10/11/2019

Old teenage hopes are alive at your door



01
Esta pessoa (↝) sorridente em frente ao Water Lillies de Monet é Chet Gold, atual supervisor do serviço de segurança (security supervisor) do MoMA. Eu o conheci mediante a série At The Museum (S02), um compilado de curtos vídeos disponibilizados pelo museu nova-iorquino no YouTube para documentar a reforma e expansão conduzidas em 2019. Dado o tema principal deste diarinho, acredito que não causará espanto revelar que foi graças à literatura que, pela primeira vez, atentei e refleti de modo consciente acerca do trabalho exercido por seguranças de museus. Especificamente, foi o espanhol Javier Marías quem virou minha cabeça em noventa graus para que eu parasse de olhar os quadros e reparasse naqueles sisudos empaletozados de (aparente) castigo no canto das galerias. Antes de Marías, seguranças de museus eram apenas a peculiar categoria de profissionais cuja autoridade, por alguma razão estapafúrdia (que a psicologia certamente explica), me instiga um empenho para deixá-los orgulhosos de meu comportamento exemplar. Crazy much? Não à toa, o único segurança que tenho gravado na memória é aquele (da equipe do MoMA, aliás) que chamou minha atenção duas vezes, porque tirei fotos onde não devia. Posto isso, a dura verdade: não sou uma exemplar visitante de museu. Meu castelo de areia ruiu, e a culpa é de um segurança do MoMA. - Play the world's smallest violin, dj! ¯\_(ツ)_/¯

Mas voltemos ao assunto desta entrada, o qual começa mesmo é com Marías. O pai do protagonista de Coração tão Branco foi um renomado curador de arte, ex-funcionário do Museu do Prado, e ele dizia ao filho que é preciso manter os seguranças de museus sempre contentes, pagando-os bem, pois deles depende não apenas a segurança e o cuidado, mas a própria existência das pinturas. O pai do narrador tinha consciência de que:
"(...) um homem ou uma mulher que passa seus dias encerrado numa sala vendo sempre as mesmas pinturas, horas e horas todas as manhãs e algumas tardes sentado numa cadeirinha sem fazer outra coisa além de vigiar os visitantes e olhar para as telas (proibido até de fazer palavras cruzadas), podia enlouquecer e propiciar ameaças ou desenvolver um ódio mortal a esses quadros."
                                                    - Javier Marías, Coração tão branco (Tradução: Eduardo Brandão)

Ou seja, é um trabalho com potencial para deixar qualquer um maluco de raiva dos malditos quadros. Nesse sentido, o pai disse ao filho que, em sua época, ele sempre buscava saber como andava a vida pessoal dos seguranças (se estavam sossegados ou alterados) e que todo mês mudava os guardas de lugar, para que pelo menos vissem as mesmas telas apenas durante trinta dias e seu ódio se aplacasse. [Adendo: na narrativa de Marías, esse papo meio que funciona como alegoria para a vida conjugal — cada cônjuge, todo santo dia, é "obrigado" a olhar para a cara do outro etc —; porém pularei essa parte, porque não estou disposta a mexer em casa de marimbondo. Contudo mantenho essa ressalva, uma vez que a considero relevante para a conclusão da minha história.]

Pois enquanto em mim ainda persistia o efeito de Coração tão Branco, o senhor Chet Gold cruzou meu caminho e bagunçou as peças do quebra-cabeça. Naqueles vídeos do MoMA, Gold confirma que o trabalho de segurança de museu é de fato estressante. Os seguranças tendem a um estado de elevada ansiedade em decorrência da obrigação de perscrutar os movimentos de todos, tendo de identificar qualquer sinal de mero ímpeto, a fim de serem capazes de se antecipar a possíveis atos depredativos. Nesse contexto, Gold menciona que ele próprio precisa de um lugar para relaxar ("to decompress") por alguns instantes durante a jornada de trabalho. Certo; e qual é o lugar que oferece-lhe o precioso respiro? É bem ali, de frente para o Water Lillies. Gold compartilha que é àquele quadro que ele sempre recorre nos momentos de tensão. Aquela série de vídeos é inclusive circular, pois termina com a imagem de Gold reencontrando-se com a obra de Monet, agora que o MoMA reabriria as portas, e de novo exibindo seu belo sorriso.

Moral da história "Javier Marías x Chet Gold"? Ah, cada um com a sua. 😉


02 

A leitura do Todas as Crônicas, de Lispector, segue curso lerdo, entretanto é válido registrar que, dentre os causos "Clarice Lispector e seus leitores" (bastante divertidos), aquele do polvo é um dos mais marcantes até agora. Explico. Lendo uma das crônicas, descobri que a leitora Ana Luísa, em agradecimento pelos textos que expressam exatamente como ela se sente, resolve presentear Lispector com um polvo. Refiro-me, é lógico, a um prato de polvo cozido e temperado, com arroz tal e coisa. O pior, ou melhor (sei lá), é que o regalo inusitado nem é o maior encanto da história, visto que a parte que ficou congelada na minha memória corresponde àquela em que Lispector, tomada por espanto, apela a um dicionário para buscar o significado da palavra polvo. (??!!!!!!!!!!!!!!!) Sobre o achado:
"E é simplesmente esse pavor de viver: "molusco cefalópode, que possui oito tentáculos, cheios de ventosas". Logo abaixo vem uma palavra que se aplica a Ana Luísa: polvarim - "pó que sai da pólvora". 
                                                                - Clarice Lispector;  Ana Luísa, Luciana e um Polvo.

Na crônica, Lispector diz que Deus deve saber o motivo que a fez buscar a palavra polvo no dicionário. Pois agora que li Nox (livro lindo, lindo), apostaria que, se Anne Carson tomasse conhecimento desse causo, ela também teceria um ou dois comentários a respeito da reação da cronista. Nox é um livro elegíaco que Carson escreve ao falecido irmão e, nessa obra, ela dedica-se à tradução de Catullus 101, elegia que o romano Gaius Valerius Catullus escrevera a seu próprio irmão morto. No verso de cada página de Nox (é possível ver na imagem acima), a autora incluiu a entrada lexicográfica completa (de um dicionário latim → inglês) de cada uma das palavras que compõem o poema Catullus 101, e o memorável efeito provocado pela leitura de algo tão simples (verbetes de dicionário!) me deixou embasbacada.

Cássia Eller já cantava, né? Ela cantava:
Palavras apenas
Palavras pequenas
Palavras momentos
Palavras, palavras
Palavras, palavras

Como sou palhaça, é claro que estou me mordendo pra não tirar sarro dessa canção. Simultaneamente, porém, questiono se dá para afirmar com tranquilidade que esses versos são pura galhofa. Ontem, eu teria respondido que sim; hoje, não sinto tanta segurança.

Um dicionário, um oráculo.
Uma palavra, uma resposta.
Uma palavra, um poema.
Uma palavra, uma pergunta.
Como ler uma palavra?
Palavra, palavra
Palavra?!

- Daniela (#poetei💩)


03
O filme Oitava Série (Eighth Grade - Bo Burnham, 2018) deflagrou devaneios relacionados a esta cena que não sai da minha cabeça:

Aquilo que está sendo engolfado pelas chamas é uma espécie de cápsula do tempo. Numa atividade escolar da sexta série, Kayla havia montado aquela caixa com memorabilia e uma mensagem em vídeo para seu eu do futuro, ou seja, a atual Kayla prestes a concluir a oitava série  ("a garota mais legal do mundo* → é o que está escrito na tampa). Como prêmio por ter sido eleita "aluna mais calada da turma* (- padroeira dos introvertidos, olhai por nós), ela ganha o direito de revisitar a caixa antes da formatura no ensino fundamental. (* = sonho x realidade)

Após assistir (sozinha, no quarto) a si mesma no vídeo do passado e constatar que havia desapontado seu eu da sexta série, Kayla desce à sala e pede ao pai que a ajude queimar umas coisas. O que me pegou desprevenida foi a reação do pai. Quando Kayla responde que aquela caixa continha os sonhos e esperanças dela, o pai confirma sem alarde — "e você os está queimando?"— e pronto; não diz mais nada. O pai não se atira desesperado para salvar a caixa do fogo, nem vomita um daqueles discursos piegas típicos de coach® de internet. Ele só assente e permanece em silêncio, pondo a mão sobre o ombro da filha. Ficou bonito, achei. A sequência adquiriu ares de uma cerimônia formal que integra toda e qualquer vida; quase um rito de passagem. Sai a festa de quinze anos, entra a queima dos sonhos e esperanças da pré-adolescência? Parece-me uma ótima proposta. A outra surpresa foi ver Kayla montar uma nova caixa. A garota não se intimida e simplesmente grava um novo vídeo (e otimista!) no qual expressa, para seu eu do futuro, o que ela espera e sonha que aconteça nos próximos três anos de ensino médio. E essa é a cena que me pôs a devanear. A marmanja aqui, com muito mais de treze anos na cara, está ruminando tudo issaê. Que vexame. Digo; primeiramente até avaliei que minha reação era imatura, mas depois o cosmos começou a mandar supostas ~mensagens subliminares~ que me fizeram ponderar que talvez esse lance de elaborar ⇋ destruir sonhos e esperanças seja de fato mais complexo do que aparenta ser.

Por exemplo, tomemos o filminho O Caçador de Dotes (A New Leaf - Elaine May; 1971), que vi ao acaso algumas semanas após Oitava Série. Pra jogar conversa fora com a presa, o caçador de dote pergunta-lhe quais eram seus sonhos e esperanças. Ela diz lá qual é sua esperança (= descobrir uma nova espécie de planta — ela era pesquisadora), daí me faz o favor de emendar com esta pérola: 

Mas que merda. E agora, hein? O que eu sonho é a mesma coisa que eu espero? É tudo a mesma coisa, sonho e esperança? Teria algo a ver com tempo: curto x longo prazo? Seria uma questão de complexidade? Será que o Martin Lurther King tinha mesmo um sonho? Não seria uma esperança? E faria diferença? Que dor de cabeça. Ah, taí!, seguirei os exemplos de Lispector e Carson: abrirei nova aba para o dicionário on-line.

(...)

O ligeiro alívio proporcionado pelos verbetes não durou muito tempo, pois a leitura do livro Serotonina trouxe outra palavra para participar da rodada de elucubrações: desejo. Por sinal, suspeito de que o que efetivamente me inquieta nesse jogo de palavras foi revelado no instante em que o narrador de Houllebecq me lançou este questionamento: desejo equivale à “razão para viver”? 
"Desprovido tanto de desejos quanto de razões para viver (seriam equivalentes os dois termos?, era uma questão difícil, não tinha uma opinião formada a respeito)
(...)
Mas nesse momento eu não tinha nenhum desejo, o que muitos filósofos, pelo menos era a minha impressão, consideravam um estado invejável; os budistas estavam todos na mesma longitude de onda. Mas outros filósofos, assim como os psicólogos, consideravam que essa ausência de desejo era patológica e insalubre."
                             - Michel Houellebecq; Serotonina (Tradução: Ari Roitman + Paulina Wacht)


E se, ao contrário de Kayla, uma pessoa não consegue montar caixas de sonhos, esperanças e desejos? Esse tipo de pessoa ("normal/anormal?") existe? É possível sentir-se incapaz de montar uma caixa dessas? Tal incapacidade seria compatível com a vida? Pode-se falar de preguiça? Para meu conforto, o narrador de Serotonina felizmente recordou que a controvérsia persiste até mesmo entre filósofos, budistas e psicólogos.
"(...) meu Deus, como é difícil vencer a esperança, como a esperança é tenaz e ardilosa!, será que todos os homens são assim?"   
               - Michel Houellebecq; Serotonina (Tradução: Ari Roitman + Paulina Wacht)
Aliás, e quanto à destruição? Todo e qualquer sonho/esperança/desejo é feito (retomo: devem ser feitos?... pulemos a pergunta) para ser eventualmente queimado? Se a resposta for positiva, como reconhecer a ocasião oportuna de queimar aquilo que ainda não se concretizou ou conquistou? Será que a técnica da Marie Kondo também pode/deve ser aplicada à organização desse tipo de caixa? Sobre essa parte do imbróglio, recebi duas mensagens cósmicas. A primeira veio na forma de um poema de Florbela Espanca (grifos meus): 

   Ruínas

   Se é sempre Outono o rir das Primaveras,
   Castelos, um a um, deixa-os cair...
   Que a vida é um constante derruir
   De palácios do Reino das Quimeras
!

   E deixa sobre as ruínas crescer heras,
   Deixa-as beijar as pedras e florir!
   Que a vida é um contínuo destruir
   De palácios do Reino das Quimeras!

   Deixa tombar meus rútilos castelos!
   Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
   Mais alto do que as águias pelo ar!


   Sonhos que tombam! Derrocada louca!
   São como os beijos duma linda boca!
   Sonhos!... Deixa-os tombar... Deixa-os tombar.
                  
                                          - Florbela Espanca, Livro de Sóror Saudade.

Ok; então os indícios poéticos apontam que Florbela Espanca segue a mesma filosofia da adolescente Kayla. A propósito, a portuguesa contribuiu com outra palavra da mesma, digamos, linhagem: quimera.

A segunda mensagem cósmica foi enviada na forma de uma citação extraída de um livro de Hilda Hilst:
“há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até o nosso fim. e por isso passíveis de serem sonhados a vida inteira.”
                                                                               - Hilda Hilst; Estar sendo. Ter Sido.

Para reduzir o risco de interpretar equivocadamente a frase de Hilst, decidi ler o livro, porém adianto que, como todo bom livro de ficção, ele não me trouxe respostas definitivas. Aquele que advoga a favor da permanência de alguns sonhos na gaveta é Vittorio, um senhorzinho de 65 anos, já em cadeira de rodas, que pressente que a morte está prestes a dar-lhe o bote. Portanto, conto com a abordagem de uma adolescente — Kayla não reaproveita nenhum sonho da caixinha; manda tudo pro fogo — e de um idoso —Vittorio conserva um ou dois sonhos na gaveta. Curti essa dualidade, pois enriquece demais estas divagações.

Aquela fala de Vittorio é dita em referência ao amigo que nunca havia conseguido sequer encontrar-se com a corista que amava. Na teoria de Vittorio, possivelmente o amigo apaixonado sabia que, no momento em que dormisse com a amada, o sonho de viver aquela paixão se acabaria, o romance terminaria e ele restaria com nada. É nesse contexto que Vittorio defende a manutenção de alguns sonhos no cofre, a fim de que possam ser ressonhados. Na velhice, quando tudo se esvai, tudo se dilui, (…) e a carne vai ficando triste, talvez seja realmente um alento e tanto poder ressonhar um desses sonhos do passado. Ao mesmo tempo, no entanto, Vittorio repete com certa frequência, ao longo de seu monólogo, a frase "preciso viver meu sonho", a qual me faz interrogar: o sonho que ele teima em manter na gaveta não estaria também causando-lhe sofrimento? O discurso dele sugere a angústia de ainda querer muito viver um sonho que é impossível, dado que ele está ciente de que já não tem energia, de que agora ele não dispõe de tempo. O ressonhar seria fonte de prazer e sofrimento?  Em uma de suas crônicas, Lispector escreve que "Todo prazer intenso toca no limiar da dor",  portanto (outra vez nas palavras de Lispector:) talvez assim seja.

Caramba, quanta pergunta sem resposta. Mas dane-se; encerrarei a postagem aqui, antes que eu queime mais fusíveis da minha cabeça, matutando abobrinhas.