24/11/2018

To ring or not to ring, that is the question


Eu, Daniela, uma lazarenta spinster balzaquiana sem muita vergonha na cara, faço parte da tripulação de um ship de série de TV. Shippo, não nego, paro quando puder. Se inicio esse alinhavo com tão embaraçosa confissão, é porque tomei uns cruzados de direita cravados por leituras recentes; justamente porque o ship me fez baixar a guarda. Explico.

Em companhia dos colegas tripulantes do ship, aturei muitas idas e vindas rocambolescas e estapafúrdias de meu glorioso One True Pairing - OTP; todas porcamente arquitetadas por incompetentes roteiristas sem coração. A despeito dessas amargas intempéries, toda a tripulação permaneceu firme e, após longos anos repletos de raiva e dor, obtivemos finalmente a sonhada recompensa: nosso casal foi reconhecido canon e o casamento oficial aconteceu. Pronto; agora é o momento da segunda revelação constrangedora: cada vez que o OTP aparece em cena e a câmera enquadra graciosamente as alianças nos dedinhos dos dois, eu banco a tonta assim: 💖😍💖 (Estou velha demais pra posar de fangirl adolescente; mas é que eles estão super bonitiiiiiiinhos.) Embora eu não estabeleça um diálogo próximo com outros tripulantes do ship, pude perceber, mediante comentários em sites diversos, que essa reação parece ser compartilhada por muitos. Em rápido levantamento retrospectivo, consegui localizar este exemplo:

Enfim, esse lero-lero introdutório serve para demonstrar que, nos últimos meses, meu lado romântico está embriagado pela imagem da aliança matrimonial. Nesse estado deplorável, acabei servindo de presa fácil para uns textos que ~meio que~ descem o sarrafo na marmota aliança de casamento. Hum, seria mesmo uma marmota? Cenas dos próximos pontos do alinhavo.

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O primeiro peteleco partiu de um trecho do livrinho ali ↰. Atualmente escalo (a sofridos passos de tartaruga) essa tal Montanha Mágica concebida por Thomas Mann e, em certo ponto da subida, apareceu um papo a respeito de alianças que, claro, imediatamente despertou minha atenção. 

O lance começa com moço Hans Castorp, o protagonista paspalhão que está lá todo suspirando por Mme Clávdia Chauchat, paciente russa do Sanatório Internacional Berghof. Aproveitando a pasmaceira que reina no lugar, Hans puxa conversa fiada com a professora Engelhart, vizinha de mesa dele, a fim de obter informações sobre o crush.

Entre as curiosidades que Hans deseja apaziguar, consta a preliminar necessidade de confirmar se Cládvia é casada. Como o bobalhão não avista aliança no dedo da moça, ele desconfia do relato prévio de que o crush é uma senhora oficialmente comprometida. Já que quem pergunta o que quer, ouve o que não quer; ao externar tais questionamentos, ele acaba tendo de escutar um textão lacrador da senhora Engelhart. Aliás, ele e eu. Acho? Bom, para a senhora Engelhart, essa coisa de aliança é prosaica e negativa; mero símbolo de servidão que confere às mulheres um quê de freira, um quê de florzinhas não-me-toques. Visto que a professora sabe por fontes seguras que Mme Chauchat é, sim, casada; Engelhart conjectura que a russinha, sendo tão jovem e moderna, simplesmente não deve ter vontade, nem ver motivos para mostrar seus laços conjugais a todo cavalheiro que lhe aperta a mão. Engelhart supõe que Cládvia julga o uso de aliança um costume burguês (eita), afirmando mesmo que "andar assim com uma argola lisa no dedo - só falta o molho de chaves num cestinho..." E aí; que tal o discurso da professora? Minha deusa interior feminista interior, até então inebriada pelo suposto gaslighting (?) promovido pelo ship casado, reagiu deste jeito (imagens reais):

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E não parou aí, pois em seguida acabei vítima de outra bordoada desferida por - ninguém mais, 

ninguém menos que - Angela Carter. Especificamente, o golpe partiu do conto The Bloody Chamber, versão da autora inglesa para o conto de fadas O Barba Azul, escrito originalmente por Charles Perrault. A narrativa de Carter atira símbolos para todos os lados e, evidentemente, a aliança surge majestosa no meio do tiroteio.

A protagonista do conto é uma humilde mocinha virgem de apenas dezessete anos que se casa com um rico marquês que já tinha despachado para o caixão três esposas. Quem conhece o conto de fadas que serviu de inspiração sabe o destino final que aquelas pobres mulheres efetivamente tiveram. No contexto dessa obra, a aliança — precisamente, uma solitária opala:

(1) É símbolo da longa sucessão de mulheres que padeceram nas mãos de homens violentos e opressores. A linhagem de dedos femininos ornados pela opala, antigo presente de Catherine de Medici (!), remonta à avó do marquês e inclui todas as esposas que repousavam eternamente na câmara sangrenta do marido algoz. E, se dependesse das intenções do Barba Azul de Carter, a continuidade da genealogia conjugal estaria garantida mediante o anel que ele faz questão de exigir de volta.
"Give it me back, whore." 
The fires in the opal had all died down. I gladly slipped it from my finger and, even in that dolorous place, my heart was lighter for the lack of it. My husband took it lovingly and lodged it on the tip of his finger; it would go no further. 
"It will serve me for a dozen more fiancees," he said. "
(2) Integra toda a parafernália que representa o exílio doméstico da heroína. A visão do brilho da opala obriga a protagonista a reconhecer que, por conta de sua ingenuidade e inexperiência, ela havia se deixado seduzir pelas riquezas do marquês.
"My first thought, when I saw the ring for which I had sold myself to this fate, was, how to escape it."
(3) Simboliza a relação de poder; a posse do marido que, sem maiores surpresas, exige que a esposa exiba a opala inclusive por cima da luva. A imagem da aliança sinaliza aos demais que aquela mulher era um objeto que tinha dono. 
"My husband liked me to wear my opal over my kid glove, a showy, theatrical trick -- but the moment the ironic chauffeur glimpsed its simmering flash he smiled, as though it was proof positive I was his master's wife".
(4) (de arrepiar os cabelos:) Representa o marido onipresente; a opala, os olhos do esposo que tudo vê.
" The light caught the fire opal on my hand so that it flashed, once, with a baleful light, as if to tell me the eye of God -- his eye -- was upon me."
Obviamente, a vozinha da feminista interior veio me aporrinhar de novo os pacovás:

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Posteriormente, dei asas às minhas tendências mexeriqueiras ("shame on me" número 3) para investigar se, conforme eu tinha passado a suspeitar, o símbolo da aliança surge em algum verso de Sylvia Plath com conotação similar àquelas encontradas nas recentes leituras. Dado o que conhecemos da biografia de Plath, notadamente do casamento dela com Ted Hughes, a bisbilhotice espontaneamente surgiu. (Perdão?) Bom, dei de cara com isto (grifos meus):

The Couriers

The word of a snail on the plate of a leaf?
It is not mine. Do not accept it.

Acetic acid in a sealed tin?
Do not accept it. It is not genuine.

A ring of gold with the sun in it?
Lies. Lies and a grief.


Frost on a leaf, the immaculate
Cauldron, talking and crackling

All to itself on the top of each
Of nine black Alps,

A disturbance in mirrors,
The sea shattering its grey one——

 Love, love, my season.

E isto:

The Rabbit Catcher (* incluí apenas a estrofe final:)

(...)

And we, too, had a relationship——
Tight wires between us,
Pegs too deep to uproot, and a mind like a ring
Sliding shut on some quick thing,
The constriction killing me also.


Continuei alimentando minhas tendências conspiratórias, dessa vez com Ana Cristina César e, por coincidência (?), a metáfora da aliança como espécie de objeto constritor que sufoca, que tolhe a liberdade feminina (algo próximo ao poema de Plath...?) também aparenta estar presente:
(Por favor, focar no "aparenta", porque 1. não manjo de poemas, 2. desconheço detalhes da biografia de ACC)

Sábado de aleluia (* incluí apenas alguns versos:)

(...)

Eram brincos caídos
e um anel de jade que selasse numa dura castidade
minha fúria de batalha
que viaja e volta.
                                                                                        ---

Considerando-se que a toca do coelho já se encontrava aos meus pés, decidi me atirar; porém sem me aprofundar, admito. Realizei somente uma googlada fajuta que pudesse confirmar resumidamente a história básica: quando e como, afinal de contas, começou a tradição da troca de alianças em casamentos? Rá!; “troca”?! A primeira questão crucial que esqueci de notar refere-se exatamente à inexistência de uma troca nos primórdios dessa prática. O uso compartilhado do ornamento por casais é agora tão popular e dominante, que de fato meus devaneios não atinaram que homens casados só começaram a ornar seus dedinhos com um anel a partir da segunda metade do século XX (!). Essa mudança, pelo que apurei, teria sido preliminarmente patrocinada pelos combatentes da 2a. Guerra Mundial, para quem o objeto simbolizava uma lembrança afetuosa das esposas e famílias que eles tinham sido obrigados a deixar para trás. Movimentos feministas daquele século também parecem ter exercido algum papel na mudança do padrão. 

A dinâmica social relacionada à histórica presença da aliança em casamentos realmente aproxima-se mais àquela explorada por Carter e defendida por Engelhart, visto que só era usada pelas esposas e usualmente sinalizava que a mulher tinha dono, era propriedade de um marido. E, nesse sentido, meu instinto fangirl sentimental não foi acalentado pela recordação de que as cerimônias de celebração dos contratos feudais frequentemente usavam anéis para simbolizar a investidura e os laços de fidelidade firmados entre suserano e vassalo durante a idade média. (Holy shit)

O uso compartilhado do adorno é hoje muito mais prevalente; certo, contudo minha superficial pesquisa revelou uma anedota curiosa que eu desconhecia: o príncipe William esnobou a aliança. Sim, o Duque de Cambridge, segundo matéria que li, alegou ser avesso a joias de todo e qualquer tipo, razão pela qual ele teria optado manter os dedos desnudos. Embora eu considere que o sentido da coisa resta amplamente perdido quando apenas um lado usa a peça; julguei ~tudo tranquilo~ - se os dois estão de acordo, quem sou eu para dar pitaco, confere? Igualmente não embarco na onda "hum, ele quer deixar o terreno livre hahaha", pois a lorota de usar aliança para coibir galanteios de terceiros — uma espécie de sinal vermelho — é por demais tola e disparatada. O legal dessa brincadeira reflexiva, entretanto, correspondeu à indagação provocadora feita pelo jornalista do artigo: e se o único repudiador da aliança tivesse sido a esposa, Duquesa Kate Middleton, hein? Será que a galera estaria de boas se a Duquesa fosse o cônjuge a desfilar por aí sem um anel* no dedo? Ora, ora; veja só. (*Anel que, a propósito, pertencera à falecida sogra traída pelo respectivo marido, o senhor Charles. Oh boy.)

Para arrematar o alinhavo, resgato a pergunta que deixei suspensa na introdução: aliança de casamento é uma marmota? Bem, a despeito do ponto de vista encontrado nas últimas leituras e dos achados da superficial pesquisa, lamento reportar que, após sérias ponderações embaixo do chuveiro, o lado romântico bobinho persistiu levando a melhor em cima da feminista interior. Placar final: sem objeções ao uso *compartilhado* do anel (quem quiser, usa; quem não quiser, não usa); caráter não marmotoso. O resultado foi apertado, é verdade, porém acredito que é o que tenho para hoje


Em minhas toscas divagações, confabulei que gastar energia problematizando um anel significaria desvirtuar-se da real questão: estruturas sociais patriarcais e concretas dinâmicas matrimoniais perniciosas. Pode ser, ou nem? Naquele próprio conto da Angela Carter, por exemplo, a heroína casa-se novamente com um homem capaz de construir uma relação de respeito e companheirismo recíprocos com uma mulher. Conforme também afirma Rosemary Moore, a protagonista "substitui uma relação marcada pelo poder e submissão por outra de afeto e igualdade mútuos." A narrativa de Carter não diz se houve uma nova aliança na parada, mas ousarei lançar a hipótese no mundo ficcional: e se a narradora tivesse afirmado que sim? Essa segunda aliança presumida, naquela nova realidade conjugal, teria valor simbólico equivalente ao da opala reluzente do marquês? Deveria ser igualmente condenada? Sei lá, estou humildemente assumindo que minha ingenuidade lírica teima em não abrir mão do objeto que, para os egípcios, encarnava a vena amoris = a veia do amor que parte do coração até o quarto dedo da mão esquerda. Enquanto dois seres humanos forem capazes de estabelecer entre si um genuíno e recíproco laço afetivo (são? aqui, é meu lado cínico que manifesta uma duríssima contestação), acredito que resistirei à tentação de demonizar em absoluto todo e qualquer objeto trocado para simbolizar, celebrar e reforçar a existência do elo. Aliás, encerro a postagem deliberadamente com a palavra "objeto", em vez de anel/aliança, porque considero imprescindível ressaltar que 1. a ideia à qual me apego aqui não exige necessariamente um anel, 2. nem refere-se necessariamente a uma relação de amor romântico; 3. ah, e tampouco restringe-se a casais héteros, é lógico. Lanço dois caros exemplos ficcionais que representam bem (acho) o teor da defesa que porcamente tentei apresentar. São eles:

 → Anel "BFF - Melhores Amigos Para Sempre", dos amigos Bob Esponja e Patrick:


→ Os colares de caveira usados pelo lindo e apaixonado casal vampiresco do filme Only Lovers Left Alive (💛):

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Ok; hoje, fico de fato com esse posicionamento e escolho continuar a bordo do ship, conservando a empolgação pueril diante das cenas protagonizadas pelas alianças do OTP.  Amanhã? Sequer sei se estarei viva amanhã, portanto: ¯\_(ツ)_/¯

2 comentários:

  1. Respostas
    1. AAAAAHHHHHHH! <3 Leticia, querida, muito obrigada por mais uma vez reservar um tempinho pra ler minhas asneiras e deixar uma mensagem tão carinhosa. Fico super feliz (mesmo!) em saber que você curte as groselhas deste diarinho. Beijo grande! :*

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