12/06/2018

Lendo Contos | O Aleph - Jorge Luis Borges / os teólogos

 (Editora Companhia das Letras / Tradução: Davi Arrigucci Jr.)

A poeta Aline Aimée, do ótimo canal (no You Tube) Chave de Leitura, disponibilizou resenhas em vídeo para cada um dos contos da coletânea O Aleph, de Jorge Luis Borges (link aqui). Aproveitando a chance de poder contar com alguém para enriquecer minha experiência de leitura, tentarei incluir postagens em resposta aos vídeos da Aimée. Um clube de leitura formado por duas leitoras, maaaaais ou menos. A sequência proposta para o post é a seguinte:

Leio o conto > Escrevo e registro minhas impressões gerais  >
> Assisto ao respectivo vídeo da Aline Aimée > Complemento as impressões com as novas informações e reflexões.


** RISCO DE SPOILERS **


[Impressões pessoais após a leitura do conto:]

E após um conto de "nível médio de dificuldade", encaro agora um de "nível hardcore" repleto de citações filosóficas e teológicas a respeito do tempo; um assunto, assim, fácil e simplezinho, não é mesmo? Pois aceito o desafio, ansiosa para descobrir o tamanho da presepada que cometerei desta vez.

***

Ok; concluída a leitura, fui tomada por uma empolgação e por um furacão caótico de ideias e reflexões. Tentando ordenar a bagunça mental, elaborei um resuminho de três páginas (A4) para Os teólogos (cujo texto consome cinco páginas ~A5. Ou seja: """resumo"""), porém minha situação permaneceu mais ou menos assim:


São tantas as conexões possíveis, que eu sequer sabia por onde começar a escrever estas impressões. O socorro veio através de um artigo da BBC Culture, o Every story in the world has one of these six basic plots, no qual Miriam Quick 1. resgata a tese de Vonnegut sobre os seis formatos gráficos assumidos pelos arcos narrativos dos protagonistas de histórias e 2. expõe as conclusões da pesquisa coordenada pelo professor Mathew Jockers concernentes à existência de seis tipos básicos de histórias graficamente transponíveis. Essas informações me renderam o momento "Eureka!": "Sim, acho que consigo colocar os principais pontos do conto de Borges em único gráfico!"
Aqui está o resultado da minha audaciosa empreitada:


Fala sério, nem preciso explicar, preciso? Brincadeira; me esforçarei, sim; até porque nem sei se marquei um gol ou se chutei feio pra fora. Opto por listar os aspectos principais da minha teoria tresloucada; vejamos se consigo:

(1) A própria estrutura narrativa de Os teólogos adquire a temporalidade circular proposta pelos Monótonos e igualmente confirma a profecia que Euforbo vaticina enquanto queima na fogueira: "Isto aconteceu e voltará a acontecer."  Transcorre no conto a sequência destacada no círculo: Surge uma "nova" teoria/"nova"(s) comunidade(s) supostamente herética(s) → Um sabidão aparece para refutá-la → Algo/Alguém vai parar na fogueira / queima → Surge uma "nova" teoria/"nova"(s) comunidade(s) supostamente herética(s) → Um sabidão aparece para refutá-la → Algo/Alguém vai parar na fogueira / queima → 

(2) A marcação no círculo dos eventos recorrentes parece demonstrar que a cosmologia dos Histriões, baseada na ideia dos espelhos e suas imagens especulares, não contradiz nem se opõe à prévia teoria circular dos Monótonos. Cada evento que retorna, que se repete, tem seu reflexo no exato ponto oposto da circunferência conforme assinalado pelas setas "↔" - 0°x 180° / 60° x 240°/ 30° x 210°... E, desse modo, a narrativa também se constrói em concordância com a proposição dos Histriões. 

(3) Os eventos especulares, avalio, funcionam como duplos, são as facetas opostas que compõe uma mesma unidade. Em outras palavras: são os dois lados da mesma moeda. Na minha análise maluca, isso ganha relevância especialmente quando pensamos nas diversas teorias heréticas que repetidamente surgem ao longo da linha temporal circular proposta nesse conto: sendo duplos de uma entidade una, como podemos considerá-las totalmente distintas? Segundo insinua meu esquema, afinal, as doutrinas dos Monótonos e Histriões se complementam; elas não se anulam absolutamente. Exponho toda essa lenga-lenga devaneante para tentar corroborar a sensação de que tudo e todos que queimaram na fogueira o fizeram em nome das mesmíssimas teses, cujas expressões por metáforas dificultam a percepção da equivalência.

E se as teses atacadas são as mesmas, logo os respectivos textos impugnantes repletos de metáforas também são essencialmente os mesmos, ainda que reapareçam na forma do duplo da mesma unidade. Aureliano e João de Panônia se digladiavam intelectualmente defendendo ideias coincidentes, eles próprios personificando a metáfora do duplo. Não à toa, já no céu, Deus toma Aureliano por João de Panônia, visto que inexiste diferença entre os dois. 
"(...) no paraíso, Aureliano soube que para a insondável divindade ele e João de Panônia (o ortodoxo e o herege, o abominador e abominado, o acusador e a vítima) constituíam uma única pessoa."
Quando os teólogos supunham refutar a herege corrente histriônica, nem percebiam que continuavam concomitantemente refutando a velha corrente dos monótonos, dado que ambas se complementam para construir uma doutrina única. Inclusive, é disso, em parte, que transparece certo teor tragicômico presente na morte de João de Panônia: o que ontem ele escreveu sob acalorada recepção, hoje é considerado blasfêmia, porque as "novas" heresias transpõem seus ditos passados para a posição do duplo oposto. Sinto-me afoita o suficiente para montar uma tabelinha explicativa:

                        Tese B
Heresia  A |    Refuta
Heresia -A |    Ratifica

(Fez sentido?! Nem eu sei! Espero que sim.) A coisa toda fica ainda mais hilária quando Panônia, em sua defesa, refere que não poderia negar o que ele dissera em sua antiga tese, pois isso implicaria confirmar a própria heresia dos Histriões baseada nos espelhos; ou seja, reconheceria o duplo, a existência de entidades reflexas no mundo. (Tese B da tabela.)

Em decorrência de todas essas ruminações, uma impactante frase de Joseph Campbell, com a qual cruzei recentemente assistindo ao "O Poder do Mito", reverberou em minha cabeça durante toda a leitura desse conto. Transcrevo, a seguir, a breve passagem da entrevista, grifando a frase específica a que me refiro - ah!, e incluo a cara do Campbell ao pronunciá-la, pois é perfeita demais para permitir que se perca no meu limbo memorial:
(Joseh Campbell:) Goethe diz: ''Todas as coisas são metáforas. (...) Tudo que é transitório não passa de uma referência metafórica." É isso que todos nós somos. 
(Bill Moyers:) Mas como se pode reverenciar uma metáfora... amar uma metáfora, morrer por uma metáfora?

(Joseh Campbell:) É isso que as pessoas fazem em todos os lugares. Em todos os lugares do mundo. Elas morrem por metáforas.

Certo. Pois eis que Borges conclui Os teólogos com esta frase:
"O final da história só pode ser contado por metáforas, uma vez que se passa no reino dos céus, onde não há tempo."

Detalhe relevante: esse "no reino dos céus, onde não há tempo.", pra mim, é metáfora, hein. O reino nada mais é do que o "aqui e agora". Nossas histórias são contadas por metáforas. As histórias dos Monótonos, dos Anulares, dos Histriões, dos Especulares, de Aureliano, de João de Panônia, a minha etc; todas são contadas por metáforas que, com pequenas variações, acabam afirmando a mesma coisa.

De qualquer maneira, eu nem precisava ter apelado para o auxílio de Campbell, visto que o próprio Borges tratou desse assunto no ensaio A esfera de Pascal, incluído no livro Outras Inquisições.
"A história universal é, talvez, a história de umas quantas metáforas. 
(...)  
A história universal é, talvez, a história da diferente entonação de algumas metáforas."
- Jorge Luiz Borges, A esfera de Pascal (Outras Inquisições - trad.: Davi Arrigucci Jr.)

Nesse ensaio, Borges sustenta que a metáfora geométrica da esfera retorna continuamente, com mínimas variações, através das vozes e escritos de diferentes poetas, teólogos, filósofos e pensadores desde o século 6 a.C. até o século XVII, com Pascal: "Uma esfera terrível cujo centro está em toda parte e a circunferência, em nenhuma." Aliás, a metáfora permanece sendo utilizada até hoje, sim? Jung e a galera que curte mandalas (círculo sagrado) e a busca pelo centro estão aí para comprovar. Campbell, instigado por Moyers no mesmo programa, curiosamente também fala da figura do círculo.

(4) Divertidamente, as premissas centrais dos dois contos anteriores da coletânea - O imortal e O morto -  retornam em Os teólogos, estabelecendo uma perfeita sintonia com a ideia de que "as coisas recuperarão seu estado anterior." Como? Nas minhas elucubrações, assim:
     4.1. (O imortal:) Cada heresia e respectiva contestação regressa continuamente nos ciclos seguintes na forma de duplos, processo que representa o único meio possível para a conquista da imortalidade = mediante propagação, pelas gerações, das palavras, dos livros, das ideias. Nesse contexto, a descrição do modo com que cada teoria era elaborada (as hereges e as refutadoras) chama muita atenção, uma vez que todas consistiam praticamente em uma mera colagem de vários pequenos trechos pinçados a partir de obras escritas anteriormente, de autorias diversas;

     4.2. Com O morto, aprendi que é necessário estar atenta para não bancar o "leitor otálora", aquele que equivoca-se ao ler sua própria narrativa e que, acredito, facilmente se deixa ludibriar por metáforas que - adivinhe? sim: - tratam da mesma coisa.

***

Para arrematar minhas especulações, destaco um interessante esclarecimento escrito por Hernán Nemi e incluído no livro Borges Babilônico, enciclopédia organizada por Jorge Schwartz (Companhia das Letras, 2017), no qual o autor ressalva que Borges, ao longo de sua obra, nem sempre defende exclusivamente a teoria circular do tempo associada ao eterno retorno. Isto foi o que encontrei em os teólogos - tanto no tratamento do tema, como na própria estrutura narrativa -, porém, em outros contos borgianos, poderei deparar-me com concepções diversas sobre o tempo. Anotado!
"Contudo, o maior achado borgiano não consiste em mencionar em meio a seus textos posturas distintas referentes ao tempo, mas em construir relatos cuja trama se desenvolve respondendo a diferentes concepções temporais. Isto é, em alguns contos, a ação se inscreve em um tempo linear, enquanto em outros este é circular ou subjetivo, ou coexistem tempos simultâneos. Isso demonstra ser errado sustentar que o Borges autor adere a uma concepção circular do tempo, relacionada ao eterno retorno. Em alguns contos, ele adere a essa concepção, mas, em outros, a desmente de forma taxativa, e opta por outras. Nesse sentido, sua posição diante do conhecimento vai ao encontro das ideias do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (v.), o qual vê toda concepção do mundo como uma ficção útil para explicar em caráter momentâneo a falta de sentido da existência mas que nem por isso deixa de ser uma ficção transitória, sem um valor de verdade em si e que necessariamente deverá dar lugar a outras novas ficções que de modo progressivo ajudem a dar conta da realidade. (...) 
Ao longo de toda a produção de Borges, coexistem concepções diferentes e antagônicas sobre o tempo: linear, circular, subjetivo ou simultâneo. Seu maior êxito não foi incluir tais conceituações nos contos, à maneira de comentários ou digressões, mas haver conseguido que seus textos narrativos se estruturassem de acordo com cada uma dessas noções temporais. Nesse sentido, a obra de Borges demonstra a relatividade de toda concepção do mundo."
- Hernán Nemi, Borges Babilônico (Organização: Jorge Schwartz)

***
"Como todo possuidor de uma biblioteca, Aureliano se sabia culpado de não conhecê-la até o fim; (...)
E esse trecho do conto me obriga a tomar emprestado aquele versinho de Gilberto Gil: 
"a paz invadiu o meu coração..."  


Ok, hora de apertar play no vídeo da Aline Aimée. (*Medo*) > LINK AQUI



[Comentários pessoais pós-vídeo:]

Ah, mas que beleza: após descobrir que sou uma leitora otálora, encaro agora a revelação de que escrevo "aurelianamente". Ok, ok; é a vida, fazer o quê? Ou melhor (conforme abordou Aimée, dentre as temáticas de Borges): ~é o acaso~.  ¯\_(ツ)_/¯

Bom, vista a resenha da Aimée, julgo que me saí ~razoavelmente~ bem. Poxa, poderia ter sido muuuuito pior. Vale a pena assistir ao vídeo — como de praxe: excelente —, no qual ela faz uma bela lapidação nas questões que consegui captar e incluir em minhas impressões.

Seguidamente, insiro apenas algumas passagens da resenha dela que me foram caras e que complementam com maior destaque esta minha viagem borgiana:

→ Admito logo que os presentinhos cômicos, os easter eggs borgianos (e temos mais essa; ora, ora), voaram, sim, por cima da minha cabeça. A verdade é que, quando os diversos nomes que ele solta no texto começaram a se empilhar formando uma montanha gigantesca, desisti sem dó de sair googlando um por um. Perdão.

No entanto, ainda que eu não tenha pescado a piadinha que Aimée relata sobre a dupla Bossuet e Harnack, esses dois não tinham me passado batido. Uma vez lida, esta passagem foi circulada
"(porque os testemunhos diferem e Bossuet não quer admitir as razões de Harnack)"
e, ao seu lado, interroguei à lápis: "esse par (Bossuet + Harnack) representaria O Retorno de Aureliano + Panônia?!" Derrapo no sabão, ou faz sentido?

→ A Aimée ressalta a estrutura do conto, que realmente é peculiar; quase todo escrito como um artigo teológico, não fosse o parágrafo final que pitorescamente quebra o tom acadêmico geral.

→ Quando Aimée comenta que Borges exibe um humor que revela certo prazer no caráter especulativo das teorias teológicas, minha memória devolveu esta informação presente na obra Com Borges, do Manguel:
"(Borges) Lia teologia com um prazer entusiasmado. << Eles acreditam, mas não se interessam; eu me interesso, mas não acredito.>>  Admirava o uso metafórico dos símbolos cristãos feito por santo Agostinho. <<A cruz de Cristo nos salvou do labirinto circular dos estoicos>>, citava, deliciado. E depois acrescentava: <<Mas ainda prefiro o labirinto circular>>."
- Alberto Manguel, Com Borges (Editora Ayiné; trad. Priscila Catão)

→ Não atentei, de fato, à possibilidade de classificar a presença do duplo como um artifício usado por Borges para refutar a ideia da personalidade. Aimée aponta que, tal qual ocorre em O Imortal, A Forma da Espada e O Tema do Traidor e do Herói, o conto Os teólogos denuncia a equivalência entre os homens. Herói e traidor se equivalem, de modo que a distinção entre eles existe apenas no campo da humanidade. E a escolha de quem assume o papel de herói e o de traidor é responsabilidade do digníssimo Acaso.

Ainda quanto ao duplo, Aimée acrescenta outro importante ponto que me fascina bastante: ele permite a autoanálise. É através da relação com João da Panônia que Aureliano percebe a equivalência existente entre ambos, o que o induz a questionar todas suas prévias certezas a respeito de si mesmo e, em última instância, de sua própria concepção do mundo. Peguei-me refletindo que, nos tempos atuais marcados por tamanha intolerância em relação àqueles minimamente diferentes, essa temática da “autoanálise pelo duplo” ganha considerável relevância.

Complemento apenas mencionando que, no começo do conto e antes de todo o imbróglio teológico superveniente, Aureliano já compreendia que as “verdades espirituais” costumam ser tratadas pelos homens de um jeito meio, digamos, ensaboado:
(grifo meu:)
“Aureliano (...) sabia que em matéria teológica não há novidade sem risco; depois refletiu que a tese de um tempo circular era demasiado ímpar, demasiado assombrosa, para que o risco fosse grave. (As heresias que devemos temer são as que podem se confundir com a ortodoxia.)”
→ Para concluir circularmente esta parte do post, retorno ao tema borgiano do "acaso", tratado por Aimée na discussão do duplo em Os teólogos. No instante em que ela tocou nesse tópico, e dada a maneira com que ela se expressa, me lembrei prontamente da dedicatória que Borges escreve no seu livro Primeira Poesia:
(grifo meu:)
"a quem ler 
Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de ter sido, previamente, por mim usurpado. Nossos nadas pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor destes exercícios, e eu seu redator." 
- Jorge Luis Borges, Primeira Poesia (Companhias das letras; trad.: Josely Vianna Baptista)

Ele é Borges, eu sou essa pateta leitora otálora; e é tudo obra do estimável Acaso. Beleza. 👍

P.S.: mais uma vez, agradeço Aline Aimée pelo ótimo vídeo.

05/06/2018

Se meu apartamento falasse... "Se"?!

O primeiro ponto deste alinhavo começa com a série Sweetbitter (Starz), adaptação para TV do livro homônimo escrito por Stephanie Danler (não li), na qual os bastidores de um grande restaurante novaiorquino são explorados mediante a autoficção das experiências da própria autora. No entanto, danem-se os pormenores da trama, pois são irrelevantes para minha costura. O que me importa aqui é o mote que sustenta o quarto episódio da primeira temporada: Tess, a caipirona novinha que tenta a sorte grande em Nova York, toma coragem para visitar o apartamento de Simone, a charmosa, misteriosa e fodástica sommelier do restaurante onde tinha começado a trabalhar.

Embora Tess já opere no modo “Eu quero tudo que Simone tem; eu quero ser Simone”, a verdade é que ela sequer sabe exatamente quem é aquela mulher tão sedutora. Por isso, a oportunidade de visitar o local habitado pelo Mito é bastante emblemática, e a direção da série, ao optar por movimentos vagarosos de uma câmera que explora em transe cada cantinho, não permite conclusão diferente. Com o auxílio de cada detalhe observado, Tess e espectador não resistem à tentação de elaborar parte dos elementos que constroem a narrativa ignorada (por enquanto) da restaurateur

Com isso em mente, foi super divertido assistir ao episódio, pois restou evidente o quanto a produção se dedicou no momento de escolher o apartamento que serve de locação e todos os pequenos objetos que, conjuntamente, refletem a persona sugerida por Simone até o momento atual da série. Algumas imagens do templo mágico:

Simone, linda de morrer vestindo um quimono, apenas espia ao lado do seu pôster de arte expressionista. Há plantinhas pra todo lado, muitos discos e livros, nenhum sinal de tv, uma Paris Review "displicentemente"  largada sobre a mesa, maço de cigarro, uma banheira na sala (yep) e a Pièce de Résistance: uma edição de As Ondas, de Virginia Woolf. SOBRE.A.BANHEIRA. (Ô loco! Sei não, hein; acho que a mão da produção pesou aqui. Será o trope Chekhov's Gun sendo usado para a narrativa do futuro de Simone? Xi.)

A pergunta que não quer calar: como posso assistir a algo desse tipo e resistir ao impulso de analisar a minha própria casa? Terminei de ver o episódio umas 03h, o silêncio atroz envelopava meus ouvidos e, quando me dei conta, já tinha virado a cadeira na qual me sentava, para que pudesse passar meus olhos escrutinadores por cada canto do espaço, submetendo-o a um raio-x crítico. Será que meus objetos refletem de fato quem eu sou? A decoração do meio em que vivo espelha a contento minha personalidade? Minha ~jornada~? Se a câmera de Sweetbitter voasse sobre cada esquina empoeirada deste 702, o que o espectador da série concluiria a meu respeito? Eu gostaria da narrativa que esse observador construiria?

Durante esse processo investigativo, me lembrei de dados com os quais travei contato previamente relacionados ao tema. Minha memória começou devolvendo o comentário de uma pessoa que visitara minha casa: “sim, é tudo realmente a sua cara.” Sabe quando isso aconteceu? Há uns seis anos. Seis. Anos. E persiste martelando a minha cabeça, a ponto de me fazer registrá-lo nesse diarinho, mediante evocação por Sweetbitter.

Quando minha convidada falou aquilo, respondi com um sorriso simpático, porém, por dentro, confesso que não engoli bem a afirmativa. Como assim “isso tudo é minha cara”? Eu não quero que seja minha cara, pois, por morar em um apê alugado, nunca preocupei-me exatamente em decorá-lo conforme meu gosto. “Só que”, né? [Sempre existe um “só que”] Só que eu fiquei pensando: hum, será que meu inconsciente tratou, sim, de decorar esta porcaria? Ou, talvez, não seja tanto a decoração, mas o modo como utilizo e espalho minhas coisas no ambiente? Até que ponto esse espaço revela quem eu sou? Conjecturei que, provavelmente, meu desconforto decorreu do fato de que eu mesma ainda (!!) não sei quem sou, do que gosto/não gosto com toda certeza, logo como pode meu apartamento ser "a minha cara"?! Será que devo buscar respostas no meu apartamento?!

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O livro Meu Nome é Vermelho, de Orhan Pamuk, recentemente me entregou um trecho no qual um  suspeito de assassinato tem o lar vasculhado. Por exigir dos investigadores um olhar atento a cada detalhe do espaço, a busca por pistas e provas lhes permitiu ouvir o que a casa tinha a dizer a respeito da realidade, vida e personalidade de seu habitante. Transcrevo-o:

[grifos meus - Trad.: Eduardo Brandão - Cia Letras:]
"Enquanto o Negro vasculhava tudo de cabo a rabo, todas as arcas, caixas, até o cesto de roupa suja,eu não tocava em nada, contentava-me com espiar as toalhas, os pentes de ébano, um nojento tapa-sexo para usar no hamam, um frasco de água-de-rosa, uma espécie de saia indiana com motivos ridículos, casacos acolchoados e uma blusa grossa de mulher, imunda e toda remendada, uma bandeja de cobre toda amassada, os tapetes sebentos e o mobiliário barato e desmazelado, nada condizente com o dinheiro que ele ganhava. Ou Oliva era sovina demais, ou tinha algum vício que lhe custava caro. “É bem a casa de um assassino”, observei passado um momento. “Nem mesmo um tapete de oração.” Na verdade não era isso que eu tinha na cabeça. Pensei um pouco e disse: “São as coisas de alguém que não sabe ser feliz”. Mas eu pensava também, com uma ponta de tristeza, que essa infelicidade, essa intimidade com o Diabo eram um alimento da pintura.

“Talvez a casa de um homem que poderia ser feliz, mas não consegue”, respondeu-me o Negro."

Será que a leitura de meu apartamento levaria à conclusão de que sou uma assassina?! Permitiria concluir que sou meramente uma pessoa infeliz? Uma mulher que poderia ser feliz, mas não consegue? Hum...
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Daqui, meu limbo memorial catapultou um trecho do conto Mourning, escrito por Lucia Berlin, cuja protagonista é uma mulher que trabalha na limpeza e esvaziamento de casas de pessoas falecidas que moravam sozinhas. A partir da experiência acumulada nesse tipo de serviço, assim diz a personagem:
“I love houses, all the things they tell me, so that's one reason I don't mind working as a cleaning woman. It's just like reading a book. (…) even empty houses have stories, clues. A love letter stuffed way back in a cupboard, empty whiskey bottles behind the dryer, grocery lists...”
(arrisco uma tradução:)
“Eu amo casas, todas as coisas que elas me dizem, então essa é uma razão por que não me importo de trabalhar como faxineira. É como ler um livro, (…) mesmo as casas vazias contêm histórias, pistas. Uma carta de amor entocada atrás de um armário, garrafas vazias de whiskey atrás da secadora, listas de compras...”
Considerando-se que Berlin efetivamente trabalhou como faxineira, esse olhar compartilhado por ela, mediante a voz de sua personagem, não é mero fruto de imaginação ou de suposições poéticas.

Meu cérebro aproveitou a deixa para resgatar o relato de Miyu Kojima, japonesa que, na vida real, executa o mesmo trabalho da protagonista do conto de Berlin. O artigo que Annette Ekin escreve sobre Kojima traz uma informação preciosa para meu alinhavo: os japoneses que trabalham na limpeza das casas de pessoas que “morreram solitariamente” concedem-se a alcunha de “memento organisers” - “organizadores de mementos, de lembranças/memórias”. (“they refer to themselves as memento organisers”) Bonito, não? Ora, se uma casa é capaz de pôr em evidência as memórias de uma pessoa – existe algo mais íntimo?! -, então... Sim, então elas entregam muita coisa a respeito de seu morador realmente.
"[While cleaning] l often think about who has lived here, what kind of life they had, what kind of job they had, and also what these families are thinking of this person."

Miyu says people tend to collect things: coins, stamps, coupons, shopping bags.

"I search for what these families are looking for or what's important to them - pictures and special things.”
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“[Enquanto limpa] Frequentemente penso sobre quem viveu aqui, que tipo de vida teve, no que trabalhava e o que as famílias estão pensando sobre a pessoa.

Miyu diz que as pessoas costumam colecionar coisas: moedas, selos, cupons, sacolas de compras.

“Eu busco aquilo que as famílias estão procurando ou aquilo que é importante para elas – fotos e objetos especiais.” 
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O alinhavo prossegue costurando passagens de um livro que li recentemente: The Gift of Therapy – An Open letter to a New Generation of Therapists  and their Patients  (*não traduzido no Brasil. Título aproximado em português: O presente/A dádiva da terapia – Uma carta aberta à nova geração de terapeutas e seus pacientes), de Irvin D. Yalom – exato, o mesmo autor do famosão Quando Nietzche Chorou. Nessa obra, Yalom usa sua experiência como terapeuta para organizar uma série de questões que ele julga cruciais para o processo terapêutico e a relação entre terapeuta e paciente.

Antes de continuar alinhavando, vale ressaltar que meu interesse pelo livro foi despertado por minha posição como paciente apenas. Certo, pois, enquanto paciente, imagine o sobressalto que tive quando cheguei no capítulo 58: “Do Home Visits” / ”Faça visitas domiciliares”.

Yalom admite que, ao longo de sua carreira, não fez muitas visitas domiciliares, no entanto lamenta que tenha sido assim, pois afirma que todas as visitas que realizou se mostraram frutíferas, sempre informando-lhe aspectos da vida de seus pacientes que ele jamais teria descoberto de outra maneira. O lar pode desnudar os hobbies, a presença intrusiva do trabalho, a sensibilidade estética evidenciada através dos móveis, itens decorativos e peças de arte, os hábitos recreacionais, a presença de livros e revistas pela casa etc. Não é fascinante?!

Estenderei este ponto um pouquinho, pois esse capítulo do livro de Yalom traz informações que alimentam deliciosamente a neurose que compartilho neste alinhavo. Alguns casos comentados pelo autor:

Caso 1: na visita à casa de um paciente que queixa-se de não ter amigos, o terapeuta depara-se com um lar todo bagunçado que denunciava pouca sensibilidade com o bem-estar de possíveis visitas.

Caso 2: somente a visita domiciliar pôde revelar a Yalom que sua paciente convive com mais de doze felinos em um lar tão intensamente fedido a urina de gato, que qualquer tipo de socialização no ambiente é impossível.

Caso 3: na casa do paciente que, em sessões, posiciona-se como um homem rude e insensível, Yalom surpreende-se com paredes cobertas por pinturas de paisagens chinesas e por belos trabalhos de caligrafia; todos de autoria do paciente.

Caso 4: a paciente que busca conquistar o respeito do terapeuta dando provas de rica intelectualidade é a mesma que sucumbe à intensa ansiedade antes da visita, temerosa de que decepcionaria Yalom quando ele encontrasse o grande amontoado de lembranças de namoros passados que ela insistia guardar.

Casos 5, 6, 7, 8, 9...: pacientes cujas casas revelam pouco cuidado consigo mesmos, como se eles não merecessem beleza e conforto em suas vidas.

A coisa fica divertida quando o autor comenta que a discussão que antecede a visita pode ser muito útil na dinâmica da terapia. Ele relata que os pacientes podem, por exemplo, manifestar intensa ansiedade (medo da exposição), confabular se devem fazer uma faxina antes, ou se o ideal seria apresentar a moradia au naturel. De minha parte, assumo que a leitura de um capítulo que me fez confrontar a mera possibilidade de ter minha terapeuta presente em minha casa foi suficiente para travar todos os meus músculos. Foi mais um momento em que a cadeira na qual me sentava rodopiou, para que eu pudesse passar o pente fino em meu lar. Para dar somente uma pista do nível de ansiedade e do estado paranoico pelo qual fui tomada, informo que, no dia seguinte, catei a pilha enorme de roupa suja que há meses encontrava-se largada em um canto e finalmente a lavei. Pois é.

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A seguir, meu cérebro resolveu perambular por corredores memoriais, a fim de me fazer recordar uma antiga primeira visita que minha mãe me fez. Perdendo a consciência na rua, fui levada por uma ambulância a uma UTI hospitalar, o que exigiu o deslocamento de minha mãe para a cidade em que moro e, claro, para meu apartamento. Sabe aquela piadinha boba “haha, use sempre uma calcinha/cueca apresentável, pois você nunca sabe quando poderá ter um piripaque emergencial na rua”? Pois descobri, na prática, que a galera deveria substituir esse lance besta de calcinha e cueca por “mantenha sempre sua casa apresentável, pois você nunca sabe...”.

Tempos depois, quando já estava recuperada, minha mãe dividiu comigo que o estado em que encontrara meu espaço havia lhe revelado que eu não estava psicologicamente bem, e que ela nem fazia ideia do fato. Ou seja, meu apartamento efetivamente falou com ela. (Ele mentiu? Não.)

🏡

Enfim, encerrarei a postagem aqui, sem conclusões, mas com muitas perguntas — então, já valeu.

03/06/2018

Stiller - Max Frisch

[* As falas de Llosa são adaptadas a partir da resenha que ele publica no livro La Verdad de las Mentiras - Alfaguara (2002).]
***

Daniela: Llosa, tem tempo para outro papo? Concluí mais uma leitura da sua lista.


Llosa: Olá, Daniela; tenho sim. Conversaremos a respeito de que obra?


Daniela: Massa! Hoje o tema da nossa conversa será este aqui: Stiller, de Max Frisch; ou, na tradução lida por você, No Soy Stiller.
Tradução: Irene Aron.
Edição Siciliano: 1992
Originalmente publicado em 1954


Daniela: De cara, acho que vale abordar o elefante branco na sala: Llosa, você andou escrevendo/falando umas paradas controversas por aí, confere?


Llosa: Suponho que refira-se a estes dois textos: link 1, link 2.


Daniela: Exato. Toco logo nesse assunto, porque você sabe como as coisas funcionam na internet: minha disposição para seguir dialogando com você funciona, para a galerinha esperta, como a prova cabal de que concordo com absolutamente todas as suas opiniões e que — para usar uma velha expressão bacana — "sou da sua laia"; merecendo, assim, ser execrada sem dó. Hum... Pera lá... Rá! Sim, sim; suspeito de que esse fenômeno que ocorre na internet dialoga bem com um aspecto desse livro do Frisch, hein. Explico.

Daniela: Na internet, não somos quem julgamos ser. Nesse caso envolvendo sua controvérsia, por exemplo, eu serei aquela que o julgamento premeditado da pessoa do outro lado da tela fizer, e fim de papo. Aqui, mais do que em qualquer outro espaço, é o outro quem define minha identidade, sem possibilidade de defesa. Pior: o olhar do outro me define para sempre, já que, na internet, ninguém recebe permissão para mudar, nem chance para tentar se redimir.

Daniela: Como antecipei as divagações literárias, começarei a soltar imagens de uns trechinhos favoritos do livro de Frisch. Este aqui aborda bem o que estou tentando expressar:

Daniela: Mas enfim, estou atropelando nossa discussão e meio que tergiversando. Retomando o que eu dizia: achei aqueles seus pontos de vista meio complicados, porém escolho, aqui e agora, falar só sobre este livro mesmo, ok? A controvérsia será menor. Ou nosso papo sobre o livro de Frisch será polêmico?


Llosa: Certo. Sim, também estou curioso para descobrir se concordaremos em tudo ou se surgirão controvérsias entre nossas opiniões. Sobre o ponto que você adiantou; a respeito de sua impressão de leitura e do trecho destacado: entende que essa é a temática principal do livro?


Daniela: Na verdade, penso que o livro explora diversos temas que se inter-relacionam harmoniosamente e, nesse sentido, não ousaria definir um único tema principal. Entretanto minhas elucubrações identificaram uma tríade central de temáticas que, ao longo da narrativa, são afunilados pelo autor. Pode ser?


Llosa: Claro que sim. Borges, por exemplo, dizia que o livro muda para cada leitor, não é mesmo?
Quais são os temas que ocupam os vértices da tríade?


Daniela: [Liberdade] x
[Construção de nossa identidade/realidade] x
[Papel da escrita / linguagem / palavra].


Llosa: Certo. Fisgarei o vértice “liberdade” para lançar uma pergunta: acredita que Frish incluiu a própria Suíça nessas discussões sobre a liberdade?


Daniela: Com certeza; afinal, não é à toa que White/Stiller é preso tão logo põe os pés na Suíça. O protagonista funciona como um provocativo contraponto aos cidadãos suíços supostamente livres do lado de fora da cela, ou, mais precisamente, como uma alegoria da própria Suíça, me parece. Aliás, antes de prosseguir, vale ressaltar que liberdade não é algo fácil de conceituar, correto? "Livre! Livre! Livre! e em vão rogo-lhe a dizer uma vez: livre de quê? e principalmente! livre pra quê?" Reconhecida a complexidade, volto aos suíços: o tom das críticas que White/Stiller recorrente e insistentemente lança contra o país levanta dúvidas sobre a liberdade que os suíços julgam possuir. Como considerá-los livres, se vivem constantemente com medo de um futuro que possa destruir todo o desenvolvimento conquistado, com medo de terem seus negócios arruinados?


Llosa: Verdade. A liberdade de que os suíços se gabam não é mesmo real, pois o conformismo erradicou da vida deles o perigo da dúvida e, para Stiller, essa atitude é prototípica da falta de liberdade. Nessa atmosfera de suficiência opressora, tudo que implica em risco ou ruptura com as formas estabelecidas da existência tende a ser reprimido e evitado.


Daniela: Pois é. White/Stiller não se acanha sequer no momento em que denuncia a hipocrisia presente no envolvimento da Suíça na Segunda Guerra Mundial. Conforme a personagem, foram questões econômicas, e não uma alardeada superioridade moral, que levaram os suíços a se envolverem no conflito. Somente quando o moço Führer começou a ameaçar e atrapalhar os negócios da Suíça, é que eles se viram sem escolha (= caímos novamente na falsa liberdade, portanto!), obrigados a meter o bedelho onde não queriam.

Daniela: White/Stiller não tem a menor dúvida de que, se o fascismo tivesse ajudado a Suíça a enriquecer, o posicionamento do país durante a guerra teria sido bastante diferente. São acusações realmente pesadas que Frisch dirige à Suíça através das falas dessa personagem.

Daniela: Ah, e sabe quem Frish me lembrou por conta disso? Thomas Bernhard; outro escritor que dedicou amplo espaço na sua obra literária para meter o sarrafo em outro país europeu; no caso, a Áustria.


Llosa: Exato; são acusações e críticas tão contundentes, que nos levam a acreditar que não há pesadelo mais sinistro do que ser suíço, concorda?


Daniela: Concordo, mas tenho uma confissão a fazer. Como sou uma leitora que sempre viveu no Brasil, foi relativamente custoso deixar o cinismo de lado para abraçar a empatia que me permitisse compreender o lado do autor. Sabe aquelas irônicas e jocosas expressões em inglês, por exemplo,“First World Problems / White People Problems”? É difícil negar que é disso que o protagonista fica se lamuriando ao falar mal da Suíça - ainda mais pra uma leitora brasileira.

Daniela: Por exemplo, quando White/Stiller começa a fazer poesia com a desgraça que observara nas ruas do México, tomadas por urubus e pedintes miseráveis, fica muito complicado continuar suspendendo o cinismo descrente. Claro, a monstruosidade tem seu lado sublime, ok; contudo,
quando é você quem vive na realidade monstruosa, a tarefa de sublimação é bem mais trabalhosa.


Llosa: Consigo entender seu sentimento — afinal, também sou latino-americano — entretanto saliento que a visão crítica de Frish faz muito sentido. A obra reforça que o preço pago para desfrutar do progresso material e do desenvolvimento político é a monotonia da existência, o conformismo endêmico e o declínio da fantasia. Ocorre uma formalização das emoções e dos sentimentos que reduz as relações entre os seres humanos a gestos e palavras rituais desprovidas de substância. É como a própria História facilmente nos demonstra: todo progresso humano traz consigo novas formas de frustração e infelicidade e, por conseguinte, novos motivos para inconformidade e desejo de uma vida diferente e melhor. Por mais avançada e admirável que seja uma sociedade, ela sempre será tomada por insatisfação.


Daniela: Compreendo. Essa interpretação, de fato, não havia me ocorrido. Acredito que ela surge de um ponto de vista, digamos, macro; sendo que minha atenção foi fisgada muito mais pelos aspectos micro da narrativa - o que nem me surpreende, já que, em obras de ficção, costumo preferir o conflito homem x homem, do que o homem x sociedade/sociedade x sociedade. Contudo sua afirmativa de que o progresso de uma civilização está sempre atrelado a algum tipo de inconformismo também parece valer para nossas próprias jornadas individuais, não?

Daniela: A construção de nossa identidade, nossa busca por saber quem somos e pela definição do papel que ocupamos no mundo nunca termina, pois nunca estaríamos plenamente satisfeitos, tal qual ocorre com as sociedades. Será? Por sinal, talvez essa seja, em parte, a fonte da angústia que consome White/Stiller. Ele foge desesperadamente de si mesmo e das regras sociais que restringem sua liberdade de ser quem ele quiser, porém não parece encontrar uma resposta final satisfatória.


Llosa: No entanto destaco que essa insatisfação permanente das sociedades — ou, quem sabe, até do indivíduo, como você alega — não significa que os conceitos de civilização e progresso não existam, mas, sim, que essas noções nunca se traduzem em formas acabadas e perfeitas. É preciso que a insatisfação exista, pois é graças a ela que a cultura humana chegou tão longe. Se não fosse assim, seria necessário provocar o descontentamento para garantir a saúde futura de um povo; ainda que seja forçoso admitir que o progresso não tenha sido capaz de tornar as pessoas mais felizes. Pra mim, este é o ponto central do livro: o desenvolvimento tornou os homens menos pobres, mais cultos e mais livres, no entanto não foi capaz de os fazer mais felizes.


Daniela: Interessante. Minha atenção realmente não havia focado no confronto entre a infelicidade da personagem e o grande progresso de seu país, do que resultaria o aparente paradoxo que você aponta. E acho que não fiz essa ligação porque, mesmo vivendo em um país problemático como o Brasil, consegui identificar-me facilmente com a inquietação de White/Stiller. (…) Hum, espere um momento... Agora caí na toca devaneante do coelho. Acompanhe o raciocínio que acaba de me ocorrer: e se essa minha (não) percepção seja um reflexo da posição que ocupo na sociedade brasileira? Digo, fazendo parte da classe privilegiada do país, a natureza de minhas angústias seriam típicas “First World Problems/White People Problems”, mesmo vivendo em um país subdesenvolvido? Caramba, fiquei até zonza.


Llosa: Pois aproveitarei esse seu raciocínio para lançar uma nova pergunta: mas o que acontece, afinal de contas, com o escultor? Por que ele foge de si mesmo e nega seu passado e seu nome com tamanho desespero obcecado? Essa fuga era ditada pelo remorso causado pelo fracasso da relação com Julika? Ou seria algo mais abstrato e complexo, uma negação de um estilo de vida incompatível com uma existência plena? Ou seja: que “angústias” são essas a que você, Daniela, se refere? Essa questão não é definitivamente respondida pelo romance, e fica por conta do leitor interpretá-la da forma que julgar melhor. A resposta pode ser desde um simples caso de esquizofrenia até uma crise metafísica.

Daniela: Bem, não senti dificuldade para responder essa pergunta ao longo da leitura. Se acertei ou errei, é uma outra história; haha.

Daniela: Inclusive, utilizei aquela tríade temática que citei no início de nossa conversa principalmente para esclarecer essas questões. A meu ver, a vida de White/Stiller estava marcada pela sensação de sufocamento e de culpa. Ele não estava satisfeito com o papel que a sociedade suíça e ele próprio (é lógico) haviam lhe atribuído. Muito menos com seu desempenho nesses papéis, ou com a realidade representada por aquela vida. Não conseguindo mais viver como o White/Stiller:
1. suíço (= preso na mediocridade do seu próprio país),
2. homem covarde (= não foi capaz de fazer a única coisa que se esperava dele durante a Guerra Civil Espanhola),
3. marido imprestável,
4. artista insignificante;
enfim, como um homem fracassado preso a uma vida de tédio, ele escolhe fugir. Ele foge da prisão que era sua vida na Suíça acreditando na esperança de que, agindo desse modo, conquistaria a liberdade necessária para construir para si a identidade que bem desejasse e para viver a realidade “perfeita”, a tal "vida verdadeira". Ele supunha que obteria paz ou, como comentamos no início, um sentimento de satisfação.


Llosa: Compreendi. E porque você segue usando o binômio White/Stiller? Ainda restam-lhe dúvidas
sobre a identidade dessa personagem?


Daniela: Pior que não; não me resta dúvida nenhuma; ele é mesmo Stiller. Acho que sigo usando o binômio por consideração à personagem. Bem ou mal, Stiller foi White aos meus olhos de leitora, ainda que ele tenha conseguido sustentar essa persona apenas durante os cadernos iniciais. Por mais que eu racionalize o impasse meio kafkiano da trama, tenho dificuldades em aceitar que a minha palavra ou de qualquer outra personagem do livro tenha mais valor do que a do White/Stiller no momento de definir quem ele é. 

Daniela: Ora, a ordem de prisão preventiva fundamenta-se unicamente no relato de uma testemunha, enquanto o cidadão prestes a ser preso afirma categoricamente que não é o tal Stiller. Poxa, isso não é maluco?! Então o que eu tenho a dizer sobre mim mesma não vale nada?! E o mais cômico/surreal é quando perguntam-lhe: “por que você não é Stiller”? Logicamente, caí na sandice de reverter a pergunta pra mim: por que eu sou Daniela? Quem foi que disse que eu sou Daniela? O que me faz ser Daniela? O que significa ser Daniela?! (rindo:) Ok, é melhor eu parar, caso contrário irei longe com essa palhaçada. Ah, e por falar em cadernos: de forma +- similar ao The Golden Notebook, da Lessing – último que discutimos, lembra? - a escrita aparece como meio para tentar descobrir a identidade e delinear a realidade de uma pessoa.

Daniela: A diferença é que, em Stiller, a iniciativa é externa ao indivíduo, dado que são as autoridades que entregam os cadernos a White/Stiller, que não acredita na efetividade do recurso da linguagem para essa empreitada. Colo uma passagem fascinante sobre isso:


Llosa: Concordo com você, as contradições objetivas e a convicção de Stiller alimentam nossa dúvida durante um bom tempo, porém logo a verdade transparece mediante o próprio testemunho de Stiller. Quanto à sua percepção do que ocorria com o protagonista, Daniela, imagino que você tenha adentrado na questão do “Amar o impossível”, sentimento que forma parte da natureza do homem, a quem foram concedidos o desejo e a imaginação, os quais o induzem sempre a querer romper os limites e alcançar aquilo que não tem. Mais do que as imperfeições da Suíça, isso é o que leva à ruína de Stiller, que parte em busca daquilo que entende como garantia de plenitude: a aventura e o exótico. 

Llosa: Destaco, no entanto, que, além dos sofrimentos humanos, o "amor ao impossível" também nos proporcionou extraordinárias façanhas do espirito humano, as obras mestras da arte e do pensamento,
os grandes descobrimentos científicos e — o mais importante — a noção e a prática de liberdade.

Llosa: Durante os anos de exílio voluntário, ele parece ter levado uma vida errante nos Estados Unidos e México. São descrições impregnadas de melancolia e que muitas vezes atingem um alto nível artístico. Será que Stiller, vivendo de maneira primitiva nos bosques de Oregon ou compartilhando a miséria e exploração dos camponeses mexicanos, encontrou a intensidade de vida que buscava e que não encontrava quando vivia na civilização urbana ocidental castradora? O testemunho dele é vago, porém a ironia e o sarcasmo de suas recordações parecem dizer que não.


Daniela: Exato! Acredito que ele não encontrou e foi por isso mesmo que afunilei aquela sua reflexão sobre as sociedades para o indivíduo. A busca do indivíduo pela perfeição está fadada a reiteradamente esbarrar em novas frustrações, em novos desejos não contemplados – como nas sociedades.

Daniela: Em várias passagens, o próprio White/Stiller percebe que, na verdade, ele precisava aprender a desapegar da exigência exagerada de si mesmo. Aprender a se aceitar sem tentar convencer os outros de ser quem não era. A fala que a mãe do amigo suicida dirige a ele, por exemplo, é certeira e pungente: "Se ele tivesse encontrado alguém na ocasião que não apenas o encorajasse com palavras e expectativas, e sim que lhe mostrasse como se vive com suas fraquezas -"

Daniela: E não é isso? Como viveremos em paz, se não aceitarmos nossas fraquezas? O contrário é possível? Não aceitá-las e viver em paz? Eu duvido. Agora; com toda certeza não é nada fácil aceitá-las e fazer as pazes com elas. White/Stiller que o diga, coitado. (E eu também...)


Llosa: Verdade. Ao retornar, ele parece compreender que a vida real nunca estará à altura de seus sonhos e que a insatisfação que o fez desaparecer nunca será saciada. Salvo, sem dúvida, no plano da imaginação, da ficção, onde os homens conseguem saciar sua vocação pelo excesso e o anseio por existências fora do comum, ou pelo drama e o apocalipse. Inclusive, Stiller igualmente aprende isso durante seus dias na prisão. A personagem entretém o carcereiro Knobel relatando-lhe uma série de supostos crimes que teria cometido e outras tantas anedotas cheias de graça e de cor, mas que claramente são falácias ou casos distorcidos. São páginas pelas quais o leitor agradece por conta do humor e da astúcia que elas possuem, verdadeiros bálsamos em um livro de movimentos lentos, saturado de sombrio pessimismo.


Daniela: Opa, pois falando em movimento lento: e quanto aquela lorota sem fim representada pelo casal Rolf e Sibylle? Retifico: triângulo amoroso, visto que Stiller entra na treta. Amante da esposa do promotor do seu próprio caso... Jesus. Com esse elemento da trama, ficou claro que o autor amplia a discussão sobre a liberdade também para o âmbito do casamento (Stiller e Julika são outra ponta), porém, mesmo assim, achei um pouco despropositado, meio desconexo dentro do livro. Ah, e muitíssimo chato, pois consumiu inúmeras páginas de uma narrativa que torna-se cada vez mais lenta e arrastada com as idas e vindas desse casal. O que você tem a dizer sobre o papel desses dois na obra?


Llosa: A história desse casal, assim como a de Stiller e Julika, surge para demonstrar como a mediocridade na qual a Suíça estava imersa havia realmente se infiltrado nos relacionamentos humanos.

Llosa: Além disso, a relação entre o promotor Rolf e sua mulher Sibylle é a que melhor ilustra a alienação do amor através do trabalho da civilização moderna, que é a grande acusação de No Soy Stiller. Os maridos decidem que o casamento será um relacionamento aberto e sem servidões, e que ambos manterão sua independência e liberdade. A bela teoria — como é comum acontecer — não funciona na prática. Quando Sibylle tem um amante (Stiller), Rolf sofre o impacto profundamente e, talvez pela primeira vez, descobre que ama e necessita da mulher. A traição da esposa surge como uma espécie de estratégia de Sibylle para provocar o amor de Rolf ou, em outras palavras, para animá-lo, carregá-lo de sustância e salvá-lo da rotina.


Daniela: Ah, ok. É a recorrência daquele confronto que eu não tinha feito: o comportamento do indivíduo suíço no casamento x progresso da nação suíça. Frisch usou para reforçar suas críticas, para apontar mais um aspecto ridículo do aparente progresso perfeito, mera fachada de seu país. Embora eu não tenha gostado muito desses trechos, cabe admitir que Sibylle é uma personagem muito interessante, com ótimas falas. E essa reação do Rolf, citada por você, foi mesmo hilária. “Liberdade só pra mim” é sempre um lema mais fácil de seguir, não é? (Ah!, e o apelido do Stiller, "mimosa ruminante" também é ótimo.)

Daniela:  Um breve adendo: é engraçado que Ifigênia, livro escrito pela venezuelana Teresa de la Parra (li super recentemente), também se debruça sobre a complexa "liberdade no casamento". É uma temática, de fato, instigante; principalmente nos dias atuais, quando os millennials (são eles? sei lá; haha) andam questionando bastante a famigerada monogamia e abraçando cada vez mais os relacionamentos abertos.

Daniela: E acho que é isso, sim? Mais uma vez, agradeço o tempinho dedicado para trocar uma ideia
comigo sobre literatura.


Llosa: O prazer é meu. Só queria finalizar com um breve comentário; caso me permita.


Daniela: Lógico que sim. Mande lá.


Llosa: A mera existência de um romance como No Soy Stiller contradiz a tese proposta pelo próprio livro. A atroz civilização do país onde a história acontece não deve ser tão destrutiva do espírito crítico, nem tão segregadora de um conformismo generalizado, quando nesse mesmo meio surgem contraditores tão intensos quanto Max Frisch e críticas tão duras como as desta obra. Mas quem sabe um dia virá o limbo suiço e o inferno tão desejados por pessoas como Anatol Stiller.


Daniela: Eita! Aí eu curti, haha.

Daniela: Esses nossos papos são sempre uma diversão. Obrigada, Llosa; e até o próximo livro!