06/01/2020

That girl needs therapy, purely psychosomatic

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Goethe x Adam Driver/Kylo Ren/Ben Solo?! Creio que me superei nessa. O ponto de partida dessa proeza é a coleção de olhares categoria fatality® que o senhor Adam Driver, no papel de Kylo Ren, manda pra cima da Rey, interpretada por Daisy Ridley. Queria mesmo era ter incluído aqui um gif de boa qualidade com os olhares dele na sequência final do Episódio IX (- que interpretação, senhor Motorista Adão; obrigada demais), porém, como esse precioso material permanece indisponível no estoque da internet, colei apenas duas olhadelas do Episódio VIII (há várias totalmente excelentes). Enquanto apreciadora de filmes que privilegiam expressões corporais e faciais de atores, em detrimento de diálogos (♪ no alarms and no surprises, siiiiilence ♩; Club Silencio etc), afirmo que a performance de Driver em Star Wars representa um case de sucesso a ser seguido pelos profissionais da área. Por sinal, com esse exemplo, constatei uma vez mais que um ator talentoso pode operar belos milagres à custa de fracos roteiros. Bonito ver.

Neste período em que padeço de nova exacerbação da Adam Driver Fever Syndrome, leio, pela primeira vez, o livro Os Sofrimentos do Jovem Werther (oportuno, hein?). Não finalizei a leitura, entretanto já acumulo assustadores indícios de que possivelmente eu seja a reencarnação do Werther no século XXI. Quanta coisa isso explicaria... Bom, dentre esses indícios, consta justamente o fato de que o mocinho Werther sabe do que eu falo, quando eu falo de olhares categoria fatality®. Mande aí por mim, Werther:
"Sim, seria preciso possuir o talento do maior poeta para traduzir a expressão dos seus gestos, a harmonia da sua voz e o fogo secreto de seu olhar. Não, nenhuma linguagem seria capaz de exprimir a ternura que anima seus olhos e suas atitudes. Tudo o que eu pudesse dizer seria grosseiro e rudimentar. (...)
Como a gente é criança! Quanto não creditamos a um simples olhar! Como a gente é criança!
 
                         - Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther (tradução: Marcelo Backes)
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Tive a feliz surpresa de encontrar, nos livros de Tokarczuk e Houellebecq, delicadas reverberações
do alinhavo que publiquei em 04/10/19 sobre a observação de animais.

Considerando-se o teor dos comentários a respeito de Houellebecq que eu havia previamente ouvido, confesso que jamais imaginei que Serotonina (minha primeira leitura do autor) teria um protagonista deprimido que alcança paz de espírito mediante a singela observação de vaquinhas. Especialmente aos críticos de plantão do escritor (😁), colo a tocante passagem:
"Fracassei na tentativa de desenvolver uma emoção estética real diante das paisagens alpinas, mas me afeiçoei às vacas, pois cruzava muitas vezes com um rebanho indo de um pasto para outro. (...) Amplas e majestosas, as vacas normandas eram, e a existência parecia ser mais que suficiente para elas; foi com essas vacas normandas que entendi porque os hindus consideravam sagrado esse animal. Durante os fins de semana solitários que passei em Clécy, dez minutos contemplando um rebanho dessas vacas entre os arbustos ao redor me bastaram para esquecer (...)."
                                        - Michel Houellebecq; Serotonina (tradução: Ari Roitman + Paulina Wacht)

Por sua vez, a fabulosa protagonista de Tokarczuk acessa (ou tenta) a realidade que se desvenda a partir da observação de morcegos. Trecho lindo, lindo:
"Tenho muita vontade de saber como os morcegos veem o mundo; queria, ao menos uma vez, sobrevoar o planalto em seu corpo. Como todos parecemos aqui embaixo quando somos vistos por seus sentidos? Como sombras? Ou um feixe de vibrações, fonte de ruído?
À noitinha me sentava diante da casa e esperava até que aparecessem, voando um por um desde a casa dos professores, visitando-nos em seguida. Acenava delicadamente, cumprimentando-os. Essencialmente, tinha muito em comum com eles-- eu também enxergava o mundo em outras frequências, às avessas. Eu também preferia o crepúsculo. Não prestava para viver ao sol."
                               - Olga Tokarczuk; Sobre os ossos dos mortos (tradução: Olga Baginska-Shinzato)

Além disso, é importante ressaltar que tanto a polonesa quanto o francês incluem, em suas respectivas narrativas, descrições de cenas de horror relacionadas à crueldade cometida contra animais em fábricas de produção em massa: Tokarczuk escolhe casacos de pele de raposa; Houellebecq, uma nefasta granja.

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Visto que a ilustração na capa do livro da Rooney antecipa uma possível história de amor, avaliei que, antes de lê-lo, seria prudente me precaver e calcular bem os riscos. Somando 1= a Rooney é ovacionada como porta-voz dos millennials + 1= a internet garante que millennials não transam (links: x, x, x), cheguei à conclusão =2: Normal People não será gatilho pra mim, pobre vítima do celibato involuntário. Ah, a ingenuidade da leitora. Eis que transcorreram-se três meses desde o término da leitura, e eu permaneço #triggered! (😁) Por quê? Ora, porque o casal concebido por Rooney transa todo dia, toda hora. Os dois são pau pra toda obra (*trocadilho não intencional; acho). Ainda que a moça do livro demonstre um gosto por práticas masoquistas que não parece ser daquele tipo divertido; no geral, eu diria que sexo não é um problema na vida dos dois protagonistas de Normal People. Já a comunicação... Connell e Marianne convivem por cerca de uma década (esquema ioiô), no entanto praticamente se desconhecem.

Serotonina, um dos consolos literários ao qual apelei posteriormente, cumpre seu papel ao me apresentar um Gen-X fracassado na, digamos, seara amorosa. O alinhavo com o livro da Rooney surge em decorrência da fascinante (e cômica? sei lá) teoria do protagonista de Houellebecq a respeito do sexo: sexo é a solução para todos nossos problemas. Pelo menos, é o que o cara diz:
"(...) vão me acusar de dar uma importância excessiva ao sexo; não concordo. (...) a passagem pelo sexo, e por um sexo intenso, continua sendo obrigatória para que ocorra a fusão amorosa, nada pode acontecer sem ele (...) Poderia ter informado, com mais pertinência, que os dois já não transavam e que era este o núcleo do problema, (...) e Aymeric sabia, com sexo tudo pode ser solucionado, sem sexo nada tem mais jeito (...)"
                                        - Michel Houellebecq; Serotonina (tradução: Ari Roitman + Paulina Wacht)

Portanto este é o imbróglio no qual me meti:
- de um lado, uma autora millennial bola um casal djóvem dos anos 2000 que, embora altamente transante, não se comunica e se trumbica (entreguei minha geração?);
- do outro lado, um autor gen-x bola um protagonista quarentão que, em meio à disfunção erétil + prejuízo da libido provocadas por antidepressivo, defende que não há neurose conjugal que não possa ser resolvida com sexo;
- e a cerejinha no topo é a constatação de que, com transa ou sem transa, todas essas personagens estão na merda.

Não sei sair dessa. Talvez caiba o chatão discurso vazio "trata-se de achar o meio-termo: transar e conversar na medida", ou então a lógica "todo casal feliz transa, mas nem todo casal que transa é feliz". De todo jeito, essa conexão que se estabelece entre as narrativas desses dois autores ficou bem engraçada, sobretudo porque o livro do Houellebecq discute bastante  (de modo não explícito) as oposições entre gerações (apesar de destacar Boomers & Gen-X).

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Já que, aparentemente, transantes e não transantes estão mentalmente lascados, buscando respostas nos animais e recaindo em comportamentos infantis ao receber qualquer olhadinha algo ~diferenciada~, resta o quê? Apelar pra remedinhos e terapia? Não sei, mas a atual onda de livros (e séries?) protagonizados por pessoas se agarrando nessas boias sugere que essa é a leitura que os autores contemporâneos têm feito da realidade. Visto que o universo por onde circulo é menor do que uma bolinha de gude, não me atrevo a contribuir com análises generalizantes, contudo ousarei contribuir com uma versão editada de minha experiência — afinal, isto é um blog e, conforme bem coloca a protagonista de Houellebecq; "(...) voltemos ao meu tema, que sou eu mesmo, não que seja especialmente interessante, mas é o meu tema."

Em Dependency, terceiro livro da Trilogia Copenhagen escrita pela dinamarquesa Tove Ditlevsen, fui apresentada a Geert Jørgensen, um psiquiatra que eu adoraria chamar de meu, dado o tanto que ele se aproxima de uma verdadeira fada madrinha da vida real. Explico:👉 Na cena 01, a jovem personagem Tove (o livro funciona como autobiografia) está super ansiosa porque não sabe o que fazer a respeito de seu casamento. Embora estivesse interessada em outro homem, ela não consegue encontrar coragem para pedir divórcio, pois sente-se, em certa medida, endividada com o marido, um editor bem mais velho que a ajudara a alavancar sua carreira de escritora. Então, certo dia ela queixa-se de não estar se sentindo bem, possível problema cardíaco, e o marido diz que deve ser mera ansiedade, daí agenda-lhe uma consulta com o Dr. Jørgensen. Depois que Tove expõe tudo que a aflige, qual é a conduta do grande psiquiatra? De saída, ele confirma que encontrar-se dividida entre dois homens é de fato uma situação interessante e declara que Tove tem mais é que se divorciar, pois aquele casamento dela não faz o menor sentido. Ele explica que a encaminharia para um sanatório (calma, tá tudo bem), no qual Tove permaneceria relaxando durante o tempinho necessário para que ele, Jørgensen, resolvesse as coisas para ela do lado de fora. Bicho, quando a Tove sai da clínica, ela só precisa assinar a papelada do divórcio, e sem que pra isso tenha trocado um "ai" com o esposo. Puxa, um psiquiatra que não apenas lhe diz o que fazer, como o faz por você! O cara atende a prece da Fleabag* ( = "-Tell me what to do!") e ainda dobra a meta! UÁÁÁÁÁÁÁ Nem para aí, pois na cena 02 a fada madrinha Jørgensen salva Tove de um assombroso relacionamento tóxico® e abusivo® → não darei spoilers, mas asseguro que esses adjetivos repetidos ad infinitum pela galera da internet se aplicam demais ao caso desse livro, quase literalmente até. (*= a propósito: outra millennial transante que está na merda.)

Essa história de Dependency ocorre na década de 40, outros tempos etc.; obviamente estou ciente de que não posso esperar que um psiquiatra resolva meus problemas por mim. No livro da Rooney, por exemplo, a psicóloga manda a real do que Connell poderia esperar do processo: 
"O que podemos fazer aqui na terapia é tentar trabalhar seus sentimentos, pensamentos e comportamentos. Nós não podemos mudar suas circunstâncias, porém podemos mudar o modo como você responde às suas circunstâncias. Entende o que quero dizer?"
                                                                  - Sally Rooney, Normal People (tradução tabajara: minha)

A despeito dessa consciência, é difícil abandonar o desvairado anseio de que o profissional me arrume as coisas, e possivelmente essa é uma das razões por que hoje tenho de incluir um "ex-" na frente da palavra "terapeuta". Aliás, Serotonina me fez recordar um papo curioso que tive com ela numas das sessões. O narrador de Houellebecq comenta a original ideia, tida pelos donos de uma cafeteria, de adotar a expressão happy hour traduzida pro francês = heures hereuses. Já pensou se aprontássemos o mesmo por aqui? "Aê, galera, partiu pra happy hour pras horas felizes"? Aposto que, se a gente usasse essa tradução no dia a dia, eu não precisaria ter explicado à ex-terapeuta porque uma sessão de terapia às 20h de uma sexta-feira (quando os "normal people" estão na happy hour) me faz sentir ainda mais "anormal". Ah, e nem preciso acrescentar que, assim que a lamúria saiu da minha boca, me toquei de que a própria terapeuta ouvia uma neurótica falar groselha às 20h de uma sexta-feira da vida dela, né? O legal é que, na sessão seguinte, a primeira coisa que ela me fala é que, durante toda aquela semana, ela esteve pensando no meu comentário relacionado às tais horas felizes. Quer dizer: ¯\_(ツ)_/¯. Heures hereuses? Qu'est que c'est?

Na hora de dar adeus à terapeuta, invoquei a alegoria do tabagista, dizendo-lhe com ares de fingida sapiência que, enquanto o próprio fumante não deseja efetivamente parar de fumar, qualquer tratamento para largar o vício esta fadado ao fracasso. A obra da Tokarczuk, por seu turno, me alertou que talvez uma outra alegoria tivesse sido mais apropriada à minha situação. Inclusive, com a leitura do Lendo Tchekov, ótimo livro escrito pela Janet Malcolm, descobri que, no conto Kachtanka, o contista russo também já havia narrado a mesma parábola sobre alienação (termo adotado pela Malcolm) que aparece em Sobre os ossos dos mortos. Refiro-me àquela do cãozinho que, após salvo de uma situação de maus-tratos, abandona o novo lar para retornar ao mau dono.
"Depois olhou pra mim com tristeza -- posso dizer com sinceridade que mirou meus olhos profundamente -- e correu às pressas para a casa de Pé Grande.
Foi assim que a cadela voltou para a sua prisão." 
                               - Olga Tokarczuk; Sobre os ossos dos mortos (tradução: Olga Baginska-Shinzato)

É, suponho que meu hasta la vista, baby foi assim. Olhei a terapeuta com olhos de desculpas e voltei para a ordinária realidade que conheço bem e à qual já me habituei (é, e ela responderia que, se eu tivesse realmente me habituado, eu não a teria procurado. e depois diria que eu continuo querendo adivinhar o que ela está pensando. E depois, e depois, e depois...). Hum, taí, quem sabe a senhora Dusheiko não possa me ajudar? Astrologia, aqui vou eu!

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Estava prestes a passar a régua nesta postagem, quando me veio à memória The Sex has made me stupid, da Robots in Disguise, música que ouvi pra caramba durante a época em que ocorre a história narrada por Rooney. Trago-a pra cá, pois é perfeita para encerrar a primeira bobajada deste blog em 2020. Bora dançar, observar animais e suspirar com os olhares (e dotes vocais, é bom lembrar) do Adam Driver. E se não rolar transa, basta acionar o Doctor Manhattan Dildo®. 🎇Feliz ano novo!🎇