(Sobre o livro: info sinopse etc - clicar aqui. / Editora Âyiné - Tradução: Priscila Catão)
Afirmo que fui vítima de uma vil
coação. Sob a mira da sinopse “lá
lá lá, um encantador escritor
apaixonado por literatura reconta os anos da adolescência em que
lera livros para O outro
grande escritor
apaixonado por literatura, lá lá lá”, não tive
outra saída, senão adquirir um exemplar de Com Borges pra
mim. Nunca antes na história de meus anos como consumidora, eu havia
sofrido um golpe assim tão baixo.
***
Admirei com ternura a honestidade
contida na forma poética com que Manguel escolhe concluir esse
pequenino livro:
“(...) não são memórias; são memórias das memórias das memórias, e os acontecimentos que as inspiraram desapareceram, deixando apenas algumas imagens, algumas palavras, e não consigo ter certeza nem de que elas mesmas se passaram como lembro.”- Alberto Manguel, Com Borges.
Aliás,
há realmente tanta poesia nessa frase inicial de Manguel, que até a
escritora americana Nicole Krauss já utilizou uma frase praticamente idêntica para intitular um de seus livros: A Memória de Nossas Memórias. (* Não lido. Encarei essa sincronia
como um conselho do universo (!) para que eu cogite com mais
seriedade essa leitura, pois aí está outra
excelente escritora.)
Bom, ainda que Manguel tivesse arriscado alguma artimanha para encobrir o
fato que ele escolhe confessar no trecho destacado, ela teria falhado miseravelmente,
pois a leitura do livro denuncia de maneira bastante
clara que, daqueles anos de convívio com Borges, bem pouco
permaneceu nos labirintos memoriais do autor. Os relatos
da obra não revelam informações privilegiadas ou
especiais que só pudessem ser contadas por quem teve o prazer de conviver com o grande autor
argentino. A impressão que tive é que grande
parcela dos relatos de Manguel pode ser apreendida, com moderada facilidade, através das várias entrevistas concedidas por
Borges e disponibilizadas em fontes diversas. Reforço isso principalmente porque, no momento, estou lendo
uma breve coletânea de entrevistas que Borges concedera a Osvaldo Ferrari, e pude identificar considerável superposição de elementos entre ambas
leituras.
Refletindo sobre o que sabemos a respeito da construção da
memória, avalio que nem poderia ter sido diferente, visto que
Manguel também admite, logo no início, que seu eu adolescente
encarava aquele contato borgiano com uma indiferença de
quem não tinha a menor noção do privilégio. Se aquela experiência não despertava nenhuma grande emoção extraordinária no
coração do jovem escritor, como poderia ter formado raízes
profundas na mente dele? Com efeito, a sensação que a leitura provoca
é a do contato com uma memória concebida mediante revisitação
do passado com um novo olhar sentimental já “contaminado” por
memórias e eventos posteriores.
Caso
pareça que estou invalidando totalmente esse livro, é imperioso
assegurar: de jeito nenhum! Pra mim, os mistérios inesgotáveis de
Borges geram fascínio suficiente para sustentar praticamente
qualquer coisa que diga-lhe respeito. Além disso, como a isca da
sinopse indica, o livro efetivamente entrega ao leitor um papo informal delicioso
sobre literatura, sobre o amor aos livros e, por que não, à própria
vida.
Registrarei um pequeno apanhado de passagens marcantes pra mim. Segue a
breve listinha.
1.
Entonces
el Sr. Borges era
un llorón?!
“Ele não era
indiferente aos melodramas. Chorava em faroestes e filmes de
gângsters. Soluçou ao fim de “Anjos de Cara Suja”, (…) Parado
à beira dos pampas, (…) uma lágrima escorria pelo seu rosto e ele
murmurava: “Caralho, a pátria!” (…) Um certo parágrafo do
esquecido escritor argentino Manuel Peyrou o fazia chorar porque
mencionava calle Nicaragua, uma rua perto de onde nasceu. Gostava de
recitar quatro versos de Rubén Darío (…) o ritmo o fazia
lacrimejar. Ele confessou muitas vezes ser descaradamente
sentimental.”
- Alberto Manguel, Com Borges.
- Alberto Manguel, Com Borges.
Esse dado foi novidade pra mim, e o recebi com enorme gratidão, pois
calculo que me ajudará a fazer as pazes com o traço de minha
personalidade que, veja só, compartilho com Borges. Por exemplo,
hoje mesmo, na data em que escrevo este post, exibi olhos
lacrimejantes em pleno chá de fraldas organizado para uma colega de
trabalho que conheço há menos de 01 ano (o vexame é real). Ora, por que ir tão
longe, se dia desses incluí neste diarinho que chorei ao ouvir
uma música antiga da Madonna? Meu deus. Relaciono-me com esse
meu lado chorona nível hardcore com grande aborrecimento e
exaustão. Até à minha terapeuta, solicitei ajuda para cortar pela
raiz essa barata sentimentalidade da minha psique, mas ela não
parece ter se compadecido a contento.
- Tô
chorando, ok; mas pelo menos Borges me entenderia e não
me julgaria. > Pronto; de agora em diante, essa será minha expressão indulgente.
2.
[ALINHAVANDO] Borges x Szymborska
Hum, não sei se exagero (é bastante possível), porém creio que o argentino e a polonesa
compartilhavam ideias de uma Utopia que dialogavam de maneira
curiosamente próxima. Será que estou derrapando no sabão, ou nem? Vejamos, sim?
Aqui, o que pensava Borges (nas palavras de Manguel):
“De vez em quando, ele cansa de ouvir as leituras, cansa dos livros, das conversas literárias que repete com leves variações para cada visitante ocasional. É então que gosta de imaginar um universo em que revistas e livros não são necessários porque cada um teria em si toda revista e todo livro, toda história e todo verso. No seu universo (ele o descreveria finalmente com o título Utopia de Um Homem Cansado) todo homem é um artista e, portanto, a arte não é mais necessária (...)”
- Alberto Manguel, Com Borges.
Agora,
a Utopia concebida por Wislawa Szymborska (tradução: Regina Przybycien):
Utopia
Ilha
onde tudo se esclarece.
Aqui
se pode pisar no sólido solo das provas.
Não
há estradas senão as de chegada.
Os
arbustos até vergam sob o peso das respostas.
Cresce
aqui a árvore da Suposição Justa
de
galhos desenredados desde antanho.
A
árvore do Entendimento, fascinantemente simples
junto
à fonte que se chama Ah, Então É Isso.
Quanto
mais denso o bosque, mais larga a vista
do
Vale da Evidência.
Se há
alguma dúvida, o vento a dispersa.
O eco
toma a palavra sem ser chamado
e de
bom grado desvenda os segredos dos mundos.
Do
lado direito uma caverna onde mora o sentido.
Do
lado esquerdo o lago da Convicção Profunda.
A
verdade surge do fundo e suave vem à tona.
Domina
o vale a Inabalável Certeza.
Do seu
cume se descortina a Essência das Coisas.
Apesar
dos encantos a ilha é deserta
e as
pegadas miúdas vistas ao longo das praias
se
voltam sem exceção para o mar.
Como
se daqui só se saísse
e sem
voltar se submergisse nas profundezas.
Na
vida imponderável.
- Wislawa Szymborska.
- Wislawa Szymborska.
Pois
bem, minhas elucubrações voaram por estas paragens: se todos têm
dentro de si toda revista e todo livro, toda história e todo verso;
então (?) todos sempre chegam a todas as respostas, sempre entendem
a essência do mundo e eliminam quaisquer incertezas. E aí? Essa
proposição condicional é verdadeira ou falsa? Minha tendência
inicial é refutá-la, contudo, quando a proposta de Borges conclui que nessa sua Utopia “arte não é mais necessária”, minhas dúvidas se dissipam e sinto-me mais confortável para
afirmar que aquela proposição está, sim, correta. Por quê? Porque o
único mundo que prescinde de arte que consigo conceber é aquele em
que todos já são agraciados* por inexoráveis convicções a
respeito de tudo, sendo imunes a dúvidas.
* =
Hum, se entendi direito o poema de Szymborska, versos finais
especialmente, essa Utopia seria incompatível com a vida humana,
certo? Sendo assim, o “agraciados” teria de ser substituído por
“penalizados/amaldiçoados”? Confere?
Seja como for, fica aí o registro desse meu devaneio... hesitante! Indeterminado! → Rá, claro que não tenho todos os
livros dentre de mim e que não dispenso arte em minha vida.
Infelizmente Felizmente.
3.
Borges e Poemas
Por
falar em “se entendi direito o poema”, Borges aparentemente
negaria este famigerado argumento comumente usado por aqueles que
tentam convencer leitores a ler mais poemas: ~”não precisa
entender, basta sentir.”~
Manguel refere que Borges julgava que só seria capaz de dizer se um
poeta era bom ou ruim, caso tivesse uma ideia do que ele/ela se
propôs a fazer; o que, por sua vez, exigiria a plena compreensão de
seus poemas.
4. ("Por falar em poema" no. 03:) - Susan Sontag, olha que legal isto aqui! Já sabia??
5. [Biblio Journal]
"Fazer listas é uma das atividades mais antigas do poeta."- Jorge Luis Borges.
5. [Biblio Journal]
6.
Alfinetada no Victor Hugo! Adoooooro.
Manguel incluiu este
comentário maroto sobre Victor Hugo dito, na verdade, por
Macedonio Fernández:
“Victor Hugo, ah, aquele gringo insuportável! O leitor já foi embora e ele continua falando."
- Macedonio Fernández.
Nenhum comentário:
Postar um comentário