05/12/2018

Alejandra Pizarnik; Diarios (#01) - Setembro/1954

* Proposta do post: (1) anotar trechos, (2) devanear a partir das entradas de Pizarnik, (3) dar pitacos inúteis sobre o que ela escreve e/ou (4) estabelecer conexões. Uma conversa.

 Texto sinalizado com 📔, em verde itálico = entradas originais de Alejandra Pizarnik.


Cuaderno de Septiembre de 1954 

24 de Septiembre 
📔 "Un nuevo día lleno de sol. Despego mi ventana y la luminosidad cae en la habitación. Luz amarilla y vital. Me da miedo por sus ansias fugitivas. No me acompaña en las horas de estudio, no me sonríe en mi encierro benéfico; todo lo contrario; me llama junto a sí, al paseo matinal, lleno de árboles y seres que caminan."

Essa presença da luz do dia como aparente entidade viva que invade nossas casas, nossa intimidade, para nos incitar à fuga e chamar (quase ordenar!) para o passeio matinal - para a vida? - remeteu-me diretamente ao artifício similar concebido por Bruno Schulz no conto Agosto (coletânea Lojas de Canela). Naquela ocasião de meu primeiro contato com esse incrível escritor, os trechos da brincadeira metafórica com a luz solar, que a todos inebria, me causou forte impressão por conta da enternecedora beleza. Creio haver semelhança, porém simultaneamente existe uma diferença crucial: a escritora argentina lamenta o antagonismo entre seu ânimo e o da luz; enquanto o polonês celebra o entusiasmo compartilhado pela luminosidade e suas personagens. Esta é a citação de Schulz a que me refiro:

Tradutor: Henrik Siewierski

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📔“De lejos, de muy lejos, venían los latidos de un perro. Se le ocurrió ubicar a ese perro en la cima de un planeta, Saturno, rodeado de los anillos de fuego (amarillo).”

Não resisti e arrisquei converter essa divertida imagem em uma colagem no journal:

Na continuação da frase, Pizarnik sinaliza que tentava se esquivar do sofrimento psíquico mediante o universo da imaginação, do irreal – escrita, leitura, sonhos –; embora reste sugerido que a dor a acompanhava inclusive por tais bandas. Parece corresponder ao grave estágio da depressão em que o indivíduo não consegue sequer realizar as atividades usualmente prazerosas e potencialmente terapêuticas.
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📔 "Los aullidos se acercaban, lo que motivaba el alejamiento del planeta fantaseado. A medida que se acerca lo comúnmente llamado real, se aleja (o se expulsa) la fantasía. En verdad no sabía qué preferir: si lo real o lo irreal. En cualquiera de ambos, se hallaba triste. Dejó correr el hilo esperanzado de su imaginación, mientras suspiraba inquisitiva y semirresignada."

No romance History (La Storia), escrito por Elsa Morante, esbarrei com uma valiosa expressão que imediatamente incorporei ao meu vocabulário, constatando agora que talvez ela também pudesse ter sido adotada por Pizarnik. É esta aqui: The Paralysis of Unhappiness – A Paralisia da Infelicidade. Quando meus olhos avistaram esse termo nas páginas da italiana, exclamei um eureka! repleto de alívio. Quantas vezes pelejei para explicar à terapeuta que os problemas do trabalho me paralisavam mesmo fora dele... Daí, numa obra de ficção, eu trombo com um rico garoto judeu e anarquista que, ao juntar-se (voluntariamente) aos camaradas operários no piso de uma fábrica insalubre, acaba acometido pela referida Paralisia da Infelicidade. Minha terapeuta não entendeu, porém a revelação de que uma escritora italiana sabe perfeitamente do que falo é confortante. Literatura é, por certo, a única terapia possível; não tem jeito.
Tradutor (italiano → inglês): William Weaver


Misturando minhas palavras às de Pizarnik e Morante: às vezes o real é suficientemente corrosivo - uma irrealidade contranatural de total infelicidade - a ponto de destruir até o subterfúgio construído, do que resulta uma paralisia devastadora. 
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📔“(…) sensación de no ser más que un corpúsculo rebelde en el cosmos descomunal.”

Esse tipo de pensamento me causa uma vertigem alucinante. No último mini-documentário que vi sobre a missão Apollo 8 da Nasa, o discurso dos astronautas relacionado ao confronto direto com a visível e irrefutável insignificância do planeta de mármore azul que simplesmente flutua na infinita imensidão negra me deixou extremamente ansiosa. [-Mas e eu, então; que sou um mero grãozinho de areia dentro desse balão que boia no nada?!] Sempre que minha mente envereda-se pela reflexão de que sou um corpúsculo rebelde no cosmos descomunal un corpúsculo rebelde en el cosmos descomunal, tenho a sensação de que o chão onde piso desaparece.

Este é o doc, dirigido por Emmanuel Vaughan-Lee e disponibilizado no canal The Atlantic:


No desenvolvimento do texto, a escritora inclui outra inspirada descrição daquilo que ela efetivamente é (e somos, sim?) no contexto cósmico. Aqui: 📔"Soy un trozo de humo solidificado. Soy un residuo que alguien olvidó en el Olimpo." Curiosamente, imagino que a própria Lua diria isso de si mesma, especialmente depois do que é mencionado a respeito dela no vídeo anexado.

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Por falar em Lua, Pizarnik associa o satélite natural terrestre ao plano dos sonhos, à realidade onírica. O sol, como inferi naquele trecho da luz, resta associado à vida real. E, como ela, lamento profundamente minha incapacidade de engatar psicodélicos sonhos lúcidos. Voilà:

📔"Tocó su rostro proveniente de allá, de la región desconocida plena de sueños que ahora no recordaba. Intentó atraer alguna señal que le permitiese el acceso consciente a ese mundillo nocturno del que acababa de surgir tan pálida como un habitante imaginario de la luna, cansada como una guerrillera valerosa; aspiró fuertemente sintiendo que su cuerpo se llenaba de un olor vivificante, olor de las mañanas, olor de café y de sol. Poco a poco sus ojos se abrían hacia el extraño arco iris matinal. Sus ojos eran el verde que faltaba para completar el prisma cotidiano."

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Retornando à luminescência, gostei da maneira como Pizarnik conecta nossa percepção da diária alternância luz/sombra à passagem do tempo: 

📔 "(...) El cuarto se hundía lentamente en una gris penumbra equilibrada por la luz breve del velador. (...) Su habitación se había introducido en las penumbras mientras ella estuvo elucubrando su fobia dominical. Se irritó. Nunca podía palpar realmente el cambio de luces y sombras de los días. Era como contemplar un reloj para comprobar empíricamente la velocidad del tiempo."

Trouxe à memória aquelas animações aceleradas, frequentemente exibidas em documentários/séries para transformar a passagem do tempo em imagem. No mesmo conto Agosto, Schulz também brinca poeticamente ao descrever sombras:

Hum, percebendo que tenho grande afeição a essa temática “luz x sombra”... Acho que é hora de sacar da estante o livro do Junichiro Tanizaki, Em Louvor da Sombra

Voltando ao que Pizarnik compartilha naquela passagem, acredito que sei do que ela escreve. Infelizmente, tenho certa familiaridade com o estado psíquico que faz com que treze horas ininterruptas sejam investidas dormindo, ao fim das quais o despertar ocorre a contragosto; um desentendimento entre o corpo que recusa-se a prolongar o sono e a mente que tenciona o apagão eterno. No momento dessa emersão à consciência, a distinção visual das nuances luminosas do quarto revela-se inútil para a localização temporal. Não raro, sobrevém a suspeita de que o tempo, só de pirraça, permaneceu suspenso durante o anestésico refúgio no palácio de Morfeu.

De fato, é mais ou menos isso que a escritora relata posteriormente:
📔 "8 y 1/2 h. Mi cuerpo no quiere levantarse, sino seguir durmiendo. Entreabro los ojos, aspirando los objetos de la habitación. Los cierro de nuevo, suspirando. ¡Cuántas cosas pierdo! ¡Cuántas sensaciones, vivencias, aprendizajes! ¡Todo por morir un poco más! ¡Todo por vivir menos, en ésta, mi dolorosa e irreal realidad! Y esa voz que te grita vives y no te veo vivir."

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26 de Septiembre

📔 "Entro en una librería desconocida. Me dirijo a los anaqueles coloreados, llena de curiosidad y tensa de emoción. La esperanza de hallar «algo nuevo» es quebrada por la voz del empleado que me pregunta qué títulos busco. No sé qué decirle. Al fin, recuerdo uno. No está. Hubiese querido seguir mirando, pero sentía sobre mí el peso de esa mirada comerciante, tan estrecha y desaprobadora ante alguien que «no sabe» lo que quiere. ¡Siempre lo mismo!"

Antecedendo esse trecho específico, houve a confissão de que o futuro angustia Pizarnik, ponto em que ela dispara a assustadora pergunta: "¿qué será de mí?". No livro The Gift of Therapy, Irvin Yalom menciona que a figura do paciente que não sabe o que quer é bastante comum na prática clínica. A piada é que, ainda segundo Yalom, há casos tão ~complicados~, que até o terapeuta precisa se segurar para não perder as estribeiras e deixar transparecer a tal desaprovação social referida por Pizarnik no trecho que transcrevi acima — el peso de esa mirada comerciante, tan estrecha y desaprobadora ante alguien que «no sabe» lo que quiere. Nas palavras de Yalom:



Nem preciso confessar os motivos pelos quais essa informação do livro de Yalom ficou incrustada em minha memória, né? 

No mais, curti a correlação que Pizarnik estabelece entre o frequente desnorteio perante a vida e a experiência da visita a livrarias. Aliás, a última (e deliciosamente maluca) animação japonesa a que assisti - The Night is Long, Walk on Girl - brinca proximamente com a metáfora que a poeta apresentou:


Por fim, confabulei que talvez eu possa utilizar a alegoria de Pizarnik em benefício próprio; digo, usá-la para fazer as pazes com minhas dúvidas. Tal qual a caça ao livro, a caça ao tesouro vital (= decisões/respostas saturadas de certeza) pode ser alegre e exultante. Será? Os caminhos possíveis para a vida são muitos, ok; mas o desafio das escolhas precisa ser necessariamente sofrido? Se panz, o barato do jogo da vida é justamente este: o contínuo processo de "escolha-erro-acerto-escolha-acerto-erro-escolha...". 

Ah, e para conectar essas divagações aos acontecimentos recentes de minha realidade: lamentável que 600 livrarias tenham fechado suas portas no país, consequentemente inviabilizando a mágica pesca para tantos leitores. Para não bancar a hipócrita, é imperioso reconhecer que talvez eu tenha contribuído para essa conta - ou, no mínimo, não cooperei na prevenção. Neste ano, por exemplo, estimo ter comprado apenas 01 livro em livraria física. E foi para presentear uma amiga. Adianta usar a falta de carro como desculpa? (Por onde circulo, não há ne-nhu-ma livraria; veja bem.) Oh well.

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📔 "Acá, entre el cansancio y el humo, entre el Miedo y las ansias inmortales, me digo: he de escribir o morir. He de llenar cuadernillos o morir."

No dia anterior àquele em que li essa frase da Pizarnik, eu havia me deparado com uma construção / proposição relativamente parecida em um conto de Ernest Hemingway, entremeado de elementos autobiográficos. O americano escreveu:

Desde que constatei, com o livro The Lonely City, escrito por Olivia Laing, que até artistas relacionados às artes visuais variavelmente sucumbem à arte da escrita, fiquei ainda mais tentada a desvendar este grande mistério: o que instiga uma pessoa a escrever? Que impulso doido é esse? E, por favor, o famigerado papinho “Ãin, mas nem consigo me ver não escrevendo; Ãin, escrever é como respirar” não me serve pra nada, porque as considero falas clichês vazias de significado (pelo menos, para meus propósitos). Sim, eu escrevo umas groselhas neste espaço, contudo quem disse que eu sei por quê? Enfim, tenho estado especialmente atenta, durante minhas leituras, a trechos que abordam essa questão que tanto me intriga e fascina. Nos casos de Pizarnik e Hemingway, a escrita parece representar uma rota de fuga da realidade fatual, ou, de outra forma, um artifício aniquilador da realidade opressora. Por meio da escrita, a autora argentina escapa do real mediante o mundo imaginário; o americano, por sua vez, consegue apagar determinados elementos do real, espécie de descarrego pela palavra.

Na entrada de 28/09/1954, entretanto, Pizarnik acrescenta este dado:
📔 "Compruebo que no es posible escribir bajo el «dolor puro». Hace unos instantes me sentía tan, pero tan angustiada que, cuando traté de concretar por escrito mis emociones, la pluma resbaló de mis dedos llorosos."

Ou seja, novamente ela reforça que, por vezes, a depressão era tão intensa, que paralisava sua escrita. A Paralisia da Infelicidade! Não disse?!

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📔 "(...) porque yo no pedí nacer en forma de signo de interrogación (...)"

Nascer em formato de ponto de interrogação… Não é esplêndido?! Penso que, se eu juntar essa ideia ao bordão da personagem Settembrini, do livro A Montanha Mágica (Thomas Mann), chegarei à definição perfeita da minha pessoa: sou um ponto de interrogação que leva uma vida horizontal,

sou uma interrogação horizontal! 

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📔 "el reloj es un viejo que murió de un ataque al corazón y luego resucitó (para vengarse de los que se sentían molestos con el ruido de sus latidos)." 

O relógio é um homem velho que morreu de um ataque cardíaco e depois ressuscitou (para se vingar daqueles que se sentiam incomodados com o barulho de seu batimento cardíaco).

Nunca mais olharei para um relógio do mesmo jeito. 

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28 de Septiembre

📔 ¿Quién me enseñó el nombre de Shakespeare? Nadie. Nací con este nombre grabado a priori en mi nebulosa. ¡«Esto» es eternidad!

Possível firmar conexão direta com Borges, é claro; visto que essa concepção permeia toda a obra dele. No conto O Imortal, conforme divaguei aqui no blog, Borges defende justamente o mesmo que Pizarnik: a imortalidade, da qual deriva a eternidade, provém dos livros. Recorda-se de quando ouviu o nome do Bardo pela primeira vez? Será que Shakespeare já faz parte de nosso código genético?!

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📔 "Una humilde mujer ha tocado el timbre. Viene a ofrecerse como sirviente. La miro: morena, mal vestida, grosera, con una horrible voz agudizada por el hambre (quizás). Le hablo. Para mí, su imagen no es más que una experiencia, es un «modelo» de la clase que representa. Nuestra conversación merece de mi parte la consideración de un juego empírico. Y, ¿cómo será para ella? ¡Ah! Es algo muy serio. Acá se debate su trabajar o no; su vivir o no; su subsistir o no… Creo que no fue posible hallar un golpe más brusco para mi angustia trascendental."

Esse tipo de autocrítica aparece recorrentemente nas palavras de Pizarnik. Ela faz chacota de si mesma, da dor que lhe parece risível e simplória, visto que a vida dela, quando analisada pela lupa da consciência, não oferece razões que justifiquem tamanha tristeza.

O confronto com outra mulher cujas aflições existenciais correspondem ao “será que arrumarei trabalho? será que terei o que comer amanhã?” efetivamente não aquieta o conflito interno da autora, segundo a entrada destacada acima. Perspectiva: a valiosa joia que também é uma merda.

A zombaria auto-depreciativa rende, inclusive, versos:

📔 (...) ¡Háblenme de gitanas sucias y despatriadas!
     ¡Háblenme de estrellas sin cielo!
     ¡Háblenme de flores sin pétalos!
     ¡Yo, sólo yo sufro! (...)
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📔 "Atisbó su alma para comprobar el efecto que le producía esta palabra fatal: morir. No. Sólo nada. Su alma asentía en silencio. Ya no le importaba no ser. Quiso sonreír y el llanto sobrevino. ¡No ser! Y ahora, ¿acaso ella era? ¿Qué era? ¡Un grito de dolor! Un simulacro fastidioso de agonía humana que ocultaba un prosaico y pequeño fracaso: ¡el de su vida!
(...)
Trató de ocultarse, de sonreír aun cuando la falsedad de su alegría fuese conciente."


Sim, suponho que aqueles versos do poema O Quarto do Suicida, de Wislawa Szymborska
aludem justamente à ocultação referida por Pizarnik. Trata-se de processo extenuante e frágil, que costuma ruir diante das mais tolas pressões externas.

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Para o primeiro caderno, é isto. Super alto-astral, hein?