05/06/2018

Se meu apartamento falasse... "Se"?!

O primeiro ponto deste alinhavo começa com a série Sweetbitter (Starz), adaptação para TV do livro homônimo escrito por Stephanie Danler (não li), na qual os bastidores de um grande restaurante novaiorquino são explorados mediante a autoficção das experiências da própria autora. No entanto, danem-se os pormenores da trama, pois são irrelevantes para minha costura. O que me importa aqui é o mote que sustenta o quarto episódio da primeira temporada: Tess, a caipirona novinha que tenta a sorte grande em Nova York, toma coragem para visitar o apartamento de Simone, a charmosa, misteriosa e fodástica sommelier do restaurante onde tinha começado a trabalhar.

Embora Tess já opere no modo “Eu quero tudo que Simone tem; eu quero ser Simone”, a verdade é que ela sequer sabe exatamente quem é aquela mulher tão sedutora. Por isso, a oportunidade de visitar o local habitado pelo Mito é bastante emblemática, e a direção da série, ao optar por movimentos vagarosos de uma câmera que explora em transe cada cantinho, não permite conclusão diferente. Com o auxílio de cada detalhe observado, Tess e espectador não resistem à tentação de elaborar parte dos elementos que constroem a narrativa ignorada (por enquanto) da restaurateur

Com isso em mente, foi super divertido assistir ao episódio, pois restou evidente o quanto a produção se dedicou no momento de escolher o apartamento que serve de locação e todos os pequenos objetos que, conjuntamente, refletem a persona sugerida por Simone até o momento atual da série. Algumas imagens do templo mágico:

Simone, linda de morrer vestindo um quimono, apenas espia ao lado do seu pôster de arte expressionista. Há plantinhas pra todo lado, muitos discos e livros, nenhum sinal de tv, uma Paris Review "displicentemente"  largada sobre a mesa, maço de cigarro, uma banheira na sala (yep) e a Pièce de Résistance: uma edição de As Ondas, de Virginia Woolf. SOBRE.A.BANHEIRA. (Ô loco! Sei não, hein; acho que a mão da produção pesou aqui. Será o trope Chekhov's Gun sendo usado para a narrativa do futuro de Simone? Xi.)

A pergunta que não quer calar: como posso assistir a algo desse tipo e resistir ao impulso de analisar a minha própria casa? Terminei de ver o episódio umas 03h, o silêncio atroz envelopava meus ouvidos e, quando me dei conta, já tinha virado a cadeira na qual me sentava, para que pudesse passar meus olhos escrutinadores por cada canto do espaço, submetendo-o a um raio-x crítico. Será que meus objetos refletem de fato quem eu sou? A decoração do meio em que vivo espelha a contento minha personalidade? Minha ~jornada~? Se a câmera de Sweetbitter voasse sobre cada esquina empoeirada deste 702, o que o espectador da série concluiria a meu respeito? Eu gostaria da narrativa que esse observador construiria?

Durante esse processo investigativo, me lembrei de dados com os quais travei contato previamente relacionados ao tema. Minha memória começou devolvendo o comentário de uma pessoa que visitara minha casa: “sim, é tudo realmente a sua cara.” Sabe quando isso aconteceu? Há uns seis anos. Seis. Anos. E persiste martelando a minha cabeça, a ponto de me fazer registrá-lo nesse diarinho, mediante evocação por Sweetbitter.

Quando minha convidada falou aquilo, respondi com um sorriso simpático, porém, por dentro, confesso que não engoli bem a afirmativa. Como assim “isso tudo é minha cara”? Eu não quero que seja minha cara, pois, por morar em um apê alugado, nunca preocupei-me exatamente em decorá-lo conforme meu gosto. “Só que”, né? [Sempre existe um “só que”] Só que eu fiquei pensando: hum, será que meu inconsciente tratou, sim, de decorar esta porcaria? Ou, talvez, não seja tanto a decoração, mas o modo como utilizo e espalho minhas coisas no ambiente? Até que ponto esse espaço revela quem eu sou? Conjecturei que, provavelmente, meu desconforto decorreu do fato de que eu mesma ainda (!!) não sei quem sou, do que gosto/não gosto com toda certeza, logo como pode meu apartamento ser "a minha cara"?! Será que devo buscar respostas no meu apartamento?!

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O livro Meu Nome é Vermelho, de Orhan Pamuk, recentemente me entregou um trecho no qual um  suspeito de assassinato tem o lar vasculhado. Por exigir dos investigadores um olhar atento a cada detalhe do espaço, a busca por pistas e provas lhes permitiu ouvir o que a casa tinha a dizer a respeito da realidade, vida e personalidade de seu habitante. Transcrevo-o:

[grifos meus - Trad.: Eduardo Brandão - Cia Letras:]
"Enquanto o Negro vasculhava tudo de cabo a rabo, todas as arcas, caixas, até o cesto de roupa suja,eu não tocava em nada, contentava-me com espiar as toalhas, os pentes de ébano, um nojento tapa-sexo para usar no hamam, um frasco de água-de-rosa, uma espécie de saia indiana com motivos ridículos, casacos acolchoados e uma blusa grossa de mulher, imunda e toda remendada, uma bandeja de cobre toda amassada, os tapetes sebentos e o mobiliário barato e desmazelado, nada condizente com o dinheiro que ele ganhava. Ou Oliva era sovina demais, ou tinha algum vício que lhe custava caro. “É bem a casa de um assassino”, observei passado um momento. “Nem mesmo um tapete de oração.” Na verdade não era isso que eu tinha na cabeça. Pensei um pouco e disse: “São as coisas de alguém que não sabe ser feliz”. Mas eu pensava também, com uma ponta de tristeza, que essa infelicidade, essa intimidade com o Diabo eram um alimento da pintura.

“Talvez a casa de um homem que poderia ser feliz, mas não consegue”, respondeu-me o Negro."

Será que a leitura de meu apartamento levaria à conclusão de que sou uma assassina?! Permitiria concluir que sou meramente uma pessoa infeliz? Uma mulher que poderia ser feliz, mas não consegue? Hum...
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Daqui, meu limbo memorial catapultou um trecho do conto Mourning, escrito por Lucia Berlin, cuja protagonista é uma mulher que trabalha na limpeza e esvaziamento de casas de pessoas falecidas que moravam sozinhas. A partir da experiência acumulada nesse tipo de serviço, assim diz a personagem:
“I love houses, all the things they tell me, so that's one reason I don't mind working as a cleaning woman. It's just like reading a book. (…) even empty houses have stories, clues. A love letter stuffed way back in a cupboard, empty whiskey bottles behind the dryer, grocery lists...”
(arrisco uma tradução:)
“Eu amo casas, todas as coisas que elas me dizem, então essa é uma razão por que não me importo de trabalhar como faxineira. É como ler um livro, (…) mesmo as casas vazias contêm histórias, pistas. Uma carta de amor entocada atrás de um armário, garrafas vazias de whiskey atrás da secadora, listas de compras...”
Considerando-se que Berlin efetivamente trabalhou como faxineira, esse olhar compartilhado por ela, mediante a voz de sua personagem, não é mero fruto de imaginação ou de suposições poéticas.

Meu cérebro aproveitou a deixa para resgatar o relato de Miyu Kojima, japonesa que, na vida real, executa o mesmo trabalho da protagonista do conto de Berlin. O artigo que Annette Ekin escreve sobre Kojima traz uma informação preciosa para meu alinhavo: os japoneses que trabalham na limpeza das casas de pessoas que “morreram solitariamente” concedem-se a alcunha de “memento organisers” - “organizadores de mementos, de lembranças/memórias”. (“they refer to themselves as memento organisers”) Bonito, não? Ora, se uma casa é capaz de pôr em evidência as memórias de uma pessoa – existe algo mais íntimo?! -, então... Sim, então elas entregam muita coisa a respeito de seu morador realmente.
"[While cleaning] l often think about who has lived here, what kind of life they had, what kind of job they had, and also what these families are thinking of this person."

Miyu says people tend to collect things: coins, stamps, coupons, shopping bags.

"I search for what these families are looking for or what's important to them - pictures and special things.”
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“[Enquanto limpa] Frequentemente penso sobre quem viveu aqui, que tipo de vida teve, no que trabalhava e o que as famílias estão pensando sobre a pessoa.

Miyu diz que as pessoas costumam colecionar coisas: moedas, selos, cupons, sacolas de compras.

“Eu busco aquilo que as famílias estão procurando ou aquilo que é importante para elas – fotos e objetos especiais.” 
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O alinhavo prossegue costurando passagens de um livro que li recentemente: The Gift of Therapy – An Open letter to a New Generation of Therapists  and their Patients  (*não traduzido no Brasil. Título aproximado em português: O presente/A dádiva da terapia – Uma carta aberta à nova geração de terapeutas e seus pacientes), de Irvin D. Yalom – exato, o mesmo autor do famosão Quando Nietzche Chorou. Nessa obra, Yalom usa sua experiência como terapeuta para organizar uma série de questões que ele julga cruciais para o processo terapêutico e a relação entre terapeuta e paciente.

Antes de continuar alinhavando, vale ressaltar que meu interesse pelo livro foi despertado por minha posição como paciente apenas. Certo, pois, enquanto paciente, imagine o sobressalto que tive quando cheguei no capítulo 58: “Do Home Visits” / ”Faça visitas domiciliares”.

Yalom admite que, ao longo de sua carreira, não fez muitas visitas domiciliares, no entanto lamenta que tenha sido assim, pois afirma que todas as visitas que realizou se mostraram frutíferas, sempre informando-lhe aspectos da vida de seus pacientes que ele jamais teria descoberto de outra maneira. O lar pode desnudar os hobbies, a presença intrusiva do trabalho, a sensibilidade estética evidenciada através dos móveis, itens decorativos e peças de arte, os hábitos recreacionais, a presença de livros e revistas pela casa etc. Não é fascinante?!

Estenderei este ponto um pouquinho, pois esse capítulo do livro de Yalom traz informações que alimentam deliciosamente a neurose que compartilho neste alinhavo. Alguns casos comentados pelo autor:

Caso 1: na visita à casa de um paciente que queixa-se de não ter amigos, o terapeuta depara-se com um lar todo bagunçado que denunciava pouca sensibilidade com o bem-estar de possíveis visitas.

Caso 2: somente a visita domiciliar pôde revelar a Yalom que sua paciente convive com mais de doze felinos em um lar tão intensamente fedido a urina de gato, que qualquer tipo de socialização no ambiente é impossível.

Caso 3: na casa do paciente que, em sessões, posiciona-se como um homem rude e insensível, Yalom surpreende-se com paredes cobertas por pinturas de paisagens chinesas e por belos trabalhos de caligrafia; todos de autoria do paciente.

Caso 4: a paciente que busca conquistar o respeito do terapeuta dando provas de rica intelectualidade é a mesma que sucumbe à intensa ansiedade antes da visita, temerosa de que decepcionaria Yalom quando ele encontrasse o grande amontoado de lembranças de namoros passados que ela insistia guardar.

Casos 5, 6, 7, 8, 9...: pacientes cujas casas revelam pouco cuidado consigo mesmos, como se eles não merecessem beleza e conforto em suas vidas.

A coisa fica divertida quando o autor comenta que a discussão que antecede a visita pode ser muito útil na dinâmica da terapia. Ele relata que os pacientes podem, por exemplo, manifestar intensa ansiedade (medo da exposição), confabular se devem fazer uma faxina antes, ou se o ideal seria apresentar a moradia au naturel. De minha parte, assumo que a leitura de um capítulo que me fez confrontar a mera possibilidade de ter minha terapeuta presente em minha casa foi suficiente para travar todos os meus músculos. Foi mais um momento em que a cadeira na qual me sentava rodopiou, para que eu pudesse passar o pente fino em meu lar. Para dar somente uma pista do nível de ansiedade e do estado paranoico pelo qual fui tomada, informo que, no dia seguinte, catei a pilha enorme de roupa suja que há meses encontrava-se largada em um canto e finalmente a lavei. Pois é.

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A seguir, meu cérebro resolveu perambular por corredores memoriais, a fim de me fazer recordar uma antiga primeira visita que minha mãe me fez. Perdendo a consciência na rua, fui levada por uma ambulância a uma UTI hospitalar, o que exigiu o deslocamento de minha mãe para a cidade em que moro e, claro, para meu apartamento. Sabe aquela piadinha boba “haha, use sempre uma calcinha/cueca apresentável, pois você nunca sabe quando poderá ter um piripaque emergencial na rua”? Pois descobri, na prática, que a galera deveria substituir esse lance besta de calcinha e cueca por “mantenha sempre sua casa apresentável, pois você nunca sabe...”.

Tempos depois, quando já estava recuperada, minha mãe dividiu comigo que o estado em que encontrara meu espaço havia lhe revelado que eu não estava psicologicamente bem, e que ela nem fazia ideia do fato. Ou seja, meu apartamento efetivamente falou com ela. (Ele mentiu? Não.)

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Enfim, encerrarei a postagem aqui, sem conclusões, mas com muitas perguntas — então, já valeu.

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