaria ou não o irmão a escapar do sacrifício exigido por Thoas. De que maneira mentir para um homem que tanto a ajudara, demonstrando tanta compaixão? Por fim, Ifigênia questiona se sua família, responsável por tantas crueldades, era digna desse perdão.

Enquanto discute com Thoas o que fazer com aqueles estrangeiros, Ifigênia finalmente percebe que mais uma vez um homem lhe exigia uma conduta, tolhendo sua liberdade de decidir por si mesma – afinal, sendo sacerdotisa da deusa, ela tinha poder para isso.
While yet unknown, thou didst respect my words:
A princess now,—and think'st thou to command me
From youth I have been tutor'd to obey,
My parents first, and then the deity;
And thus obeying, ever hath my soul
Known sweetest freedom. But nor then nor now
Have I been taught compliance with the voice
And savage mandates of a man.
E a epifania da sacerdotisa continua: ela enfim constata que não devia satisfação a ninguém, não importando quão generosa a pessoa tenha sido. E muito menos para aqueles que a exigem de forma tão leviana, como é o exemplo do senhor Thoas.
Speaking or silent, thou canst always know
What is, and ever must be, in my heart.
A coisa toda fica mais cômica quando ela (meio que) se lamenta de ser mulher, visto que, se fosse  homem, ela poderia resolver o impasse não somente com palavras eloquentes, mas mediante livre luta armada, como era (é?) de praxe entre o sexo masculino. O famoso “resolver na porrada”.
Did Agamemnon's son before thee stand, And thou requiredst what became him not, His arm and trusty weapon would defend
His bosom's freedom
I have only words But it becomes a noble-minded man To treat with due respect the words of woman.
E ela emenda com a pergunta (parafraseada): será possível que nós mulheres teremos de apelar para o combate armado, com o propósito de conquistar respeito e liberdade? Well... Segue a fala original:
Of thieves and robbers?
Is nought left for us?
Must gentle woman quite forego her nature,—
Force against force employ,—like Amazons,
Usurp the sword from man, and bloodily
Revenge oppression? In my heart I feel
The stirrings of a noble enterprize;
 
Claro, suponho que essas falas de Ifigênia representam muito mais uma crítica de Goethe à prevalência da resolução dos conflitos humanos através de guerra e violência, do que exatamente uma mensagem feminista. De qualquer jeito, é difícil negar que seu texto aceita essa outra interpretação conjunta.

Agora, incluo um esclarecimento. Orestes havia cometido um erro: a mensagem de Apollo não referia-se a sua irmã Diana, e sim à irmã de Orestes, ou seja, a própria Ifigênia. Esse elemento da trama é extremamente relevante, pois é com ele que Goethe marca sua obra com uma saída não violenta para o fim do longo rastro de sangue que acompanhava os descendentes da família à qual Ifigênia pertencia. Através das ótimas falas das personagens, todos os podres embaixo do tapete da linhagem de Tântalo são revelados. Anexo a seguir a árvore genealógica que me ajudará a fazer um esquema super resumido.

1 = Matou o próprio filho;

2 = (Após ressurreição por obra divina) Aprontou duas: matou o marido de Hippodamia para casar-se com ela; posteriormente afastou Hippodamia dos próprios filhos (equivoca-se ao culpá-la pelo assassinato de Crisipo, filho do primeiro casamento), o que a induziu a suicidar-se;

3 e 4 = Aqui a parada é mega sinistra: Thyeste roubou um filho de Atreus e o criou como seu para vingar-se do irmão que o tinha banido do reino. Anos depois, esse mesmo garoto tentou assassinar Atreus, entretanto acabou sendo assassinado pelo pai biológico. Quando Atreus descobriu essa verdade, ou seja, que tinha matado o próprio filho, decidiu vingar-se de Thyestes. E não foi qualquer vingança: matou os dois filhos do irmão e, com o picadinho dos corpos, preparou a refeição de Thyestes. Sem saber, o pai comeu os corpos dos próprios filhos. Macabro.

5 = Assassinou o primeiro esposo de Clitemnestra e, com o perdão do (futuro) sogro Tíndaro, conseguiu o casamento.

6 = Com a ajuda do amante, matou Agamêmnon quando ele retornava da Guerra de Troia. Não foi apenas um crime passional, mas também uma vingança pela “morte” da filha Ifigênia.

7 =  Planejou e induziu o irmão Orestes a assassinar a mãe, para vingarem a morte do pai;

8 =  Matou a mãe com um punhal.

Que docinho de família. 😍

Por conseguinte, Orestes e Ifigênia são agraciados com a preciosa chance de acabar definitivamente com essa “maldição” da família e, do zero, mudar o rumo na direção de caminhos menos cruéis e mais nobres. Nesse contexto, portanto, a narrativa de Goethe propõe a possibilidade de uma redenção pacífica, sem violência, sem mais derramamento de sangue.

É fundamental não esquecer que os Deuses são os reais responsáveis pela graça conquistada pelos jovens irmãos. Ao longo da peça, as personagens debatem e questionam se os homens deveriam  seguir cegamente a vontade dos Deuses, sujeitando-se tão plenamente a todos seus melindres. E não apenas isso: o certo seria obedecer às ordens dos reis ou às ordens dos Deuses? Quem “mandaria” mais? Com essa saída final, Goethe parece responder essas perguntas, na medida em que sugestivamente corrobora que os Deuses é quem escrevem certo, ainda que através de linhas supostamente tortas. Por exemplo, restou provado que Ártemis não estava sendo cruel e geniosa quando exigira o sacrifício de Ifigênia a Agamêmnon. Na verdade, a deusa comportou-se com extrema sabedoria e piedade, pois estava arquitetando o início da benevolente solução para a sangrenta linhagem de Tântalo. Se as ordens do monarca Thoas tivessem sido cumpridas, teria havido apenas mais mortes que somente gerariam mais brutalidade sem fim.

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Encerro aqui a groselhada e finalmente iniciarei a leitura da segunda parte do livro Ifigênia, de Teresa de la Parra. Possíveis novas conexões com as obras de Eurípides e Goethe - se houver - serão feitas no Diário de Leitura em curso. Até lá!