23/12/2019

Alejandra Pizarnik; Diários (#03) - 19-31/07/1955

* Proposta do post: (1) anotar trechos, (2) devanear a partir das entradas de Pizarnik, (3) dar pitacos inúteis sobre o que ela escreve e/ou (4) estabelecer conexões. Uma conversa.

 Texto sinalizado com [📔, em verde + itálico] entradas originais de Alejandra Pizarnik.


Cuaderno del 19 al 31 de Julio de 1955

📔 "No tengo ni idea del argumento de la novela. Sólo se me ocurre decir que «la vida es una miseria». Alguien podría decir que tal vez sólo «mi vida es una miseria», pero da lo mismo…"

Por mais que a Pizarnik de 19 anos matute um bom tema para o romance que pretende escrever, ela acaba sempre retornando ao fatídico "a vida é uma miséria". E tá errada? 

Lembrei de um episódio do podcast Escritores Leitores, no qual Evandro Affonso Pereira compartilha, com um suspeito orgulho implícito, que um amigo havia reparado que nada dá certo para as personagens dos livros de Pereira. O autor confirma só escrever personagens desvalidas, para quem nada dá certo. Na ocasião em que ouvi isso, retruquei sozinha, em voz alta: - Mas, meu amigo, quase todas as grandes obras da literatura tratam justamente disso. 

Uns quatro dias atrás, assisti ao último episódio (IX) de Star Wars (o que me faz pescar no vácuo qualquer desculpa esfarrapada para falar do filme); portanto tomarei essa entrada da Pizarnik para registrar uma fala especial do C-3PO (puxando de minha incompetente memória):

       C-3PO: - Essa agonia não acaba nunca?!

Não, C-3PO, a agonia só termina quando rolam os créditos finais. Antes disso, nada feito. Citando Vonnegut: "Everything was beautiful and nothing hurt." Epa, pera (...); o quê?! Xi; volta, que a escolha da citação deu ruim.


📔 "No estoy de acuerdo con Clara Silva en lo referente a las influencias nocivas de un Proust, Gide o Baudelaire. No creo que estrellen la fe innata e inocente de nuestra alma con una violenta y angustiosa voluptuosidad. Si es que leo a Proust, es porque yo elijo a Proust y porque mi estructura se identifica con él y elige su obra y no cualquier otra. Mis angustias no nacen al contacto de las líneas, sino que se limitan a asentir familiarmente y a reconocerlas como cosas ya experimentadas."

O que até então era só mais um clichê dito por pessoas pouco inspiradas virou, após colocado na boca do Dr. Manhattan, drops de elevada sabedoria divina. Assim sendo, peço que o próprio Zeus dos Smurfs expresse o lugar-comum que sumariza o núcleo da pendenga de que fala Pizarnik:  

É a nefasta gangue literária Proust, Gide, Baudelaire & Cia quem destrói a inocência de nossas pobres almas leitoras, ou a obra dessa turma, conforme prévia defesa de Stendhal, apenas reflete a lama que já existe ~em nosso âmago~? Fecharei com a mesma conclusão de Dr. Manhattan (= são ambos), complementando-a com a de Pizarnik: "Leio Proust porque minha essência se identifica com a obra dele, e com a de mais ninguém. Minhas angústias não nascem do contato com as linhas, mas tão somente limitam-se a reconhecer ali familiaridade."


📔 "Cuando leo a Proust y atiendo su forma y fondo, me creo capaz de escribir un libro tal como él lo ha hecho; en cambio, no podría concebir nunca un relato como Bonjour, tristesse o Gigi. ¿Será mi profundidad de espíritu?, ¿o mi falta de, digamos, objetividad?, ¿o de simpleza?"

Já escrevi algo similar nos posts sobre os diários da Susan Sontag e terei de me repetir: euzinha, com dezenove anos, nem sonhava em ler Proust; e suspeito, inclusive, de que sequer sabia "o que diabos seria um Proust". Aos dezenove anos, somente os livros da faculdade (nada a ver com literatura) dominavam minhas leituras (o horror!).

O repeteco dessa percepção me obriga a rever uma velha premissa. Hoje, quando cruzo com mocinhas de dezenove anos, frequentemente fico estupefata ao constatar o quanto elas são mais inteligentes e antenadas do que eu jamais fui na mesma idade. Por muito tempo, joguei a culpa na internet: essas moças são nativas digitais e têm acesso, desde muito cedo, a um universo inteiro de informações, enquanto eu tive de contentar-me em viver numa minúscula bolha infrutífera. No entanto, agora que esbarro com os exemplos das jovens Sontag e Pizarnik, inevitavelmente preciso reconhecer que devo ter sido, isto sim, uma jovem desinteressante que escolheu manter a curiosidade pelo mundo trancafiada no calabouço. (- putz, toca o mini-violino pra mim, dj!)


📔 "Creo que mi feminidad consiste en no poder «vivir» sin la seguridad de un hombre a mi lado. En los períodos (¡actualmente tan escasos!) de ausencia de flirts, me siento terriblemente árida. Inútil. Como si estaría [sic] malgastando mi juventud. Y cuando estoy segura, es decir, cuando camino junto a un hombre que guía mi cuerpo, me siento traidora. Traiciono a ese llamado cercano que me planta junto a la mesita y me ordena: ¡estudia y escribe, Alejandra! Entonces ya no grito «¡me muero de inmanencia!». ¡No! Entonces, me siento ser. Me siento vibrar ante algo elevado que me asciende junto a sí. Esta dualidad me rebela. ¿No han de ser compatibles en forma alguna? Buscar ejemplos. ¡Sí! La foto de Daphne du Maurier junto a su aristocrático marido; lord…, tomados amorosamente de la mano. Simone de Beauvoir sonriendo junto a Sartre (no hay que fiarse del periodismo). Katherine Mansfield junto al buen mozo de J. Middleton Murry (pero sus tareas eran análogas y la mayor parte del tiempo estaban separados). Carmen Laforet con sus dos niñas (su mejor novela la escribió en estado de angustia y soledad). ¡Pero también están las otras! («galeotes dramáticos, galeotes dramáticos»). ¡Qué me dices de las hermanas Brontë, de Clara Silva, de G. Mistral (aridez sublimada), de Colette (en los primeros tiempos), de Mary Webb, de Edna Millay, de Alfonsina Storni, de Safo (¡de Safo!), de C. Espina, Es irremediable. ¡Es dramático! Una aspira a realizarse. Yo aspiro a realizarme. Cuento para ello con mis dotes literarias. Pero… ¿y si no serían [sic] notables? ¿Si no son más que producto de mi mente confusa y de mi experiencia promiscua? ¿Si no son más que elementos extraídos de mi ser semiarruinado, gastado, que resultan sorprendentes debido a mi edad física? Entonces no sólo erré la elección sino que no me realizaré por el camino más natural y sencillo de toda mujer: ¡los hijos! ¡Entonces sería más que frustrada! ¡Sería un ser arrojado para estorbar los pasos productivos de los demás! ¡Ocuparía un espacio inmerecido! Mi vida habría sido en vano. ¡Toda la voluptuosidad que exhalo y desato en mis sucesivos compañeros y luego enaltezco en los escritos habrá sido sólo farsa! Entonces… ¿qué? Entonces… estar y esperar. ¡Esperar a que todo venga espontáneamente! ¡No! Lo único que ha de venir espontáneamente es la muerte. ¡Al diablo!

No quiero amantes (pues desordenarían las horas de estudio). ¡Al diablo! ¡Tendrían que crearse burdeles especiales para mujeres-artistas! Pero no los hay… ¡y es tan trágica la visión de una mujer madura sorbiéndose el cuerpo en la aridez de la noche! Y eso es lo que me espera. Esa imagen destruye todas las embriagueces sagradas. Desmalezar los conceptos turbios."

O registro dessa reflexão da Pizarnik é precioso, e basta lembrar dos conflitos de Lenu, na Tetralogia Napolitana de Ferrante, para demonstrar o quanto essa questão segue atual e sem solução inconteste. De que modo uma mulher consegue conciliar seu trabalho artístico com as demandas sociais de uma vida doméstica? Como o papel de artista convive com o papel de esposa, de mãe? É possível exercê-los bem (segundo a expectativa individual) sem que um atrapalhe o outro? As ponderações de Pizarnik ainda podem ser consideradas um tanto mais extremas, visto que ela conjectura que até um mero relacionamento amoroso poderia desvirtuá-la dos estudos e da escrita. Recordei do exemplo de Natalia Ginzburg que, no ensaio "O meu ofício", assevera sem titubear: "E depois nasceram meus filhos e, de início, quando eles eram muito pequenos, eu não conseguia entender como era possível escrever tendo filhos. (...) As crianças me pareciam algo muito importante para que eu me desviasse atrás de estúpidas histórias e de estúpidas personagens embalsamadas."

Sempre que me deparo com essa discussão, recordo-me desta reveladora fala de Josélia Aguiar, concedida em entrevista ao canal Bondelê, a respeito de seu trabalho como curadora da Flip"Muitas autoras mulheres não viajam mesmo. Eu senti isso, percebi isso. (...) Eu entendi que em outras áreas (mesmo fora da literatura), de fato, as mulheres também pensam mais antes de tomar certas decisões que envolvam mudança na hierarquia, viagem para o exterior. (para elas) É mais difícil que a carreira seja tocada com decisões rápidas, porque elas já têm filhos; se mais velhas, têm netos. É o oposto quando você faz um convite para um homem. Eles sempre respondem mais rápido; vêm e topam. É mesmo uma questão cultural. Eles estão mais acostumados a se expor, têm mais segurança para falar. Eles ocupam esse lugar há muito mais tempo."


📔 "Conversaciones con mi madre. Hallo buena voluntad. Le muestro las reproducciones de Gauguin y Van Gogh. Le gustan. Sonríe ante los pechos descubiertos de las tahitianas. Acepta al arte y a los artistas, pero siempre que se den en otro planeta. Es decir, que no admite la posibilidad de mi realización literaria. ¡No! Son caprichos, vuelcos juveniles que ya pasarán cuando la experiencia nos traiga la expresión serena."

E a mãe de Pizarnik não aceitava muito bem as aspirações artísticas da filha. Disappointed, but not surprised®.


📔 "Un día, A. Cuadrado me dijo que cada vez que muere un poeta, lee o relee toda su obra. Espléndido homenaje."

Em entrevista ao podcast Expresso Ilustrada (Folha de São Paulo), Fernand Diamant, atual curadora da Flip, comenta (claramente pisando em ovos, coitada) que a escolha de Elizabeth Bishop como homenageada da Flip 2020 relacionou-se (dentre outras coisas) à sua convicção de que deveria escolher uma autora com a qual ela própria, Diamant, já tivesse uma pessoal história literária consolidada. Se entendi direito, Diamant só toparia homenagear uma autora de quem ela mesma fosse admiradora e de cuja obra ela fosse íntima. Assim que escutei o comentário, fiquei confusa. O ponto é que eu, numa hipotética curadoria, jamais escolheria um autor/autora que eu especialmente admiro para ser o/a "homenageado/a" de um evento desses, pois que raios de homenagem é essa? Ainda tomada pela vibe de meu último post-alinhavo, recorri ao dicionário para averiguar a definição da palavra "homenagem". O que significa homenagear alguém? Minha dúvida decorre da sensação de que a tal "homenagem" da Flip assemelha-se muito mais a um tribunal em que o acusado/acusada (mortinho/mortinha da silva) não tem direito a contraditório ou ampla defesa. Sei lá, ainda que não se trate disso e que eu esteja exagerando (seria só um espaço para a troca saudável de pontos de vistas distintos?), não consigo me desvencilhar de uma certa aversão à proposta de homenagear um escritor num evento literário. Creio que o amigo de Pizarnik encontrou a única notável maneira de se homenagear uma escritora querida: lendo sua obra. 

[Sobre a treta em si dessa Flip, bateu vontade de lacrar resgatar esta frase de Tolstói (o reacinha russo? rs):
"A responsabilidade é representada como maior ou menor conforme o maior ou menor conhecimento das condições em que se encontrava a pessoa cujo ato está em julgamento, conforme o maior ou menor intervalo de tempo entre a execução do ato e seu julgamento, e conforme a maior ou menor compreensão das causas do ato." ]


📔 "digo a Luisa que leo En busca del tiempo perdido. La distinguida estudiante de filosofía se ríe y me dice «el día que lo encuentres, ¡avisá!». (Merde! Merde! Merde!)"


📔 "Quisiera estar en un convento religioso (como santa Teresa). Tendría que haber conventos psicoanalíticos. (...) El doctor B. hablando de adquirir «elegancia psíquica»."

Convento psicanalítico?! nem f*endo eu iria para um troço desse, Pizarnik.

Adquirir elegância psíquica? Ah, dessa, eu já gostei. Onde vende?!! É no convento psicanalítico, né? Merda.

(Aos 19 anos, Pizarnik já se submetia à psicanálise, convicta de que padecia de grave neurose.)


📔  

"¡Emocionada! Acabo de ver en la televisión un maravilloso conjunto de ballet interpretando la 7.ª sinf. de Beethoven. Cada vez que aparecía el pequeño fauno, sentía extraños anhelos. Adoro el ballet. Adoro los cuerpos de los bailarines. Me gustan más los hombres. Es un éxtasis ver una foto de S. Lifar en maillot. Qué bien que está esa frase de Heine: «Donde mueren las palabras… comienza la música»."


📔 "Leo la Historia del surrealismo. Al llegar al capítulo dedicado al marxismo y a la situación social, económica, etc., de nuestra época, cierro violentamente el libro y lo guardo. Me horrorizo de mi falta de interés. ¡No puedo remediarlo! ¡Denme al Hombre, no a las masas!"

Xi, olha aí. Sigo cada vez mais desconfiada de que, se a Pizarnik fosse escolhida como homenageada da Flip, ela seria trucidada em mil pedacinhos pela galera literária que curte discutir as massas, num lugar aonde as massas não chegam. (tá, pronto; já parei. 😬)


📔 "Ya aprendí cabalmente que soy distinta de la mayoría de la gente. Que ellos piensan y yo no porque no puedo, porque me ocurre algo, porque estoy enferma. Sí. Estoy enferma. Me pregunto si a todos los neuróticos les ocurre lo mismo."

De minha parte, enquanto neurótica, digo que as coisas também funcionam mais ou menos assim, Pizarnik. 


📔 "De mis papeles. Algún día van a estar en el museo (de algún instituto psiquiátrico). A su lado habrá un cartel: Poemas de una enferma de diecinueve años. Imposibilidad de razonar. Nunca meditó. Jamás reflexionó. Ninguna vez pensó. Parece ser que es sensible. Propensión a considerarse genial. Agresiva. Acomplejada. Viciosa. No muerde."

Por vezes, a Pizarnik é cruel demais consigo mesma. "Nunca pensou ou refletiu"?! Poxa vida.

Contudo gostei dessa espécie de exercício de escrita criativa. Caso, em um futuro distante, os textos deste bloguito aportassem em um museu, o que estaria escrito na plaquinha de descrição da peça? Hum, deixe-me ver...: "Diário virtual de uma retardada social, considerado raro material da segunda década do século 21, época  na qual ninguém mais lia blogs. A leitura revela textos marcados por platitudes, piadas sem graça e perguntas que sequer triscam arremedos de resposta."


📔 "¡Adoro mi poesía! ¡Es la única que me gusta! Imitando la de Vallejo, en la que se nota mis influencias de la primera época (año 1930)."

É aquilo: primeiro ela bate, depois ela assopra. Numa entrada, a baixa autoestima/insegurança massacra; na outra, o ego/confiança assume as rédeas. 


📔 "Lloro. ¡Tengo tanto miedo! Cierro los ojos. Era necesario. ¡Quiero escribir! ¿Qué? Aún no sé… Necesito ordenar mis ideas. Lavar mi frivolidad, pues aún quedan restos. Por más tenaz que sea cada poema en asegurarme que no escribo bien, que no tengo condiciones para ello, persisto. Persisto pues es lo último que me queda. Persisto pues si no escribo, soy un ser reventado. Escribo por exigencia vital."

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