03/03/2020

Immerse your soul in love #01 (Intro)

Era uma vez... Um príncipe e uma princesa que, perdidamente apaixonados, casaram-se e viveram felizes para sempre? Pff, claro que não. Era uma vez um amável final de semana cujo sentido ainda está por vir. Essa história pode ser contada a partir das entradas do diário de nossa heroína.


Sábado de manhã
Ao retomar a leitura da coletânea de contos do Tchekov, me deparei com um conto intitulado "Do amor". Prontamente escapou da minha boca um "eita, isso não vai dar certo", pois sei que as histórias de amor escritas pelo contista russo não são, digamos assim, dignas de comédias românticas hollywoodianas. Não; em matéria de amor, os contos de Tchekov matam na unha — ou com uma torta na cara. 

Logo na primeira página, tive uma surpresa:
"- Até hoje, sobre o amor, só foi dita uma única verdade indiscutível, a saber: que "grande é o seu mistério",
(...)
- Nós, russos respeitáveis, nutrimos uma predileção por estas questões que permanecem sem solução." 
                                        
 
                                                                                - Do Amor, Tchekov (Tradução: Tatiana Belinky)

Com essa leve rasteira, Tchekov me arrancou um sorrisinho maroto e fez desabar a guarda erguida com esmero. Daí, quando me dei conta, eu tinha sido trucidada por uma narrativa sobre o amor, construída a partir do não dito — gestos, olhares. No arremate apoteótico do conto, o mocinho corre para se despedir da amada no vagão de trem que a levará pra longe & pra sempre e, ainda que o casal nunca tivesse trocado uma única palavra sobre seus sentimentos até aquele instante (os dois sempre muito formais e socialmente irrepreensíveis, sobretudo porque a mulher era casada), é isto que acontece:
"Quando, ali na cabina, os nossos olhos se encontraram, as forças espirituais abandonaram-nos a ambos, eu a tomei nos braços, ela apertou o rosto contra meu peito, e as lágrimas correram dos seus olhos; (...)"
                                                                                   - Do Amor, Tchekov (Tradução: Tatiana Belinky)

Sendo discípula de Anna Akhmátova, entrei nesse conto com a partida já perdida.
     
     E, no entanto, meu coração nunca esquecera
     quem deu a própria vida por um único olhar.
                                 
                                                       — Anna Akhmátova

Sábado à tarde
Retornou-me à memória uma outra cena de amantes se despedindo numa estação de trem; especificamente aquela incluída na novelinha turca (vejo, não nego, etc. ®) a qual assistira na Netflix uns anos atrás. Bateu vontade de rever alguns episódios, e em consequência uma familiar pulguinha reapareceu atrás da minha orelha; por sinal uma pulga que sussurra nos ouvidos mistérios relacionados a determinados olhares dos quais - aprendi com a leitura da manhã - Tchekov manja bem.

A história de amor em Kurt Seyit ve Şura é daquelas que desanda de um jeito pavoroso, tal qual o meme "os dois a 80km/h" e a tal ponto que o "antes e depois" dos olhares do mocinho pra mocinha é este:


Como é possível? Que dinâmica é essa; segundo a qual um rapaz então super apaixonado por uma moça pode, após o mísero intervalo de alguns anos, olhá-la com o evidente desejo de agarrá-la pela cabeça e arremessá-la contra a parede? Suponho que os russos estejam realmente corretos: amor, como é grande seu mistério. A menos que... Sim!; pois, se o amor é um mistério, como posso garantir que essa novela turca é uma história de amor?

Sábado à noite
Dado o perfil das histórias que marcaram meu dia, é justo que o título A Man in Love tenha me saltado aos olhos, no instante em que espiei o índice do meu novo livro de contos da Leonora Carrington.

Logo no início da leitura, fiquei abobalhada com um elemento compartilhado pelas narrativas de Tchekov (Do Amor) e Carrington (A Man in Love): os respectivos protagonistas (e narradores) são homens apaixonados tomados pela premente necessidade de contar as histórias de amor que viveram. O autor russo escreveu "Parecia que ele queria contar alguma coisa.", enquanto a autora inglesa escolheu "I want to talk, I want to tell my story." Não é curioso?

O conto de Carrington me lembrou demais o segundo episódio da primeira temporada da série de TV Hannibal, no qual o assassino da vez enterra as vítimas vivas (não me pergunte), a fim de servirem de adubo para uma plantação de cogumelos (repito: é inútil me perguntar). Em A Man in Love, a amada do narrador encontra-se deitada numa cama, sem se mexer, falar ou comer há 40 anos; de modo que o cara não sabe se a mulher está viva ou morta, especialmente porque o corpo permanece quente - o homem até choca uns ovos sob o corpo dela. Quando a ouvinte da história bate o olho na sujeita largada na cama, ela sugere ao leitor que ali jaz uma defunta. O narrador do causo, na dúvida, diz que rega diariamente a graminha que brota por todo o leito onde repousa a amada. Maluco & Macabro? Bom, no universo surreal da Carrington, as coisas (des-?)funcionam desse jeito mesmo; tudo normal. Acrescento apenas que aquele singelo panfletinho de rua, que certa vez cruzara meu caminho ("O amor tem que ser que nem Ipê, florecer toda vez que parecer morrer), adquiriu novos significados (nem tão singelos), depois dessa narrativa da Carrington. Se panz, melhorou demais a qualidade do panfleto.

*

                                                                  
 - Chimamanda Ngozi Adichie (falando sobre Americanah)

Domingo de manhã
Dia de ver o filme novo do Adam Driver na Netflix. (Não curto muito o diretor, maaaas:) Yay! 

2 horas e 17 minutos depois, esta cena permaneceu aporrinhando meu juízo:

Em menos de 24 horas, tive de encarar a reprise daquele olhar tenebroso (versão "depois") do protagonista turco; dessa vez, no entanto, acompanhado da verbalização de seu significado: quero que você morra! Beleza. Se a Scarlett morrer, o Adam regará o leito dela por quarenta anos, assim como fez o protagonista da Carrington? E é sempre o homem que, em dado ponto da relação, comporta-se dessa maneira, é? Sei, sei. Digo, não sei merda nenhuma. Apelei para entrevistas do Noah Baumbach no You Tube (sobretudo por conta dos sabidos elementos autobiográficos), e o camarada está afirmando que o filme é uma história de amor contada a partir da narrativa do divórcio. Ao mesmo tempo que compreendo a proposta, não consigo apaziguar o desassossego que ela provoca.

Domingo à tarde
Assisti ao filme Cold War (Pawel Pawlikowski, 2018), crente que era apenas mais um filminho sobre a Guerra Fria. Que tonta. Na real, é uma história de amor (?) em que o casal vive o dilema "ruim juntos, pior separados", o qual é levado às últimas consequências. O amor precisa ser tão complicado? O excesso de complicação pode ser usado como critério de exclusão para diagnóstico de amor? 

No mais, o filme firmou diálogo com aquele conto da Carrington. Explico. Antes de cair no estado de morta-viva/viva-morta, a mocinha de A Man in Love declamara ao amado "I love you so much I live only for you", enquanto a protagonista polonesa de Cold War promete ao amante algo bastante próximo:


Percebo que os romances do fim de semana estabeleceram um outro paralelo sinistro. De um lado, homens "apaixonados" (pero no mucho más) querem que a amada morra; do outro, mulheres apaixonadas fazem juras de viver e morrer pelos respectivos amados. Inegavelmente rola aí uma harmonização de intenções; porém, se amar for isso, náh, acho que prefiro ficar fora da brincadeira. Acho. Pô, eu seria a parte que morre na história! Eu hein.

Domingo à noite
Assisti ao penúltimo episódio da série Watchmen. Perto do final, após Angela dizer que não começaria um relacionamento sabidamente fadado à desgraceira, o Azulão a confronta com esta pergunta:


Hum, os romances ficcionais que cruzaram meu caminho neste fim de semana de fato acabaram +- em tragédia; mas por que todo relacionamento ficcional precisa terminar em tragédia, meu deus? E, depois da tragédia, parece que sobra uma doce memória que fomentará uma história da carochinha pra contar, conforme sugerido pelos contos de Tchekov e Carrington. Ah, e uma historinha contada pelos homens, já que as mulheres morrem no final. (Agora me pergunto: e casais gays? Sei mais nada.)

P.S.: mas então todas as obras do Lindelof falam de amor? Sei que The Leftovers (melhor série, forever and ever, amen) é uma delicada história de amor, e Watchmen agora sinaliza seguir o mesmo caminho. Daí Lost, no frigir das fumaças negras e ursos polares de ilhas tropicais, é mesmo uma história sobre o amor, né? Caramba, hein. Bem que a Chimamanda disse: toda literatura (eu: - ficção) é sobre o amor. 

- Lindelof, meu caro, eu nunca falei mal do final de Lost. [*Narrador em off*: - a safada mente] Se depender de mim, sua carreira continuará gloriosa.


Por ora, a história termina aqui. Com sorte, algum sentido será revelado nos próximos capítulos, mediante ajuda de um punhado de livros selecionados para compor a pilha Immerse your Soul in Love.
Até um *possível* próximo post desta série.