16/01/2019

Espio eu, espia você, na espiada da solidão

Quando um leitor fala sobre Frankenstein, escrito por Mary Shelley, ou quando algum crítico resenha a obra, há um chavão recorrente:

"- Pra começo de conversa, Frankenstein é o nome do cientista. Fique esperto."  

Ao ler o livro pela primeira vez ano passado, percebi que eu nunca tinha atentado em lançar ao colega leitor/crítico a pertinente questão: "- tá, mas então qual é o nome da criação de Victor Frankenstein?" Embora eu não tenha tido essa perspicácia; a leitura evidenciou por que nenhuma resenha ou crítica menciona o nome da personagem: ela não tem nome. Pequeno Frankie não apenas relega aquilo que cria, como também não se digna a dar-lhe um nome. Simples assim. Quer dizer, talvez não seja assim tão simples, tendo em vista que, efetivamente, as personagens do livro reservam à criação de Frankenstein uma série de alcunhas carinhosas. Incluo breve compilação:
       MONSTER          DAEMON          THE WRETCH          DEVIL          
   
CREATURE         THE BEING          FIEND          THE OBJECT 
Cada vez que meus olhos se deparavam com um desses termos, minhas pálpebras tremiam, a testa franzia, minha bunda se inquietava na cadeira e meu pescoço inclinava-se em um ângulo de trinta graus à direita. Essas palavras e expressões não pareciam fazer sentido, uma vez que todas recusam enfaticamente a discussão daquilo que, pra mim, não estava claro:

O que era aquela criação? 

Meu espírito teimava em rejeitar aquelas formas de tratamento que negavam a pergunta que reverberava com crescente intensidade, à medida que minha leitura avançava:

É... humano? É um ser humano? 
O que é ser humano? O que me torna humana?

Se eu tivesse bagagem filosófica suficiente, adoraria me divertir desenvolvendo a contento essa reflexão, no entanto não a possuo. Portanto, alerto que saltarei na escuridão abissal. Mas calma. Minha ambição não é insensata a ponto de ousar responder, de forma mal ajambrada, as inquietações metafísicas patrocinadas por Mary Shelley. Na verdade; desejo falar da passagem  na qual a criatura, em fuga, esbarra com um velho casebre de madeira e teto baixo que, embora mal a acomode, serve-lhe como conveniente refúgio e esconderijo. E então, o evento mágico: através de um pequeno buraco presente na parede daquele minúsculo espaço, a criatura consegue observar a rotina de uma família que morava na casa contígua. Ao longo de todo um inverno, a criação de Frankie permanece vivendo ali, acompanhando na surdina a vida dos De Lacey. 

Por meio da observação, a criatura desenvolve uma série de habilidades que fomentam questionamentos acerca de sua humanidade. Ela domina a linguagem oral e escrita, aprende a ler ("Paradise Lost, Plutarch’s Lives, and The Sorrows of Werter"!!) e, de jeito encantador, mostra-se capaz até de comover-se com a música tocada pelo idoso e cego senhor De Lacey. Ademais, são passagens do livro em que a criatura claramente exibe ao leitor sentimentos complexos e essencialmente humanos: empatia, compaixão, solidariedade, tristeza, medo da morte, amor à literatura, raciocínios éticos e morais, “I knew I possessed no money” > consciência de classe??!! (Eita! rs). A despeito de tudo isso, meu foco permanecia recuado no exato local da partida. quer dizer: a criatura é tomada pelo ímpeto de espiar pessoas, ela se interessa pela vida de outros seres, ela deseja romper sua solidão e socializar com o outro. Por alguma razão, minha mente insistia obsessivamente nesse componente primordial da narrativa de Shelley, supondo que aquilo era uma significativa chave capaz de abrir, se não todos, pelo menos um dos cadeados que ocultam a humanidade daquele ser. 



Claro que, ao escutar essa resposta, desgarrei-me prontamente do abraço de Morfeu, saltei da cama e esbravejei para as paredes do quarto: "- Estão vendo, estão vendo?! É ISSO!" Meu deus, mas era precisamente isso o que o ser criado por Frankenstein me revelava. Logo, como seria possível negar-lhe a humanidade? Negar tratar aquela criatura feito um ser humano? Negar-lhe um nome?! Como?

Na sequência, minha memória "subitamente" catapultou à consciência a obra "Etant Donnés: 1. La Chute d’Eau, 2. Le Gaz d’Éclairage / Sendo Dados: 1) a cascata; 2) o gás de iluminação", última e enigmática criação de Marcel Duchamp; a qual desponta aqui como espécie de imagem especular do episódio criado por Shelley que ora discuto. A obra de Duchamp constitui-se de uma porta maciça de madeira com dois pequenos buracos através dos quais o observador pode inspecionar o que há do outro lado: um corpo de mulher estirado no chão sobre ramagens, seu tronco e pernas escancaradas, a vulva desnuda e sem pelos. 

Evidentemente, aquilo que a criatura de Shelley espia através do buraco do casebre é bem mais, hum, ~singelo~ e menos bizarro do que a ilusão ótica montada pelo francês, porém o impulso consciente para o ato voyeurístico explorado nas versões de Shelley e Duchamp é correlato. Nesse sentido, decidi catar o livro Arte e Psicanálise, escrito por Tania Rivera, a fim de recordar o que a psicanalista e professora havia discutido ali a respeito de Sendo Dados; e arquivo aqui este trecho:
(* P.S.: li um artigo (link aqui) sobre a teoria de que a estrutura montada por Duchamp opera tal qual uma câmera escura que projetaria a imagem invertida do rosto do artista na parede oposta. Praticamente, +-, um... espelho?)

Então, logicamente, terei de enfrentar a metafísica do olhar. (*Medo*) Infelizmente, não manjo nadinha das teorias de Merleau-Ponty, Sartre e Lacan, portanto me lasquei. Li somente ~uns textinhos aí~  (nem é tãããoo complicado, mas basta chegar no Lacan, e o caldo desanda) e vejamos quão feio será meu tombo.

Bem, Rivera lembra que "olhar é se olhar", "o quadro faz o olhador". Ok. Pois é propriamente a partir da contínua observação da família De Lacey que, pela primeira vez, a própria criatura finalmente também é instigada a se perguntar (grifo meu):

É a partir da contemplação da dinâmica da família De Lacey que a criatura adquire consciência de sua existência, é o momento em que ela tenta compreender sua essência enquanto ser vivo, sendo obrigada a confrontar-se. Ainda em concordância com o texto de Rivera (*acho* rs), trata-se do instante em que a criatura é tomada por grande estranhamento e perturbação; sobretudo quando o outro, tão melhor e diferente, não a aceita como um igual. Isto é: terceira rejeição. Talvez seja possível até fazer chacota com a famigerada frase de Sartre "O inferno são os outros". O mero ato de espiar anonimamente o outro já coloca a criatura, seguindo o raciocínio de Rivera, na posição de olhada/espiada (sentido filosófico/psicanalítico) por aquele que a recusa. Coitada.

Durante a posterior leitura do livro A Cidade das Palavras, Alberto Manguel inesperadamente também me ofereceu um trecho que serviu para iluminar minhas reflexões:


Daí, as coisas ficam complicadas para a personagem de Shelley, dado que os outros não a reconhecem. A consciência da criatura indiscutivelmente se desenvolve a partir da observação da família De Lacey (formação do eu), porém, tão logo ela sai do anonimato para expor-se à percepção do outro, ela é repelida. Digo, naquela passagem, eventualmente a criatura toma coragem para sair da toca, contudo o senhor cego é o único que a percebe e a acolhe. Os demais, contrapostos à aparência hedionda, são incapazes de enxergar além e negam-lhe o reconhecimento. Escreveu Manguel: “(...) saber que existimos supõe o reconhecimento dos outro que percebemos (...)”. Sendo assim, em tal contexto, a criatura prosseguiria existindo? Para não dar spoiler explícito, refiro meramente que o final do livro responde a contento essa dúvida.

Outro parágrafo do texto do argentino apareceu na sequência para me chacoalhar mais fortemente:
 


“Os monstros não continuam monstros para sempre (…) porque são muito parecidos conosco e capazes dos mesmos atos.”??!! Caramba, será que eu estava tão intrigada com o comportamento da criatura, a solitária e rejeitada que espia isolada o outro, em decorrência de enxergar nela meu duplo? Para resgatar os termos de Rivera: o livro de Shelley funcionava como um espelho através do qual eu via, na circunstância da criatura, minha imagem refletida??!! Aquela personagem me olhava de volta? Sim, só podia ser isso, afinal a própria criatura sentiu algo semelhante ↴: (!!!!!!!!!!!!!!!!)


Depois de muito matutar, obtive várias respostas tão satisfatórias, quanto assustadoras; entretanto escolho expor aqui somente uma delas. Lançarei uma teoria potencialmente estapafúrdia em princípio, ou não: a narrativa de Mary Shelley, de uma criatura que espia anonimamente o outro, é uma alegoria da nossa moderna relação com a Internet, nomeadamente com as redes sociais. Rola ou não rola? Desconfio que sim. Em vez de apelar para o constrangimento de expor minha experiência particular circulando nesse mundão virtual de meu deus, atinei que eu poderia desenvolver a teoria a partir do relato pessoal que Olivia Laing insere no livro The Lonely City. Nessa obra, a autora britânica discorre sobre o período em que mudara-se para Nova York após o término de um relacionamento, fase durante a qual, afogada em solidão e dor, ela recorrera intensamente às redes sociais. 

De saída, imagino que vale chamar atenção para o próprio caráter imagético da coisa toda. Pode haver certo exagero, admito, no entanto não parece claramente que o celular/tablet/notebook substituiu o esconderijo cujas paredes contêm um buraco? Esses dispositivos tecnológicos não assumiram o papel da interface que ao mesmo tempo aproxima e separa um observador de um observado? Laing, ao falar de laptops e celulares aqui ↴, praticamente descreve o cafofo da criatura de Shelley:


O feixe de luz que parte de um ponto isolado inundando a cara abobalhada do internauta (que palavra ridícula, mas na falta de outra...) igualmente parece ser familiar àquele que atravessa o buraco do covil para iluminar o voyeur em Frankenstein. Ainda que Shelley não tenha descrito detalhadamente a cara da criatura hipnotizada pelos De Lacey, aposto que não era uma fisionomia diferente daquele esboçada por Laing:

Hum, "looking half-dead" e "solitary", é? Sei, sei; tipo uma criação horrenda do Dr. Frankenstein, né?
Tô ligada, Dona Laing.

A relação de quase vício, o impulso obsessivo de persistir checando o outro é similar entre a criatura e internautas. Segundo já referido aqui, a criatura não fica só uns diazinhos praticando o stalker maroto; ela permanece três meses "entretida" com a brincadeira voyeurística. E não é só isso: gasta o dia inteirinho nessa empreitada.

Detalhe curioso: interessantíssima a relação entre as palavras "strangers" (Laing) e "friends" (Criatura), sim? Quantas vezes, na internet, caímos no mesmo equívoco da criatura: chamar de "amigo", aquele que, no frigir dos ovos, felizmente/infelizmente não passa de um estranho?

Na solidão do apartamento minúsculo de NY, Laing diz que a internet a fazia sentir-se como “an absent, ardent witness to the world.” Ora, mas é justamente o contexto da criatura de Shelley; um ser solitário que, ao ser agraciado(?)/amaldiçoado(?) com a vida, é atirado às cegas em um mundo hostil e incompreensível. Logo, haveria modo mais seguro de explorá-lo, além daquele em que está protegida por quatro paredes que a ocultam dos humanos agressores? E, para muitos de nós, hoje, a internet oferece exatamente isso. Ou não?
Outro tópico bacana discutido por Laing corresponde à seguinte indagação: por que ela insistia obsessivamente naquilo? O que tanto nos atrai para o buraco na parede? Rivera, na análise de Sendo Dados, inclui uma frase do alter ego de Duchamp, Madame Rrose, que pode ser útil nessa ruminação: "Um buraco é feito para ver, não para ser visto". O dispositivo está não mão e serve (em parte) pra isso, então a gente olha, ué. (E é olhado de volta...?) Confere? Entretanto Laing não para aí e elenca uma série de pontos relevantes, os quais listarei em paralelo a trechos de Frankenstein:

(1) 

Laing e criatura encontraram, no celular e buraco respectivamente, uma maneira de estabelecer contato com o outro e, simultaneamente, preservar a identidade e privacidade.

(2) 
A criatura fez o que pôde para convencer Frankenstein a criar para ela uma companheira, pois padecia de uma solidão profunda. O mais cruel é que, quanto mais ela vislumbrava os laços de amizade e carinho que unia os integrantes da família De Lacey, mais ela ansiava também possuir aquilo e fazer parte de um núcleo social afetuoso. (*desejo* da teoria de Lacan??) Ou seja, o sistema de contemplação anônima aparentemente funciona como um círculo vicioso: apela-se a ele por conta da solidão e, à proporção que ele é empregado, mais sozinho o indivíduo se sente. Penso que o mesmo pode ocorrer com certa frequência nas redes sociais.

(3)
É aquilo: o ato de espiar permite a objetificação do outro e nos liberta do horror da consciência do nosso ser, da nossa condição. É, porém, um suspiro breve, uma anestesia transitória. A pegadinha é que, como discutido anteriormente, olhar é ser olhado. Com as espiadelas, a consciência de quem somos (especialmente mediante comparação àquele outro) eventualmente nos invade feito um tsunami impiedoso; e a criatura de Shelley testemunha isso.

(4) 
Reiteradamente, Laing reforça que, embora a internet permita que permaneçamos ocultos, podemos escolher nos revelar. Aquela citação do livro do Manguel destaca exatamente que ver o outro não nos é suficiente: queremos ser vistos, percebidos e acolhidos. Desse maneira, nada mais natural do que ansiar a revelação e a inclusão no diálogo virtual. Equivalente percepção ocorreu à criatura que, sim, tencionava apaixonadamente interagir com os De Lacey. Aqui, porém, há uma distinção: nas redes sociais, é possível uma exposição controlada, selecionar o que será exposto ao olhar do outro. A situação da criatura, por sua vez, não permitia isso: ela teve de se exibir com todos os defeitos à mostra, notadamente os exteriores. Para alguém que já tinha sido tão rejeitada e agredida, foi um ato que exigiu tremenda vulnerabilidade. As redes sociais, assim, aparecem como facilitadores que atenuam a vulnerabilidade necessária para que possamos interagir com o outro.

Persistindo na cena em que a criatura se revela para a família, cabe uma comparação com a dinâmica virtual que poderá afigurar-se exagerada, contudo a lançarei de qualquer jeito. Primeiro, o que menciona Laing:



Quer dizer, é pouco provável que a internet tivesse ajudado a família De Lacey a enxergar além da aparência física da criatura (um feito que, ironicamente, só o cego conseguiu). Também nas redes sociais, é trabalhoso enxergar um ser humano por trás dos minúsculos ícones, sobretudo quando o que mais salta aos olhos, atualmente, são os números (de: seguidores, inscritos, visualizações, comentários, likes, acessos...).

Para arrematar, largarei o apoio gentilmente oferecido por Laing e progredirei sozinha com a intenção de registrar desvarios particulares relacionados a peculiares diferenças que identifiquei entre a criatura de Shelley e o internauta, todas largamente promovidas, teorizo, pelo ~capitalismo selvaaaaaaaagem~  que infestou a rede.

Inegavelmente, a criatura do livro acompanha cenas genuínas. Os De Lacey não sabem que estão sendo observados e não encenam para o observador. Por esse ângulo, a criatura é um voyeur que, de fato, invade a privacidade do outro. Trata-se de uma agressão. Na internet, por sua vez, é (quase?) tudo uma performance (variavelmente, para vender alguma coisa: ideia, produto, serviço...), é (quase?) tudo artificialmente arquitetado para um observador cuja presença não apenas é conhecida, como é mais do que bem-vinda, visto que a presença dele costuma implicar, direta ou indiretamente, 🤑grana💰. Aliás, com relativa boa vontade, é possível identificar uma inversão na relação vítima x agressor. Durante a contemplação, a criatura em Frankenstein não era observada por ninguém (aqui, falo do olhar no sentido banal, não filosófico/psicanalítico), entretanto a internet está dominada por algoritmos e sistemas I.A. de corporações econômicas/políticas que monitoram tudo e todos. Por conseguinte, é o internauta observador quem sofre uma injúria, pois a invasão ocorre paradoxalmente na privacidade dele. No meio virtual, privacidade virou artigo de luxo. [P.S.: sim, até pensei em viajar na pira "Inteligência Artificial e Algoritmos, então, seriam seres humanos?", porém pisei no freio, porque a cota de sandice deste post foi extrapolada vários parágrafos atrás.]

Além do mais, ainda que não tenha fontes para comprovar, afirmaria que, nos dias atuais (especialmente com a feroz pejotização), quase (?) todo mundo permanece conectado unicamente com a finalidade de ganhar dinheiro direta (influenciadores digitais p. ex.) ou indiretamente (networking, divulgação de trabalho, marketing pessoal etc). Há um mar de gente que quer/precisa ser observada por conta da necessidade de renda (o sistema está organizado assim), enquanto observar o outro (conotação: perceber, reconhecer, dialogar, enxergar além do avatar, disposição para criar laços/comunidade etc”), sem esperar grana em troca, não rola. Prevalecem débeis relações baseadas na convenção "me segue, que eu te sigo", aparentemente.

Por tudo isso, tentar apaziguar a solidão através de redes sociais (à semelhança do que fez a criatura de Frankie) não soa uma soturna piada?  Sei lá, às vezes penso que o espaço virtual virou um melancólico circo onde a maioria performa conscientemente para um outro observador que não costuma existir, posto que o outro provavelmente também está ocupado performando para um outro observador que não costuma existir, posto que...< ad infinitum > Muito pessimista, né? Veja bem; eu acabei de descobrir que sou uma monstra criada pelo Dr. Frankenstein; então que tal um desconto camarada?