22/12/2019

Lendo Contos| O Aleph - Jorge Luis Borges / biografia de tadeo isidoro cruz (1829-74)

 (Editora Companhia das Letras / Tradução: Davi Arrigucci Jr.)

A poeta Aline Aimée, do ótimo canal (no You Tube) Chave de Leitura, disponibilizou resenhas em vídeo para cada um dos contos da coletânea O Aleph, de Jorge Luis Borges (link aqui). Aproveitando a chance de poder contar com alguém para enriquecer minha experiência de leitura, tentarei incluir postagens em resposta aos vídeos da Aimée. Um clube de leitura formado por duas leitoras, maaaaais ou menos. A sequência proposta para o post é a seguinte:

Leio o conto > Escrevo e registro minhas impressões gerais  >
> Assisto ao respectivo vídeo da Aline Aimée > Complemento as impressões com as novas informações e reflexões.


** RISCO DE SPOILERS **


[Impressões pessoais após a leitura do conto:]

Na coletânea de diálogos entre Borges e Osvaldo Ferrari, me deparei com esta fala do autor argentino acerca de esquecimento criativo e memória criativa:
"Ou seja, é o mesmo conto e eu vou ensaiando variações. Mas, talvez, a literatura universal seja uma série de variações sobre o mesmo tema, (...)"
                                                                                                       - Jorge Luis Borges

Borges reconhece que, em sua obra, ele costuma repetir o mesmo conceito sob diferentes formas. É ele quem está falando, hein, não sou eu. Incluí o comentário porque tomo o conto biografia de tadeo isidoro cruz (BTIC) como uma variação de temas presentes nos contos anteriores de O Aleph, já lidos e comentados por mim no blog. Em BTIC, ressurge de forma mais pronunciada (deduzo) sobretudo a ideia de eventos que se repetem de modo circular e do duplo (Tadeo Isidoro x Martín Fierro). Visto que groselhei o suficiente a respeito dessas temáticas nas postagens anteriores, aproveitarei o ensejo muito mais para sondar intrepidamente certos pontos da narrativa que me conduziram a correlações algo estapafúrdias (os acadêmicos que fiquem com a parte chata 😁).

*
Suponho que esta passagem destaca-se como forte candidata ao papel de chave principal da leitura:
"Qualquer destino, por longo e complicado que seja, consta na realidade de um único momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem é."
                                                                                                          - Jorge Luis Borges, BTIC.

Associando esse trecho à tríade* de principais e recorrentes questões borgianas conforme previamente comentada por Aimée, tendo a concluir que a noção de identidade é o foco de BTIC. (* = identidade, universo, tempo) Pra mim, pelo menos, é. Suspeito de que psicólogos e psicanalistas gozam um orgasmo literário (existe, né?) ao se depararem com a ousadia borgiana de afirmar que nossas histórias pessoais resumem-se simplesmente ao instante em que descobrimos quem somos. Isso deve apaziguar os ânimos daqueles que investem anos e anos de suas vidas em infinitas sessões de análise e terapia, no esforço hercúleo para descobrir quem são afinal. Se bem que o texto de Borges sinaliza que os livros, espie só, costumam guardar a solução desse grande enigma. Seria esse o próprio sentido da vida? Vai saber.

Em relação à ~vida real~, senti uma pitadinha de resistência para assimilar essa premissa de Borges; contudo, quando a extrapolei para a realidade ficcional, a apreensão de sua pertinência assentou de maneira mais fácil. Aproveitando que hoje não penso noutra coisa, senão no episódio IX de Star Wars, o último da nova trilogia (ele é tão ruim, que faz a curva e fica divertido), vale devanear que o único arco narrativo que me interessa no filme (= a díade da Força: Rey/Kylo Ben) se apoia fundamentalmente nesse ponto de BTIC; confere? Sinto-me tentada a teorizar que a essência de todas as grandes narrativas repousa em uma única fase da famigerada jornada do herói; aquela que, sozinha, basta para contar uma boa história: revelação e transformação. Uma particularidade um tanto paradoxal garante a diversão da teoria, dado que, nela, as personagens são confrontadas com suas verdadeiras identidades, a fim de transformarem-se naquilo que efetivamente já são (porém ainda não sabem etc). Transformar-se naquilo que se é... Que maluquice. Mas quem tem segurança para garantir que há incoerência nisso? Voltando a Star Wars: Kylo, após bendita epifania identitária ou, nas palavras de Borges, após o momento em que sabe para sempre quem é, abandona de vez o subterfúgio da máscara cafona e ~segue seu destino~. *Drama intensifies*

Também me peguei presa no emaranhado simbólico que essa chave interpretativa estabelece quando conectada à epígrafe escolhida por Borges para BTIC:

I'm looking for the face I had
Before the world was made.
- W. B. Yeats

Esses versos elevam a busca pela identidade a patamares ainda mais complexos, que me fascinam demais. A partir deles, conhecer a si mesmo apenas em termos psíquicos não mais garante contentamento. Com as palavras de Yeats, a parada alcança a metafísica, a transcendência; quiçá a cosmogonia! (haha) [Hum, A Paixão Segundo G.H. é uma narrativa que condensa essas duas chaves, não?]

Bom, essas duas chaves me trouxeram à memória o filme Os Olhos Sem Rosto (Les Yeux Sans Visage, Georges Franju - 1960), baseado no romance de Jean Redon. A metáfora encerrada na palavra "face", escolhida por Yeats (rimou?!), fez com que eu prontamente correlacionasse a descrição do instante de compreensão de Tadeu Isidoro Cruz àquele de Edna Grüber. Mesclando as duas narrativas (Borges + Redon/Franju), arrisco esta peripécia:
A moça, enquanto combatia na escuridão, começou a compreender. Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem toda mulher deve acatar o que traz dentro de si. Compreendeu que as divisas e o uniforme o que as cirurgias e o confinamento a estorvavam. Compreendeu seu íntimo destino de lobo pássaro livre, não de cão gregário pássaro engaiolado; compreendeu que o outro era ele quem ela era, e que já tinha um rosto. 

[Anexo: enquanto lia, de boas, a coletânea de poemas da Sophia de Mello Breyner Andresen, esbarrei com uma estrofe que, com somente três linhas, resume todo meu lero-lero:
Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.]

Por sinal, é curioso que essas compreensões ocorram durante a noite, e não de dia, via luz. Apelando ao Borges Babilônico (organização de Jorge Schwartz), percebi que a escolha parece amparar-se nas narrativas islâmicas; tendo sido lembrada de que "Entre os muçulmanos, a Noite do Poder (Laylat al-qadr) é a noite em que o Alcorão desceu do céu e se revelou a Maomé. Contam que, enquanto o Profeta do islã dormia em uma caverna no monte Hira, o anjo Gabriel o visitou e lhe disse que ele, Maomé, era o escolhido para receber e difundir pelo mundo a palavra de Alá." (- Dylan Frontana)

Ah, e, no fim das contas, Borges meio que facilita o trabalho dos biógrafos, né? Ora, segundo o raciocínio de BTIC, a escrita de uma biografia resume-se em narrar A noite do biografado. Aguardo a minha noite ansiosamente. Com sorte, ocorrerá através do próximo livro?

**
Por fim, há a presença do gaúcho simbolizado pelo duplo Isidoro Cruz-Martín Ferro (personagens originalmente criadas por José Hernández), entretanto, uma vez que acho esse papo chato (¯\_(ツ)_/¯), destaco somente que isso parece conceder relevância ao espaço em que vivemos, reconhecendo-o como um dos inevitáveis alicerces de nossas identidades. Osvaldo Ferrari, em uma de suas perguntas a Borges, menciona esta frase de Martinez Estrada que melhor explica o que contemplo: "(...) o espírito da terra, o que ele chamava o espírito do pampa, era o que conformava nossa substância, a substância da nossa personalidade".

Pronto; encerro minhas abobrinhas aqui. Bora ver o vídeo da Aimée. > LINK AQUI.


[Comentários pessoais pós-vídeo:]
Eita, banquei a palerma achando que o conto era só mais do mesmo, e muita coisa legal voou sobre minha cabeça. Bem feito, sabidona.

Montando uma listinha de destaques:
➭ Aimée alude à questão da equivalência dos destinos, confrontando-a à intervenção do acaso nos papéis que desempenhamos em vida (perseguidor/perseguido, heroi/traidor), e me impressionou um bocado que eu tenha ignorado essa palavra que aparece explicitamente no texto (identidade / personalidade, por sua vez, não aparecem). Pressinto que isso ocorreu porque não gosto dessa palavra — Destino — e prefiro não acreditar nela, possivelmente por temê-la.

O melhor, entretanto, é que ela acaba reforçando minha destemperada associação [Borges X Star Wars].

➭ Borges tomou emprestadas não apenas as personagens de José Hernández, mas inclusive trechos inteiros. Aimée diz que aquele lance do lobo x cão gregário, por exemplo, aparece igualzinho no poema épico de Hernández. Nesse sentido, ela chama atenção ao fato de que a citação de Coríntios (Bíblia), incluída por Borges no texto, se aplica àquilo que o próprio conto BTIC representa: "(...) num livro cuja matéria pode ser tudo para todos (1 Coríntios 9,22), pois é capaz de quase inesgotáveis repetições, versões, perversões."

➭ Levei tão a sério a assertiva de Borges de que a noite das compreensões era a única que importava, que nem me toquei de que há, na verdade, não uma, mas quatro noites críticas na vida de Isidoro Cruz. E na de Martín Fierro, claro.

➭ Também não notei conscientemente o espelhamento entre os detalhes que compõem as narrativas de Isidoro Cruz e Martín Fierro. E por falar em espelhar: o conto de Borges como espelho da obra de José Hernández (duplo).

➭ Contudo o espelhamento mais pitoresco, que me escapou completamente, é este: os gritos; sejam do pai, sejam do chajá. Pô, o déjà-vu de Isidoro Cruz é uma resposta ao grito do tal chajá! Que coisa.

*PAUSA*: qual é a aparência de um chajá? Como soa seu grito? Que bicho é esse?! YouTube, ajude aí:

 ➭ E curti esta classificação do conto: é um Mito de Origem.

- Mais uma vez, Aimée, muito obrigada!

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