23/12/2019

Alejandra Pizarnik; Diários (#03) - 19-31/07/1955

* Proposta do post: (1) anotar trechos, (2) devanear a partir das entradas de Pizarnik, (3) dar pitacos inúteis sobre o que ela escreve e/ou (4) estabelecer conexões. Uma conversa.

 Texto sinalizado com [📔, em verde + itálico] entradas originais de Alejandra Pizarnik.


Cuaderno del 19 al 31 de Julio de 1955

📔 "No tengo ni idea del argumento de la novela. Sólo se me ocurre decir que «la vida es una miseria». Alguien podría decir que tal vez sólo «mi vida es una miseria», pero da lo mismo…"

Por mais que a Pizarnik de 19 anos matute um bom tema para o romance que pretende escrever, ela acaba sempre retornando ao fatídico "a vida é uma miséria". E tá errada? 

Lembrei de um episódio do podcast Escritores Leitores, no qual Evandro Affonso Pereira compartilha, com um suspeito orgulho implícito, que um amigo havia reparado que nada dá certo para as personagens dos livros de Pereira. O autor confirma só escrever personagens desvalidas, para quem nada dá certo. Na ocasião em que ouvi isso, retruquei sozinha, em voz alta: - Mas, meu amigo, quase todas as grandes obras da literatura tratam justamente disso. 

Uns quatro dias atrás, assisti ao último episódio (IX) de Star Wars (o que me faz pescar no vácuo qualquer desculpa esfarrapada para falar do filme); portanto tomarei essa entrada da Pizarnik para registrar uma fala especial do C-3PO (puxando de minha incompetente memória):

       C-3PO: - Essa agonia não acaba nunca?!

Não, C-3PO, a agonia só termina quando rolam os créditos finais. Antes disso, nada feito. Citando Vonnegut: "Everything was beautiful and nothing hurt." Epa, pera (...); o quê?! Xi; volta, que a escolha da citação deu ruim.


📔 "No estoy de acuerdo con Clara Silva en lo referente a las influencias nocivas de un Proust, Gide o Baudelaire. No creo que estrellen la fe innata e inocente de nuestra alma con una violenta y angustiosa voluptuosidad. Si es que leo a Proust, es porque yo elijo a Proust y porque mi estructura se identifica con él y elige su obra y no cualquier otra. Mis angustias no nacen al contacto de las líneas, sino que se limitan a asentir familiarmente y a reconocerlas como cosas ya experimentadas."

O que até então era só mais um clichê dito por pessoas pouco inspiradas virou, após colocado na boca do Dr. Manhattan, drops de elevada sabedoria divina. Assim sendo, peço que o próprio Zeus dos Smurfs expresse o lugar-comum que sumariza o núcleo da pendenga de que fala Pizarnik:  

É a nefasta gangue literária Proust, Gide, Baudelaire & Cia quem destrói a inocência de nossas pobres almas leitoras, ou a obra dessa turma, conforme prévia defesa de Stendhal, apenas reflete a lama que já existe ~em nosso âmago~? Fecharei com a mesma conclusão de Dr. Manhattan (= são ambos), complementando-a com a de Pizarnik: "Leio Proust porque minha essência se identifica com a obra dele, e com a de mais ninguém. Minhas angústias não nascem do contato com as linhas, mas tão somente limitam-se a reconhecer ali familiaridade."


📔 "Cuando leo a Proust y atiendo su forma y fondo, me creo capaz de escribir un libro tal como él lo ha hecho; en cambio, no podría concebir nunca un relato como Bonjour, tristesse o Gigi. ¿Será mi profundidad de espíritu?, ¿o mi falta de, digamos, objetividad?, ¿o de simpleza?"

Já escrevi algo similar nos posts sobre os diários da Susan Sontag e terei de me repetir: euzinha, com dezenove anos, nem sonhava em ler Proust; e suspeito, inclusive, de que sequer sabia "o que diabos seria um Proust". Aos dezenove anos, somente os livros da faculdade (nada a ver com literatura) dominavam minhas leituras (o horror!).

O repeteco dessa percepção me obriga a rever uma velha premissa. Hoje, quando cruzo com mocinhas de dezenove anos, frequentemente fico estupefata ao constatar o quanto elas são mais inteligentes e antenadas do que eu jamais fui na mesma idade. Por muito tempo, joguei a culpa na internet: essas moças são nativas digitais e têm acesso, desde muito cedo, a um universo inteiro de informações, enquanto eu tive de contentar-me em viver numa minúscula bolha infrutífera. No entanto, agora que esbarro com os exemplos das jovens Sontag e Pizarnik, inevitavelmente preciso reconhecer que devo ter sido, isto sim, uma jovem desinteressante que escolheu manter a curiosidade pelo mundo trancafiada no calabouço. (- putz, toca o mini-violino pra mim, dj!)


📔 "Creo que mi feminidad consiste en no poder «vivir» sin la seguridad de un hombre a mi lado. En los períodos (¡actualmente tan escasos!) de ausencia de flirts, me siento terriblemente árida. Inútil. Como si estaría [sic] malgastando mi juventud. Y cuando estoy segura, es decir, cuando camino junto a un hombre que guía mi cuerpo, me siento traidora. Traiciono a ese llamado cercano que me planta junto a la mesita y me ordena: ¡estudia y escribe, Alejandra! Entonces ya no grito «¡me muero de inmanencia!». ¡No! Entonces, me siento ser. Me siento vibrar ante algo elevado que me asciende junto a sí. Esta dualidad me rebela. ¿No han de ser compatibles en forma alguna? Buscar ejemplos. ¡Sí! La foto de Daphne du Maurier junto a su aristocrático marido; lord…, tomados amorosamente de la mano. Simone de Beauvoir sonriendo junto a Sartre (no hay que fiarse del periodismo). Katherine Mansfield junto al buen mozo de J. Middleton Murry (pero sus tareas eran análogas y la mayor parte del tiempo estaban separados). Carmen Laforet con sus dos niñas (su mejor novela la escribió en estado de angustia y soledad). ¡Pero también están las otras! («galeotes dramáticos, galeotes dramáticos»). ¡Qué me dices de las hermanas Brontë, de Clara Silva, de G. Mistral (aridez sublimada), de Colette (en los primeros tiempos), de Mary Webb, de Edna Millay, de Alfonsina Storni, de Safo (¡de Safo!), de C. Espina, Es irremediable. ¡Es dramático! Una aspira a realizarse. Yo aspiro a realizarme. Cuento para ello con mis dotes literarias. Pero… ¿y si no serían [sic] notables? ¿Si no son más que producto de mi mente confusa y de mi experiencia promiscua? ¿Si no son más que elementos extraídos de mi ser semiarruinado, gastado, que resultan sorprendentes debido a mi edad física? Entonces no sólo erré la elección sino que no me realizaré por el camino más natural y sencillo de toda mujer: ¡los hijos! ¡Entonces sería más que frustrada! ¡Sería un ser arrojado para estorbar los pasos productivos de los demás! ¡Ocuparía un espacio inmerecido! Mi vida habría sido en vano. ¡Toda la voluptuosidad que exhalo y desato en mis sucesivos compañeros y luego enaltezco en los escritos habrá sido sólo farsa! Entonces… ¿qué? Entonces… estar y esperar. ¡Esperar a que todo venga espontáneamente! ¡No! Lo único que ha de venir espontáneamente es la muerte. ¡Al diablo!

No quiero amantes (pues desordenarían las horas de estudio). ¡Al diablo! ¡Tendrían que crearse burdeles especiales para mujeres-artistas! Pero no los hay… ¡y es tan trágica la visión de una mujer madura sorbiéndose el cuerpo en la aridez de la noche! Y eso es lo que me espera. Esa imagen destruye todas las embriagueces sagradas. Desmalezar los conceptos turbios."

O registro dessa reflexão da Pizarnik é precioso, e basta lembrar dos conflitos de Lenu, na Tetralogia Napolitana de Ferrante, para demonstrar o quanto essa questão segue atual e sem solução inconteste. De que modo uma mulher consegue conciliar seu trabalho artístico com as demandas sociais de uma vida doméstica? Como o papel de artista convive com o papel de esposa, de mãe? É possível exercê-los bem (segundo a expectativa individual) sem que um atrapalhe o outro? As ponderações de Pizarnik ainda podem ser consideradas um tanto mais extremas, visto que ela conjectura que até um mero relacionamento amoroso poderia desvirtuá-la dos estudos e da escrita. Recordei do exemplo de Natalia Ginzburg que, no ensaio "O meu ofício", assevera sem titubear: "E depois nasceram meus filhos e, de início, quando eles eram muito pequenos, eu não conseguia entender como era possível escrever tendo filhos. (...) As crianças me pareciam algo muito importante para que eu me desviasse atrás de estúpidas histórias e de estúpidas personagens embalsamadas."

Sempre que me deparo com essa discussão, recordo-me desta reveladora fala de Josélia Aguiar, concedida em entrevista ao canal Bondelê, a respeito de seu trabalho como curadora da Flip"Muitas autoras mulheres não viajam mesmo. Eu senti isso, percebi isso. (...) Eu entendi que em outras áreas (mesmo fora da literatura), de fato, as mulheres também pensam mais antes de tomar certas decisões que envolvam mudança na hierarquia, viagem para o exterior. (para elas) É mais difícil que a carreira seja tocada com decisões rápidas, porque elas já têm filhos; se mais velhas, têm netos. É o oposto quando você faz um convite para um homem. Eles sempre respondem mais rápido; vêm e topam. É mesmo uma questão cultural. Eles estão mais acostumados a se expor, têm mais segurança para falar. Eles ocupam esse lugar há muito mais tempo."


📔 "Conversaciones con mi madre. Hallo buena voluntad. Le muestro las reproducciones de Gauguin y Van Gogh. Le gustan. Sonríe ante los pechos descubiertos de las tahitianas. Acepta al arte y a los artistas, pero siempre que se den en otro planeta. Es decir, que no admite la posibilidad de mi realización literaria. ¡No! Son caprichos, vuelcos juveniles que ya pasarán cuando la experiencia nos traiga la expresión serena."

E a mãe de Pizarnik não aceitava muito bem as aspirações artísticas da filha. Disappointed, but not surprised®.


📔 "Un día, A. Cuadrado me dijo que cada vez que muere un poeta, lee o relee toda su obra. Espléndido homenaje."

Em entrevista ao podcast Expresso Ilustrada (Folha de São Paulo), Fernand Diamant, atual curadora da Flip, comenta (claramente pisando em ovos, coitada) que a escolha de Elizabeth Bishop como homenageada da Flip 2020 relacionou-se (dentre outras coisas) à sua convicção de que deveria escolher uma autora com a qual ela própria, Diamant, já tivesse uma pessoal história literária consolidada. Se entendi direito, Diamant só toparia homenagear uma autora de quem ela mesma fosse admiradora e de cuja obra ela fosse íntima. Assim que escutei o comentário, fiquei confusa. O ponto é que eu, numa hipotética curadoria, jamais escolheria um autor/autora que eu especialmente admiro para ser o/a "homenageado/a" de um evento desses, pois que raios de homenagem é essa? Ainda tomada pela vibe de meu último post-alinhavo, recorri ao dicionário para averiguar a definição da palavra "homenagem". O que significa homenagear alguém? Minha dúvida decorre da sensação de que a tal "homenagem" da Flip assemelha-se muito mais a um tribunal em que o acusado/acusada (mortinho/mortinha da silva) não tem direito a contraditório ou ampla defesa. Sei lá, ainda que não se trate disso e que eu esteja exagerando (seria só um espaço para a troca saudável de pontos de vistas distintos?), não consigo me desvencilhar de uma certa aversão à proposta de homenagear um escritor num evento literário. Creio que o amigo de Pizarnik encontrou a única notável maneira de se homenagear uma escritora querida: lendo sua obra. 

[Sobre a treta em si dessa Flip, bateu vontade de lacrar resgatar esta frase de Tolstói (o reacinha russo? rs):
"A responsabilidade é representada como maior ou menor conforme o maior ou menor conhecimento das condições em que se encontrava a pessoa cujo ato está em julgamento, conforme o maior ou menor intervalo de tempo entre a execução do ato e seu julgamento, e conforme a maior ou menor compreensão das causas do ato." ]


📔 "digo a Luisa que leo En busca del tiempo perdido. La distinguida estudiante de filosofía se ríe y me dice «el día que lo encuentres, ¡avisá!». (Merde! Merde! Merde!)"


📔 "Quisiera estar en un convento religioso (como santa Teresa). Tendría que haber conventos psicoanalíticos. (...) El doctor B. hablando de adquirir «elegancia psíquica»."

Convento psicanalítico?! nem f*endo eu iria para um troço desse, Pizarnik.

Adquirir elegância psíquica? Ah, dessa, eu já gostei. Onde vende?!! É no convento psicanalítico, né? Merda.

(Aos 19 anos, Pizarnik já se submetia à psicanálise, convicta de que padecia de grave neurose.)


📔  

"¡Emocionada! Acabo de ver en la televisión un maravilloso conjunto de ballet interpretando la 7.ª sinf. de Beethoven. Cada vez que aparecía el pequeño fauno, sentía extraños anhelos. Adoro el ballet. Adoro los cuerpos de los bailarines. Me gustan más los hombres. Es un éxtasis ver una foto de S. Lifar en maillot. Qué bien que está esa frase de Heine: «Donde mueren las palabras… comienza la música»."


📔 "Leo la Historia del surrealismo. Al llegar al capítulo dedicado al marxismo y a la situación social, económica, etc., de nuestra época, cierro violentamente el libro y lo guardo. Me horrorizo de mi falta de interés. ¡No puedo remediarlo! ¡Denme al Hombre, no a las masas!"

Xi, olha aí. Sigo cada vez mais desconfiada de que, se a Pizarnik fosse escolhida como homenageada da Flip, ela seria trucidada em mil pedacinhos pela galera literária que curte discutir as massas, num lugar aonde as massas não chegam. (tá, pronto; já parei. 😬)


📔 "Ya aprendí cabalmente que soy distinta de la mayoría de la gente. Que ellos piensan y yo no porque no puedo, porque me ocurre algo, porque estoy enferma. Sí. Estoy enferma. Me pregunto si a todos los neuróticos les ocurre lo mismo."

De minha parte, enquanto neurótica, digo que as coisas também funcionam mais ou menos assim, Pizarnik. 


📔 "De mis papeles. Algún día van a estar en el museo (de algún instituto psiquiátrico). A su lado habrá un cartel: Poemas de una enferma de diecinueve años. Imposibilidad de razonar. Nunca meditó. Jamás reflexionó. Ninguna vez pensó. Parece ser que es sensible. Propensión a considerarse genial. Agresiva. Acomplejada. Viciosa. No muerde."

Por vezes, a Pizarnik é cruel demais consigo mesma. "Nunca pensou ou refletiu"?! Poxa vida.

Contudo gostei dessa espécie de exercício de escrita criativa. Caso, em um futuro distante, os textos deste bloguito aportassem em um museu, o que estaria escrito na plaquinha de descrição da peça? Hum, deixe-me ver...: "Diário virtual de uma retardada social, considerado raro material da segunda década do século 21, época  na qual ninguém mais lia blogs. A leitura revela textos marcados por platitudes, piadas sem graça e perguntas que sequer triscam arremedos de resposta."


📔 "¡Adoro mi poesía! ¡Es la única que me gusta! Imitando la de Vallejo, en la que se nota mis influencias de la primera época (año 1930)."

É aquilo: primeiro ela bate, depois ela assopra. Numa entrada, a baixa autoestima/insegurança massacra; na outra, o ego/confiança assume as rédeas. 


📔 "Lloro. ¡Tengo tanto miedo! Cierro los ojos. Era necesario. ¡Quiero escribir! ¿Qué? Aún no sé… Necesito ordenar mis ideas. Lavar mi frivolidad, pues aún quedan restos. Por más tenaz que sea cada poema en asegurarme que no escribo bien, que no tengo condiciones para ello, persisto. Persisto pues es lo último que me queda. Persisto pues si no escribo, soy un ser reventado. Escribo por exigencia vital."

22/12/2019

Lendo Contos| O Aleph - Jorge Luis Borges / biografia de tadeo isidoro cruz (1829-74)

 (Editora Companhia das Letras / Tradução: Davi Arrigucci Jr.)

A poeta Aline Aimée, do ótimo canal (no You Tube) Chave de Leitura, disponibilizou resenhas em vídeo para cada um dos contos da coletânea O Aleph, de Jorge Luis Borges (link aqui). Aproveitando a chance de poder contar com alguém para enriquecer minha experiência de leitura, tentarei incluir postagens em resposta aos vídeos da Aimée. Um clube de leitura formado por duas leitoras, maaaaais ou menos. A sequência proposta para o post é a seguinte:

Leio o conto > Escrevo e registro minhas impressões gerais  >
> Assisto ao respectivo vídeo da Aline Aimée > Complemento as impressões com as novas informações e reflexões.


** RISCO DE SPOILERS **


[Impressões pessoais após a leitura do conto:]

Na coletânea de diálogos entre Borges e Osvaldo Ferrari, me deparei com esta fala do autor argentino acerca de esquecimento criativo e memória criativa:
"Ou seja, é o mesmo conto e eu vou ensaiando variações. Mas, talvez, a literatura universal seja uma série de variações sobre o mesmo tema, (...)"
                                                                                                       - Jorge Luis Borges

Borges reconhece que, em sua obra, ele costuma repetir o mesmo conceito sob diferentes formas. É ele quem está falando, hein, não sou eu. Incluí o comentário porque tomo o conto biografia de tadeo isidoro cruz (BTIC) como uma variação de temas presentes nos contos anteriores de O Aleph, já lidos e comentados por mim no blog. Em BTIC, ressurge de forma mais pronunciada (deduzo) sobretudo a ideia de eventos que se repetem de modo circular e do duplo (Tadeo Isidoro x Martín Fierro). Visto que groselhei o suficiente a respeito dessas temáticas nas postagens anteriores, aproveitarei o ensejo muito mais para sondar intrepidamente certos pontos da narrativa que me conduziram a correlações algo estapafúrdias (os acadêmicos que fiquem com a parte chata 😁).

*
Suponho que esta passagem destaca-se como forte candidata ao papel de chave principal da leitura:
"Qualquer destino, por longo e complicado que seja, consta na realidade de um único momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem é."
                                                                                                          - Jorge Luis Borges, BTIC.

Associando esse trecho à tríade* de principais e recorrentes questões borgianas conforme previamente comentada por Aimée, tendo a concluir que a noção de identidade é o foco de BTIC. (* = identidade, universo, tempo) Pra mim, pelo menos, é. Suspeito de que psicólogos e psicanalistas gozam um orgasmo literário (existe, né?) ao se depararem com a ousadia borgiana de afirmar que nossas histórias pessoais resumem-se simplesmente ao instante em que descobrimos quem somos. Isso deve apaziguar os ânimos daqueles que investem anos e anos de suas vidas em infinitas sessões de análise e terapia, no esforço hercúleo para descobrir quem são afinal. Se bem que o texto de Borges sinaliza que os livros, espie só, costumam guardar a solução desse grande enigma. Seria esse o próprio sentido da vida? Vai saber.

Em relação à ~vida real~, senti uma pitadinha de resistência para assimilar essa premissa de Borges; contudo, quando a extrapolei para a realidade ficcional, a apreensão de sua pertinência assentou de maneira mais fácil. Aproveitando que hoje não penso noutra coisa, senão no episódio IX de Star Wars, o último da nova trilogia (ele é tão ruim, que faz a curva e fica divertido), vale devanear que o único arco narrativo que me interessa no filme (= a díade da Força: Rey/Kylo Ben) se apoia fundamentalmente nesse ponto de BTIC; confere? Sinto-me tentada a teorizar que a essência de todas as grandes narrativas repousa em uma única fase da famigerada jornada do herói; aquela que, sozinha, basta para contar uma boa história: revelação e transformação. Uma particularidade um tanto paradoxal garante a diversão da teoria, dado que, nela, as personagens são confrontadas com suas verdadeiras identidades, a fim de transformarem-se naquilo que efetivamente já são (porém ainda não sabem etc). Transformar-se naquilo que se é... Que maluquice. Mas quem tem segurança para garantir que há incoerência nisso? Voltando a Star Wars: Kylo, após bendita epifania identitária ou, nas palavras de Borges, após o momento em que sabe para sempre quem é, abandona de vez o subterfúgio da máscara cafona e ~segue seu destino~. *Drama intensifies*

Também me peguei presa no emaranhado simbólico que essa chave interpretativa estabelece quando conectada à epígrafe escolhida por Borges para BTIC:

I'm looking for the face I had
Before the world was made.
- W. B. Yeats

Esses versos elevam a busca pela identidade a patamares ainda mais complexos, que me fascinam demais. A partir deles, conhecer a si mesmo apenas em termos psíquicos não mais garante contentamento. Com as palavras de Yeats, a parada alcança a metafísica, a transcendência; quiçá a cosmogonia! (haha) [Hum, A Paixão Segundo G.H. é uma narrativa que condensa essas duas chaves, não?]

Bom, essas duas chaves me trouxeram à memória o filme Os Olhos Sem Rosto (Les Yeux Sans Visage, Georges Franju - 1960), baseado no romance de Jean Redon. A metáfora encerrada na palavra "face", escolhida por Yeats (rimou?!), fez com que eu prontamente correlacionasse a descrição do instante de compreensão de Tadeu Isidoro Cruz àquele de Edna Grüber. Mesclando as duas narrativas (Borges + Redon/Franju), arrisco esta peripécia:
A moça, enquanto combatia na escuridão, começou a compreender. Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem toda mulher deve acatar o que traz dentro de si. Compreendeu que as divisas e o uniforme o que as cirurgias e o confinamento a estorvavam. Compreendeu seu íntimo destino de lobo pássaro livre, não de cão gregário pássaro engaiolado; compreendeu que o outro era ele quem ela era, e que já tinha um rosto. 

[Anexo: enquanto lia, de boas, a coletânea de poemas da Sophia de Mello Breyner Andresen, esbarrei com uma estrofe que, com somente três linhas, resume todo meu lero-lero:
Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.]

Por sinal, é curioso que essas compreensões ocorram durante a noite, e não de dia, via luz. Apelando ao Borges Babilônico (organização de Jorge Schwartz), percebi que a escolha parece amparar-se nas narrativas islâmicas; tendo sido lembrada de que "Entre os muçulmanos, a Noite do Poder (Laylat al-qadr) é a noite em que o Alcorão desceu do céu e se revelou a Maomé. Contam que, enquanto o Profeta do islã dormia em uma caverna no monte Hira, o anjo Gabriel o visitou e lhe disse que ele, Maomé, era o escolhido para receber e difundir pelo mundo a palavra de Alá." (- Dylan Frontana)

Ah, e, no fim das contas, Borges meio que facilita o trabalho dos biógrafos, né? Ora, segundo o raciocínio de BTIC, a escrita de uma biografia resume-se em narrar A noite do biografado. Aguardo a minha noite ansiosamente. Com sorte, ocorrerá através do próximo livro?

**
Por fim, há a presença do gaúcho simbolizado pelo duplo Isidoro Cruz-Martín Ferro (personagens originalmente criadas por José Hernández), entretanto, uma vez que acho esse papo chato (¯\_(ツ)_/¯), destaco somente que isso parece conceder relevância ao espaço em que vivemos, reconhecendo-o como um dos inevitáveis alicerces de nossas identidades. Osvaldo Ferrari, em uma de suas perguntas a Borges, menciona esta frase de Martinez Estrada que melhor explica o que contemplo: "(...) o espírito da terra, o que ele chamava o espírito do pampa, era o que conformava nossa substância, a substância da nossa personalidade".

Pronto; encerro minhas abobrinhas aqui. Bora ver o vídeo da Aimée. > LINK AQUI.


[Comentários pessoais pós-vídeo:]
Eita, banquei a palerma achando que o conto era só mais do mesmo, e muita coisa legal voou sobre minha cabeça. Bem feito, sabidona.

Montando uma listinha de destaques:
➭ Aimée alude à questão da equivalência dos destinos, confrontando-a à intervenção do acaso nos papéis que desempenhamos em vida (perseguidor/perseguido, heroi/traidor), e me impressionou um bocado que eu tenha ignorado essa palavra que aparece explicitamente no texto (identidade / personalidade, por sua vez, não aparecem). Pressinto que isso ocorreu porque não gosto dessa palavra — Destino — e prefiro não acreditar nela, possivelmente por temê-la.

O melhor, entretanto, é que ela acaba reforçando minha destemperada associação [Borges X Star Wars].

➭ Borges tomou emprestadas não apenas as personagens de José Hernández, mas inclusive trechos inteiros. Aimée diz que aquele lance do lobo x cão gregário, por exemplo, aparece igualzinho no poema épico de Hernández. Nesse sentido, ela chama atenção ao fato de que a citação de Coríntios (Bíblia), incluída por Borges no texto, se aplica àquilo que o próprio conto BTIC representa: "(...) num livro cuja matéria pode ser tudo para todos (1 Coríntios 9,22), pois é capaz de quase inesgotáveis repetições, versões, perversões."

➭ Levei tão a sério a assertiva de Borges de que a noite das compreensões era a única que importava, que nem me toquei de que há, na verdade, não uma, mas quatro noites críticas na vida de Isidoro Cruz. E na de Martín Fierro, claro.

➭ Também não notei conscientemente o espelhamento entre os detalhes que compõem as narrativas de Isidoro Cruz e Martín Fierro. E por falar em espelhar: o conto de Borges como espelho da obra de José Hernández (duplo).

➭ Contudo o espelhamento mais pitoresco, que me escapou completamente, é este: os gritos; sejam do pai, sejam do chajá. Pô, o déjà-vu de Isidoro Cruz é uma resposta ao grito do tal chajá! Que coisa.

*PAUSA*: qual é a aparência de um chajá? Como soa seu grito? Que bicho é esse?! YouTube, ajude aí:

 ➭ E curti esta classificação do conto: é um Mito de Origem.

- Mais uma vez, Aimée, muito obrigada!

10/11/2019

Old teenage hopes are alive at your door



01
Esta pessoa (↝) sorridente em frente ao Water Lillies de Monet é Chet Gold, atual supervisor do serviço de segurança (security supervisor) do MoMA. Eu o conheci mediante a série At The Museum (S02), um compilado de curtos vídeos disponibilizados pelo museu nova-iorquino no YouTube para documentar a reforma e expansão conduzidas em 2019. Dado o tema principal deste diarinho, acredito que não causará espanto revelar que foi graças à literatura que, pela primeira vez, atentei e refleti de modo consciente acerca do trabalho exercido por seguranças de museus. Especificamente, foi o espanhol Javier Marías quem virou minha cabeça em noventa graus para que eu parasse de olhar os quadros e reparasse naqueles sisudos empaletozados de (aparente) castigo no canto das galerias. Antes de Marías, seguranças de museus eram apenas a peculiar categoria de profissionais cuja autoridade, por alguma razão estapafúrdia (que a psicologia certamente explica), me instiga um empenho para deixá-los orgulhosos de meu comportamento exemplar. Crazy much? Não à toa, o único segurança que tenho gravado na memória é aquele (da equipe do MoMA, aliás) que chamou minha atenção duas vezes, porque tirei fotos onde não devia. Posto isso, a dura verdade: não sou uma exemplar visitante de museu. Meu castelo de areia ruiu, e a culpa é de um segurança do MoMA. - Play the world's smallest violin, dj! ¯\_(ツ)_/¯

Mas voltemos ao assunto desta entrada, o qual começa mesmo é com Marías. O pai do protagonista de Coração tão Branco foi um renomado curador de arte, ex-funcionário do Museu do Prado, e ele dizia ao filho que é preciso manter os seguranças de museus sempre contentes, pagando-os bem, pois deles depende não apenas a segurança e o cuidado, mas a própria existência das pinturas. O pai do narrador tinha consciência de que:
"(...) um homem ou uma mulher que passa seus dias encerrado numa sala vendo sempre as mesmas pinturas, horas e horas todas as manhãs e algumas tardes sentado numa cadeirinha sem fazer outra coisa além de vigiar os visitantes e olhar para as telas (proibido até de fazer palavras cruzadas), podia enlouquecer e propiciar ameaças ou desenvolver um ódio mortal a esses quadros."
                                                    - Javier Marías, Coração tão branco (Tradução: Eduardo Brandão)

Ou seja, é um trabalho com potencial para deixar qualquer um maluco de raiva dos malditos quadros. Nesse sentido, o pai disse ao filho que, em sua época, ele sempre buscava saber como andava a vida pessoal dos seguranças (se estavam sossegados ou alterados) e que todo mês mudava os guardas de lugar, para que pelo menos vissem as mesmas telas apenas durante trinta dias e seu ódio se aplacasse. [Adendo: na narrativa de Marías, esse papo meio que funciona como alegoria para a vida conjugal — cada cônjuge, todo santo dia, é "obrigado" a olhar para a cara do outro etc —; porém pularei essa parte, porque não estou disposta a mexer em casa de marimbondo. Contudo mantenho essa ressalva, uma vez que a considero relevante para a conclusão da minha história.]

Pois enquanto em mim ainda persistia o efeito de Coração tão Branco, o senhor Chet Gold cruzou meu caminho e bagunçou as peças do quebra-cabeça. Naqueles vídeos do MoMA, Gold confirma que o trabalho de segurança de museu é de fato estressante. Os seguranças tendem a um estado de elevada ansiedade em decorrência da obrigação de perscrutar os movimentos de todos, tendo de identificar qualquer sinal de mero ímpeto, a fim de serem capazes de se antecipar a possíveis atos depredativos. Nesse contexto, Gold menciona que ele próprio precisa de um lugar para relaxar ("to decompress") por alguns instantes durante a jornada de trabalho. Certo; e qual é o lugar que oferece-lhe o precioso respiro? É bem ali, de frente para o Water Lillies. Gold compartilha que é àquele quadro que ele sempre recorre nos momentos de tensão. Aquela série de vídeos é inclusive circular, pois termina com a imagem de Gold reencontrando-se com a obra de Monet, agora que o MoMA reabriria as portas, e de novo exibindo seu belo sorriso.

Moral da história "Javier Marías x Chet Gold"? Ah, cada um com a sua. 😉


02 

A leitura do Todas as Crônicas, de Lispector, segue curso lerdo, entretanto é válido registrar que, dentre os causos "Clarice Lispector e seus leitores" (bastante divertidos), aquele do polvo é um dos mais marcantes até agora. Explico. Lendo uma das crônicas, descobri que a leitora Ana Luísa, em agradecimento pelos textos que expressam exatamente como ela se sente, resolve presentear Lispector com um polvo. Refiro-me, é lógico, a um prato de polvo cozido e temperado, com arroz tal e coisa. O pior, ou melhor (sei lá), é que o regalo inusitado nem é o maior encanto da história, visto que a parte que ficou congelada na minha memória corresponde àquela em que Lispector, tomada por espanto, apela a um dicionário para buscar o significado da palavra polvo. (??!!!!!!!!!!!!!!!) Sobre o achado:
"E é simplesmente esse pavor de viver: "molusco cefalópode, que possui oito tentáculos, cheios de ventosas". Logo abaixo vem uma palavra que se aplica a Ana Luísa: polvarim - "pó que sai da pólvora". 
                                                                - Clarice Lispector;  Ana Luísa, Luciana e um Polvo.

Na crônica, Lispector diz que Deus deve saber o motivo que a fez buscar a palavra polvo no dicionário. Pois agora que li Nox (livro lindo, lindo), apostaria que, se Anne Carson tomasse conhecimento desse causo, ela também teceria um ou dois comentários a respeito da reação da cronista. Nox é um livro elegíaco que Carson escreve ao falecido irmão e, nessa obra, ela dedica-se à tradução de Catullus 101, elegia que o romano Gaius Valerius Catullus escrevera a seu próprio irmão morto. No verso de cada página de Nox (é possível ver na imagem acima), a autora incluiu a entrada lexicográfica completa (de um dicionário latim → inglês) de cada uma das palavras que compõem o poema Catullus 101, e o memorável efeito provocado pela leitura de algo tão simples (verbetes de dicionário!) me deixou embasbacada.

Cássia Eller já cantava, né? Ela cantava:
Palavras apenas
Palavras pequenas
Palavras momentos
Palavras, palavras
Palavras, palavras

Como sou palhaça, é claro que estou me mordendo pra não tirar sarro dessa canção. Simultaneamente, porém, questiono se dá para afirmar com tranquilidade que esses versos são pura galhofa. Ontem, eu teria respondido que sim; hoje, não sinto tanta segurança.

Um dicionário, um oráculo.
Uma palavra, uma resposta.
Uma palavra, um poema.
Uma palavra, uma pergunta.
Como ler uma palavra?
Palavra, palavra
Palavra?!

- Daniela (#poetei💩)


03
O filme Oitava Série (Eighth Grade - Bo Burnham, 2018) deflagrou devaneios relacionados a esta cena que não sai da minha cabeça:

Aquilo que está sendo engolfado pelas chamas é uma espécie de cápsula do tempo. Numa atividade escolar da sexta série, Kayla havia montado aquela caixa com memorabilia e uma mensagem em vídeo para seu eu do futuro, ou seja, a atual Kayla prestes a concluir a oitava série  ("a garota mais legal do mundo* → é o que está escrito na tampa). Como prêmio por ter sido eleita "aluna mais calada da turma* (- padroeira dos introvertidos, olhai por nós), ela ganha o direito de revisitar a caixa antes da formatura no ensino fundamental. (* = sonho x realidade)

Após assistir (sozinha, no quarto) a si mesma no vídeo do passado e constatar que havia desapontado seu eu da sexta série, Kayla desce à sala e pede ao pai que a ajude queimar umas coisas. O que me pegou desprevenida foi a reação do pai. Quando Kayla responde que aquela caixa continha os sonhos e esperanças dela, o pai confirma sem alarde — "e você os está queimando?"— e pronto; não diz mais nada. O pai não se atira desesperado para salvar a caixa do fogo, nem vomita um daqueles discursos piegas típicos de coach® de internet. Ele só assente e permanece em silêncio, pondo a mão sobre o ombro da filha. Ficou bonito, achei. A sequência adquiriu ares de uma cerimônia formal que integra toda e qualquer vida; quase um rito de passagem. Sai a festa de quinze anos, entra a queima dos sonhos e esperanças da pré-adolescência? Parece-me uma ótima proposta. A outra surpresa foi ver Kayla montar uma nova caixa. A garota não se intimida e simplesmente grava um novo vídeo (e otimista!) no qual expressa, para seu eu do futuro, o que ela espera e sonha que aconteça nos próximos três anos de ensino médio. E essa é a cena que me pôs a devanear. A marmanja aqui, com muito mais de treze anos na cara, está ruminando tudo issaê. Que vexame. Digo; primeiramente até avaliei que minha reação era imatura, mas depois o cosmos começou a mandar supostas ~mensagens subliminares~ que me fizeram ponderar que talvez esse lance de elaborar ⇋ destruir sonhos e esperanças seja de fato mais complexo do que aparenta ser.

Por exemplo, tomemos o filminho O Caçador de Dotes (A New Leaf - Elaine May; 1971), que vi ao acaso algumas semanas após Oitava Série. Pra jogar conversa fora com a presa, o caçador de dote pergunta-lhe quais eram seus sonhos e esperanças. Ela diz lá qual é sua esperança (= descobrir uma nova espécie de planta — ela era pesquisadora), daí me faz o favor de emendar com esta pérola: 

Mas que merda. E agora, hein? O que eu sonho é a mesma coisa que eu espero? É tudo a mesma coisa, sonho e esperança? Teria algo a ver com tempo: curto x longo prazo? Seria uma questão de complexidade? Será que o Martin Lurther King tinha mesmo um sonho? Não seria uma esperança? E faria diferença? Que dor de cabeça. Ah, taí!, seguirei os exemplos de Lispector e Carson: abrirei nova aba para o dicionário on-line.

(...)

O ligeiro alívio proporcionado pelos verbetes não durou muito tempo, pois a leitura do livro Serotonina trouxe outra palavra para participar da rodada de elucubrações: desejo. Por sinal, suspeito de que o que efetivamente me inquieta nesse jogo de palavras foi revelado no instante em que o narrador de Houllebecq me lançou este questionamento: desejo equivale à “razão para viver”? 
"Desprovido tanto de desejos quanto de razões para viver (seriam equivalentes os dois termos?, era uma questão difícil, não tinha uma opinião formada a respeito)
(...)
Mas nesse momento eu não tinha nenhum desejo, o que muitos filósofos, pelo menos era a minha impressão, consideravam um estado invejável; os budistas estavam todos na mesma longitude de onda. Mas outros filósofos, assim como os psicólogos, consideravam que essa ausência de desejo era patológica e insalubre."
                             - Michel Houellebecq; Serotonina (Tradução: Ari Roitman + Paulina Wacht)


E se, ao contrário de Kayla, uma pessoa não consegue montar caixas de sonhos, esperanças e desejos? Esse tipo de pessoa ("normal/anormal?") existe? É possível sentir-se incapaz de montar uma caixa dessas? Tal incapacidade seria compatível com a vida? Pode-se falar de preguiça? Para meu conforto, o narrador de Serotonina felizmente recordou que a controvérsia persiste até mesmo entre filósofos, budistas e psicólogos.
"(...) meu Deus, como é difícil vencer a esperança, como a esperança é tenaz e ardilosa!, será que todos os homens são assim?"   
               - Michel Houellebecq; Serotonina (Tradução: Ari Roitman + Paulina Wacht)
Aliás, e quanto à destruição? Todo e qualquer sonho/esperança/desejo é feito (retomo: devem ser feitos?... pulemos a pergunta) para ser eventualmente queimado? Se a resposta for positiva, como reconhecer a ocasião oportuna de queimar aquilo que ainda não se concretizou ou conquistou? Será que a técnica da Marie Kondo também pode/deve ser aplicada à organização desse tipo de caixa? Sobre essa parte do imbróglio, recebi duas mensagens cósmicas. A primeira veio na forma de um poema de Florbela Espanca (grifos meus): 

   Ruínas

   Se é sempre Outono o rir das Primaveras,
   Castelos, um a um, deixa-os cair...
   Que a vida é um constante derruir
   De palácios do Reino das Quimeras
!

   E deixa sobre as ruínas crescer heras,
   Deixa-as beijar as pedras e florir!
   Que a vida é um contínuo destruir
   De palácios do Reino das Quimeras!

   Deixa tombar meus rútilos castelos!
   Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
   Mais alto do que as águias pelo ar!


   Sonhos que tombam! Derrocada louca!
   São como os beijos duma linda boca!
   Sonhos!... Deixa-os tombar... Deixa-os tombar.
                  
                                          - Florbela Espanca, Livro de Sóror Saudade.

Ok; então os indícios poéticos apontam que Florbela Espanca segue a mesma filosofia da adolescente Kayla. A propósito, a portuguesa contribuiu com outra palavra da mesma, digamos, linhagem: quimera.

A segunda mensagem cósmica foi enviada na forma de uma citação extraída de um livro de Hilda Hilst:
“há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até o nosso fim. e por isso passíveis de serem sonhados a vida inteira.”
                                                                               - Hilda Hilst; Estar sendo. Ter Sido.

Para reduzir o risco de interpretar equivocadamente a frase de Hilst, decidi ler o livro, porém adianto que, como todo bom livro de ficção, ele não me trouxe respostas definitivas. Aquele que advoga a favor da permanência de alguns sonhos na gaveta é Vittorio, um senhorzinho de 65 anos, já em cadeira de rodas, que pressente que a morte está prestes a dar-lhe o bote. Portanto, conto com a abordagem de uma adolescente — Kayla não reaproveita nenhum sonho da caixinha; manda tudo pro fogo — e de um idoso —Vittorio conserva um ou dois sonhos na gaveta. Curti essa dualidade, pois enriquece demais estas divagações.

Aquela fala de Vittorio é dita em referência ao amigo que nunca havia conseguido sequer encontrar-se com a corista que amava. Na teoria de Vittorio, possivelmente o amigo apaixonado sabia que, no momento em que dormisse com a amada, o sonho de viver aquela paixão se acabaria, o romance terminaria e ele restaria com nada. É nesse contexto que Vittorio defende a manutenção de alguns sonhos no cofre, a fim de que possam ser ressonhados. Na velhice, quando tudo se esvai, tudo se dilui, (…) e a carne vai ficando triste, talvez seja realmente um alento e tanto poder ressonhar um desses sonhos do passado. Ao mesmo tempo, no entanto, Vittorio repete com certa frequência, ao longo de seu monólogo, a frase "preciso viver meu sonho", a qual me faz interrogar: o sonho que ele teima em manter na gaveta não estaria também causando-lhe sofrimento? O discurso dele sugere a angústia de ainda querer muito viver um sonho que é impossível, dado que ele está ciente de que já não tem energia, de que agora ele não dispõe de tempo. O ressonhar seria fonte de prazer e sofrimento?  Em uma de suas crônicas, Lispector escreve que "Todo prazer intenso toca no limiar da dor",  portanto (outra vez nas palavras de Lispector:) talvez assim seja.

Caramba, quanta pergunta sem resposta. Mas dane-se; encerrarei a postagem aqui, antes que eu queime mais fusíveis da minha cabeça, matutando abobrinhas. 

23/10/2019

Here comes the sun, little darling

01
Em entrevista concedida a Stephen Colbert no começo deste mês, Thom Yorke falou algo (valendo-me das palavras de @livrisa:) que me trouxe reticências*. Comentando o título de seu novo disco solo - ANIMA -, ele expressou gostar da ideia de que todos nós temos pequenos animas que são enviados por aí, através de nossos black mirrors (celulares), para firmar comunicação. Só que  ainda conforme o querido músico — todos interpretam equivocadamente o que recebem, de modo que o pequeno anima retorna desfigurado e irreconhecível, feito bumerangue, direto na fuça do remetente (a metáfora é por minha conta). Na opinião de Yorke, é como se estivéssemos vivendo sob um estado de sonho bizarro, enquanto a realidade afasta-se em direção oposta. Provavelmente eu conseguiria vomitar um monte de trivialidades inspiradas nesse discurso, contudo pinçarei somente o ponto de partida do raciocínio dele, aquele relacionado ao ato de espalhar pela internet pequenos animas (sentido não estritamente junguiano, mas também "yorkiano" rs) de nós mesmos e de como eles são capazes de afetar o anima de alguém completamente desconhecido. [*: dentre os símbolos que adoto em minha marginália, constam justamente as reticências (uso bastante!); razão por que curti a expressão da Isabella Tramontina.]

Em abril deste ano, Luiza Pinheiro, autora da excelente newsletter Doses de Tiquira, enviou a cartinha #56, na qual ela narra o feriado de semana santa que desfrutara na praia de Campeche, em Florianópolis. O texto é lindo, super bem escrito, e me tocou profundamente, em especial os trechos em que ela reflete a respeito da experiência de ser uma mulher viajando sozinha pra praia, sem grandes planejamentos, apenas a fim de curtir um pouco de sol, mar e sossego. Embora me considere expert na arte de fazer coisas sozinha, ir só à praia, sobretudo a uma praia não urbana, continuava representando uma fronteira a ser ultrapassada, e sinto que a cartinha da Luiza Pinheiro me ofertou a dose de anima que me faltava. Em outubro deste ano, após seis anos em que períodos de férias foram gastos trancada sozinha em um apartamento, arrumei mala e cuia para passar pouco mais de uma semana na praia. Foram dias muito, muito felizes em que revi o mar e durante os quais - para resgatar meu último alinhavo - diversos animais concederam-me o privilégio de poder observá-los: tartarugas marinhas, tubarões (adulto e filhote!♥), golfinhos, aves marinhas, polvos, arraias, peixinhos multicoloridos, siris, moreia, lagartixas... Por volta do terceiro dia, admito que bateu uma desolação quando me olhei no espelho e constatei que as sardas se multiplicavam e os melasmas se expandiam por conta de toda aquela danação sob o sol. Esse sentimento, entretanto, morreu quando minha piegas poeta interior me informou que cada novo pigmento de melanina representava um segundo da alegria que eu estava sentindo naquelas férias. Em meu rosto, desenhava-se um mapa de instantes pessoais de felicidade. #poetei💩

Agradeço à Luiza Pinheiro (pessoa que sequer conheço, com quem sequer me comunico diretamente) o tantinho de anima recebido que permitiu eliminar de minha visão a barreira "proibido viajar sozinha para praias". Foi uma experiência que reforçou a intenção de lançar nesse blog-diarinho pedacinhos de meu anima que, com alguma sorte, possam afetar positivamente o anima de alguém. Não; mais fácil melhor: simplesmente manter o bumerangue no ar; relançando, na forma de relatos de gratidão, os pequenos e generosos animas que chegam até mim.

02

O autoficções #03 incluiu entradas em que devaneei sobre o medo despertado pelo mar, alinhavando Claire Denis, Don Delillo e Hugo Von Hofmannsthal. Pois dia desses decidi finalmente travar contato com a escrita do David Foster Wallace e é claro que escolhi começar pelo famosão ensaio sobre cruzeiros (*por sinal, ganhou uma nova dimensão depois da série Succession. Quem viu, sabe a que me refiro). Nessa leitura, me admirei quando Foster Wallace revelou sentir real pavor do mar. Ele retoma os argumentos que eu já tinha citado com a ajuda daqueles artistas (em destaque: o mar nos faz confrontar nossa mortalidade e insignificância), porém acrescenta outro estupendo: a relação entre o efeito corrosivo do mar (pela maresia, salinidade etc) e nosso envelhecimento; nosso próprio processo de corrosão progressiva, digamos, rumo à morte. E Wallace completa a reflexão com a fascinante contribuição da obra Moby-Dick, do Melville (ainda não li; fuén). Insiro a passagem (grifos meus; tradução: Daniel Galera e Daniel Pellizzari):
"(...) eu senti desespero. (...) uma mistura simples — um estranho anseio pela morte combinado com um sentimento esmagador da minha pequenez e da minha futilidade, que se apresenta como um medo da morte. Talvez seja algo próximo daquilo que as pessoas chamam de pavor ou angústia. Mas é bem outra coisa. É como desejar morrer para escapar da sensação insuportável de compreender que sou pequeno e fraco e egoísta e que sem a menor dúvida vou morrer. É querer se atirar do navio. (...) Eu, que antes desse cruzeiro nunca estivera no oceano, sempre associei o oceano com pavor e morte. (...) Na escola, acabei escrevendo três trabalhos diferentes sobre o trecho “O Náufrago” de Moby Dick, o capítulo em que o grumete Pip cai no mar e enlouquece por conta da imensidão vazia onde se vê flutuando. (...) E o próprio oceano (que descobri ser salgado como o inferno, salgado como gargarejo para aliviar dores de garganta, com borrifos tão corrosivos que a armação dos meus óculos provavelmente terá de ser trocada) é em essência um enorme mecanismo de decomposição. (...) Mas num Cruzeiro de Luxo 7nc somos envolvidos com destreza na construção de fantasias variadas de triunfo sobre essa morte e essa decomposição."
    - David Foster Wallace, Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer.

Persisto no papo sobre o medo do mar não apenas pelas novas reverberações obtidas com David Foster Wallace, mas principalmente porque descobri, nessas férias, que eu mesma tenho mais medo do mar do que supunha. Sério; logo que lá cheguei, me caguei de medo de entrar na água. - E se uma corrente me arrastar? E se um tubarão me morder? Uma moreia?! E se eu pisar numa arraia? E se eu encostar numa água-viva? E SE EU MORRER? O que me ajudou a dominar o pânico foi o anima de um mergulhador chamado - que rufem os tambores - Matrix! O mergulho guiado (de snorkel) equivaleu a tomar a pílula vermelha (ou seria a azul?). Continuei medrosa, entretanto com um medo apenas respeitoso (bem sabemos que o mar exige respeito) e menos infantil, diria. Muito obrigada, Matrix. Daqui, devolvo novamente bons animas pra você.

P.S.: depois de tanto pensar no mar, percebi que é hora de sacar da estante a coletânea de poemas da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen. O Coral e outros poemas saiu do plástico e, no momento, repousa sobre a cabeceira, ou seja, o mar seguirá molhando os posts do bloguinho. 🌊 (*E como é triste pensar nas últimas notícias do que ocorre na costa do Nordeste.)

03

Acho engraçada a parte em que, naquela newsletter, Luiza ressalta que a decisão de ir sozinha à praia não envolveu algum grande propósito, a resolução de alguma questão ou a necessidade de repensar algum aspecto da vida; pois receio que meu caso teve, sim, um tantinho desses clichês. Conforme adiantei no autoficções #01, em agosto me submeti novamente ao bisturi do cirurgião (sem intercorrências, pós-operatório tranquilo), de maneira que, se o pó me lançou ao mundo com "x" órgãos, ele terá de se contentar em me ter de volta com "x-2". Parcelei meu retorno, e ~é estranho~. A primeira versão deste post continha maiores detalhes (melodramáticos), porém a cafonice e o #TMI me fizeram apagá-la. É hora de substituir o anima de novela mexicana pelo anima da grande filósofa Mary J. Blige:

Let's get it crunk upon
Have fun upon up in this dancery

(...)
'Cause we celebrating 
No More Drama in our life

No mais, ousaria confessar que, durante a viagem, rolou a sensação de protagonizar um daqueles contos "praianos" da Lucia Berlin (coletânea Manual da Faxineira, tradução: Sonia Moreira), nos quais mulheres solitárias e infelizes recorrem a um tempo na praia para uma espécie de... recalibragem? reconfiguração? cicatrização? luto? Não sei. No entanto sei que, no conto Toda Luna, todoaño e no Dor, a autora americana conseguiu fazer o clichê "retiro na praia para repensar a vida" funcionar. De volta ao lar, reli os dois contos e me encantei ainda mais com o uso do mergulho como experiência catártica para as protagonistas de Berlin. Não, não transei embaixo d'água com um mergulhador gostosão (ah, como a ficção é mais legal do que a vida real), porém agora sei exatamente do que a Berlin fala, quando ela fala de mergulho no mar*: (grifos meus):
"O peso desapareceu. Não só o peso do tanque, mas também do seu próprio corpo. Ela estava invisível. Batia os pés, usando pés de pato pela primeira vez, planando pela água. Por causa do bocal, ela não podia rir nem gritar. (...) Ela continuou voando,
(...)
Sem peso, você perde a si mesmo como ponto de referência, perde seu lugar no tempo. (...)
No mar alto, duas tartarugas verde-escuras acasalavam, flutuando nas ondas. (...)
O que ela ia fazer quando voltasse para casa?"
                                                                               - Lucia Berlin, Toda Luna, todoaño 

*E olha que só mergulhei de máscara + snorkel. (Infelizmente, meu histórico clínico contraindica o mergulho de cilindro.) O objetivo da ressalva é anima(r) qualquer mergulho, caso surja qualquer tipo de oportunidade.

04
Durante estas férias, o livro Deixa Comigo, do uruguaio Mario Levrero (Tradução: Joca Reiners Terron) me fez companhia, e me surpreendeu encontrar nele a tangente abordagem da temática "viagens". Logo no início, o narrador de Levrero diz algo curioso relacionado aos sentimentos pré-viagem:
"(...) essa angústia habitual (...) mistura de temor ao desconhecido com uma nostalgia antecipada pelas coisas e espaços de minha casa."
                                      - Mario Levrero, Deixa Comigo.

Eu me identifiquei com essa mistura doida de sentimentos, e costumeiramente é uma luta árdua impedir que a referida angústia leve a melhor e me mantenha presa à teia de aranha. A propósito, foi por um bem-vindo acaso que, dias depois de ler a prosa de Levrero sobre as teias de aranha, a @casatorquato (delicado perfil do instagram + youtube, uma @ distribuidora de bons animas) me mostrou essa foto linda de teias na natureza. A família Torquato, Levrero e eu estamos com os animas sincronizados. 🕷🕸 

05
Nesse livro do Levrero, o mencionado fotógrafo capaz de captar a beleza das teias de aranha é encarado, pelas pessoas da cidade em que morava, como uma figura excêntrica. Sobre ele, um morador comenta (grifos meus):
"(...) um tipo estranho, mais ou menos da tua idade, que sempre anda sozinho por aí, sentado na praça, às vezes o vejo agachado olhando uma plantinha, não sei, essas coisas. Às vezes inclusive tira fotos, mas não de paisagem nem de gente, e sim de paredes descascadas, coisas assim, entende? Não sei se alguma vez escreveu algo, mas tem o tipo, percebe?"
                                                                    - Mario Levrero, Deixa Comigo.

Matutei que talvez esse seja o motivo por que morro de vergonha de sacar o celular da bolsa, no meio da rua, para tirar fotos de coisas que me sensibilizam. Caramba, foi durante essas férias na praia que, pela primeira vez, arrisquei tirar selfie em público. Na realidade, há pouco fui empurrada por outro ótimo distribuidor de animas inspiradores. Em um post de setembro, Austin Kleon compartilhou fotos em que ele captura a imagem da lua naquelas primeiras horas da manhã, e fiquei mega empolgada, dado que, por sair bem cedo pra trabalhar, eu própria estava avistando a lua toda bonitona nas manhãzinhas, porém sem coragem de tirar foto. Com o anima do Kleon, superei o constrangimento e agora tenho a lua da manhã comigo:


06
Tirei boas sonecas embalada pelo barulhinho gostoso do mar - ASMR da natureza -, mas a água da chuva também canta um sonzinho melodioso. Leituras recentes me mostraram que Florbela Espanca e Roberto Arlt percebem o chamado à dança feito pela chuva (e também pelo mar). 

07
No meu álbum anexado no topo deste post, incluí uma frase do Larry David na série Curb Your Enthusiasm: "Não se pode nem sair de casa". Cabe, aqui, explicar o cômico contexto (para que eu, no futuro, não esqueça). Naquele episódio, Larry sai pra jantar com sua esposa Cheryl e, no restaurante, encontra ao acaso um amigo. Ele se empolga, troca conversa fiada com desenvoltura etc. No entanto, quando Larry volta para sentar-se à própria mesa, Cheryl o repreende por ele não ter cumprimentado a esposa do amigo. Larry papeou com o coleguinha como se a respectiva esposa não estivesse ali, ignorando-a completamente. A câmera aproveita a deixa para alternar closes da cara da desdenhada, que ri ironicamente, ao mesmo tempo que fuzila Larry com olhares oblíquos. Larry sente-se péssimo (afinal, além da bola fora social cometida, Larry é o George Constanza, o que significa dizer que, todo mundo tem que gostar dele), o jantar resta arruinado e ele solta o aforismo máximo: Não se pode nem sair de casa. A reação bebe um pouco da fonte sartriana "o inferno são os outros", né? É embaraçoso confessar, porém simpatizo com o bobalhão (intersocial) Larry. Tivesse ocorrido comigo, sei que ruminaria o faux pas social durante um mês, pelo menos. Para evitar esse tipo de coisa, o que a gente faz? Fica em casa. Fica preso na teia de aranha. Não tira foto. Spoiler: fica no subsolo? ↷

Puxarei a filosofia do Larry David para alinhavar dois livros lidos recentemente: Normal People, da Sally Rooney e Memórias do Subsolo, do Dostoiévski.

Calma, calma. Ok, em princípio são obras díspares, contudo há ao menos uma coisinha que as une. Acho. É o seguinte: o personagem narrador do Dostô e o protagonista da Rooney não conseguem livrar-se do sentimento "o inferno são os outros". Tal qual Larry David/George Constanza, o irlandês do século XXI e o russo do século XIX vivem presos à crença de que, sim, todo mundo precisa gostar deles; caso contrário, é melhor ficar no subsolo, é melhor nem sair de casa, é melhor não revelar publicamente o namoro, é melhor desistir das ambições acadêmicas, é melhor... Apesar da identificação vexatória, a leitura ofereceu o precioso ensejo para pensar o "problema" (?) mediante saudável distanciamento - quando leio, o problema não está comigo, está com a personagem; o que torna as coisas relativamente simples e nítidas. Enquanto estive enforcada nesse nó de marinheiro russo-irlandês, uma imagem ficou persistentemente piscando na minha mente, digo, outra fala de personagem de série de TV. Refiro-me a esta aqui, dita por Don Draper em Mad Men:

Na cena, um ex-funcionário da agência diz na lata uns impropérios sobre o Don, soltando tudo o que pensa a respeito do grande publicitário que, de seu lado, replica com a frase icônica: eu sequer penso em você. Pois quanto mais eu me apoquentava com o sofrimento das personagens da Rooney e do Dostoiévski, mais sentia vontade de chacoalhá-las: "Parem com isso, rapazes; essa aflição neurótica não vale a pena. A verdade é que os outros estão se lixando pra vocês. Sigam o exemplo de Don Draper, seus tontos — que, aliás, sequer pensa em vocês!" A própria narrativa da Rooney contém uma evidência: SPOILER!!!! > posteriormente, o moço descobre que toda a escola já sabia do namoro que ele julgava esconder e - adivinhe só? - ninguém.se.importava. Até o conto da Lucia Berlin flerta com o mesmíssimo tema:
"Eu me sinto tão nua. Tenho a impressão de que todo mundo está vendo as minhas cicatrizes."
"Sabe uma coisa que eu aprendi? A maioria das pessoas não repara em absolutamente nada ou, se repara, não dá a mínima."
"Você é tão cínica."                                                   
  
                       - Lucia Berlin; Dor.
Saí dos desvarios propostos pelas duas leituras com a conclusão (óbvia, reconheço) de que é ilógico estressar-se com a opinião de um outro que, na real, nem está pensando em você; ou, quando o faz, é frequentemente mal, não importa o que você faça. Talvez o ideal seja alcançar o meio termo entre as filosofias Larry David-Don Draper?! (*Pausa*: juntando os miolinhos do chão, depois que minha mente explodiu imaginando um combo entre os dois sujeitos.) Julgarão esquisito que eu esteja viajando sozinha pra praia? Tirando foto da lua pela manhã? É justo. Eu, do lado de cá, me esforçarei para não pensar nisso. Voilà. Por que eu deveria me alimentar de anima negativo? (Falar x Fazer... etc etc.)

08
Outro alinhavo divertido que andei estabelecendo é entre Dostoiévski e Machado de Assis:

Quanto mais minha leitura de Memórias do Subsolo avançava, mais impressionada eu ficava com os elementos que a obra compartilha com Memórias Póstumas de Brás Cubas. A dada altura a coisa estava tão gritante, que apostei como certa a existência de artigos acadêmicos abordando os paralelos; o que, de fato, procede. Dentre os trabalhos localizados no google, destaco o artigo escrito por Elis Regina Basso, publicado em 2015 na revista Travessias (link aqui), pois ela faz um estudo bem estruturado, listando cada um dos pontos em comum.

Decidi acrescentar esse alinhavo neste post porque, a despeito das diversas semelhanças entre os dois livros, identifiquei uma hilária diferença entre o personagem russo e o brasileiro, a qual dialoga bem com minha entrada anterior número 07 ⤴. Assim como o "homem-rato" (termo adotado por Nabokov) de Dostoiévski, Brás Cubas tem consciência de ser uma pessoa tosca e insignificante, no entanto isso não é suficiente para que ele recolha a dita insignificância ao subsolo. Por deus, nem depois de morto ele aceita o subsolo (!), pois tá lá insistindo em encher nossos pacovás com seu memento de puro papo furado. Em termos chulos: Brás Cubas está cagando. Brás Cubas sairá de casa sim, tirará foto da lua sim e não pensará em ninguém. Presumo que o estudo comparativo dessas duas personagens possa desvendar um pouco do que significa ser brasileiro. Será? Sei lá, mas fica o registro da hipótese.

09

Na praia, também consegui começar a leitura do livro As pequenas virtudes, escrito por Natalia Ginzburg (Tradução: Maurício Santana Dias). Por enquanto, li apenas o ensaio O meu ofício, no qual a italiana discorre a respeito de sua relação com a escrita. Visto que eu já tinha comentado no blog que me interesso demais em entender o que atrai as pessoas à escrita, é compreensível que eu tenha sido prontamente fisgada pelo atrativo título da italiana. Além do mais, uma vez que muitos animas chegam até mim através de textos, julguei por bem alinhavar esse ensaio na presente postagem.

Embora O meu ofício permita devanear sobre uma porção de coisas, quero me ater, por enquanto, ao recorrente sentimento de felicidade que a autora diz acometê-la quando escreve.
"Tinha escrito meu conto (...) e me sentira feliz como jamais acontecera em minha vida, repleta de pensamentos e de palavras." 
                                                                        - Natalia Ginzburg; O meu ofício.
Ginzburg menciona que, ao escrever, tudo se distancia e some, e ela está só com sua página; nenhuma felicidade pode subsistir se não estiver estritamente ligada a essa página. Isso me fez lembrar de algo correlato (e singelo) dito por Drauzio Varella em uma antiga entrevista cedida ao Publishnews (link aqui). Ali, o autor comenta sobre a sensação de felicidade que ele obtém sozinho naquele momento mágico em que escreve e sente que o troço ficou bom. Colo a transcrição:

No dia do escritor, a editora Martin Claret publicou no Instagram esta frase da Virginia Woolf: "Escrever é que é o verdadeiro prazer; ser lido é um prazer superficial." Tal assertiva despertou a crítica de uma seguidora que defendia a importância de ser lido, pois, do contrário, bastaria falar. Hoje, acredito que o ensaio de Ginzburg e a resposta de Varella dissipariam a ligeira confusão que se estabeleceu na troca daqueles animas. Ora, se eu mesma, uma tonta que só escreve tonterías em um blog lido por ninguém, experimento um puro contentamento ao terminar um post, imagine então o que se passa no íntimo dos grandes escritores quando escrevem. A própria Ginzburg diz não saber nada do valor daquilo que escreve, entretanto isso não sobrepuja a felicidade advinda de seu ofício. 

Elaborei a teoria (estapafúrdia?) de que talvez um pouquinho dessa felicidade surgida no momento em que um texto é escrito seja transmitida, sob a forma de anima, para o leitor. Se bobear, é a chave do enigma das divergentes respostas provocadas por um único livro: se apaixonam pela obra aqueles que são tomados pela felicidade originada no instante de sua criação. #Poetei de novo?💩

10
Na despedida, a dona do albergue desejou que eu retornasse e que, da próxima vez, eu fosse com amigas. Também espero o mesmo. Entretanto, caso companhias não sejam possíveis, não deixarei que isso impeça meu retorno; afinal não há anima mais vigoroso do que aquele que a natureza nos presenteia, certo?