✒ Texto sinalizado com [📔], em verde + itálico = entradas originais de Alejandra Pizarnik.
Cuaderno de Agosto de 1955
📔 "En una biblioteca pública. Acabo de hallar cuatro libros magníficos. Huelen a polvo y a magia. Adoro las viejas librerías. Lo que me deja consternada es la fecha de la impresión de los libros: Pensamientos de Pascal (1927). Diálogos de Leopardi (1931). Dostoievski por André Gide (1935)… Es decir: ¡antes de mi nacimiento! ¡Cuando estaba en la nada!"
Data da primeira edição de um livro, na ficha catalográfica, fazendo as vezes de memento mori? Nunca tinha pensado nisso e não me livrarei da associação. Lembro de ter sentido sensação parecida à descrita por Pizarnik quando me vi diante da linha temporal do cosmos, apresentada por Neil deGrasse Tyson. É o tipo de imagem que coloca uma pessoa em seu devido lugar.
No livro As Lembranças do Porvir (li recentemente), escrito pela mexicana Elena Garro, há uma alusão similar a essa premissa, quando o narrador diz que, para Martín Moncada, era assombroso que seus pais, personagens enigmáticos, não estivessem estado sempre no mundo. (Tradução: Iara Tizzot) É, a criança Moncada se surpreendia com a mortalidade dos pais. Numa página adiante, porém, As Lembranças do Porvir complicou-me os pensamentos com a frase "(...) a morte é o momento precioso em que o homem recupera plenamente sua outra memória." E se apenas esqueci que perambulava pelo mundo quando, digamos, Pizarnik escrevia os diários que hoje leio?
📔 "Leo el diálogo entre «la naturaleza y el alma» de Leopardi. ¡Este hombre es un descubrimiento para mí! Me identifico totalmente con él. Y me rebelo con él. Siempre es el mismo interrogante:
(...)
Un cruel espejismo me obliga a hallarle facciones humanas (à uma almofada com aspecto de flor, verde e roxa). (Recuerdo ese diálogo entre la Tierra y la luna, de Leopardi. La luna se siente ofendida porque los humanos le encuentran o proyectan facciones como las que ellos tienen; se ofende pues lo ve egoísta.)"
Em 2018, uma matéria no site Aeon me apresentou a Giacomo Leopardi e, naquela ocasião, fiquei tão fascinada com o que Tim Parks escreve sobre o autor, que prontamente adquiri no sebo uma edição do Ópusculos Morais (Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1992). Saltando para 2020, descubro que Pizarnik curtia a obra do filósofo e poeta italiano. Que conexão incrível. Após tanto tempo esquecido na estante, finalmente resgatei o livro de Leopardi da poeira (leitura em curso).
O Diálogo da Terra e da Lua, citado por Pizarnik, transcorre conforme a autora o descreve; quer dizer, um papo em que a Lua se aborrece porque a Terra só consegue imaginar uma realidade lunar a partir dos elementos que constroem a realidade humana. Incluo um trecho da bronca que a Lua dá na Terra (tradução: Vilma De Katinszky Barreto de Souza): "Na verdade tu me parece pior do que uma néscia, em pensar que todas as coisas em qualquer parte do mundo sejam semelhantes às tuas, como se a Natureza tivesse tido a intenção de copiar-te, ponto a ponto, em todos os lugares. Eu digo que sou habitada e tu daí concluis que os meus habitantes devem ser homens. Advirto que não são e tu, concordando que sejam outras criaturas, não duvides que tenham as mesmas qualidades e os mesmos problemas dos teus povos, (...)". No texto de apresentação da minha edição de Opúsculos Morais, Carmelo Distante explica que a obra de Leopardi com frequência aborda a relação do homem com a Natureza, criticando a presunção humana de supor que tudo existe para seu uso e consumo, ou mesmo alertando que a humanidade não tem nenhum privilégio em relação a outros animais. Ou seja, Leopardi também se empenhava em colocar o ser humano em seu devido lugar. O que Pizarnik não inclui na entrada é que a Lua admite, sim, ter algo em comum com a Terra: a infelicidade. Aliás, a infelicidade seria compartilhada não somente pela Terra e a Lua, mas por todo o Universo. Conforme escreveu Carmelo Distante na introdução, certos diálogos de Leopardi "(...) arrastam consigo o leitor à contemplação da infelicidade universal, da qual nada e ninguém pode escapar." Sem dúvida, é uma revigorante leitura para um domingo à tarde.
No mais, acrescentaria a contribuição que o autor italiano provavelmente traria à conversa da entrada anterior sobre a mortalidade humana. Na introdução do livro, é dito que Leopardi seguia uma concepção materialista do nascimento e da morte, segundo a qual somente a matéria que jamais teve princípio e jamais terá fim é imortal. Por outro lado, no Diálogo da Natureza e uma Alma (também mencionado por Pizarnik na entrada), a Natureza tenta acalmar os ânimos da Alma temente da infelicidade em vida mediante a lembrança de uma teórica mortalidade vinculada à glória post mortem. A Natureza explica à Alma que, tal qual ocorreu com Camões e Milton, após a morte ela poderá ser celebrada e elevada aos céus pelos homens de bom senso, e os fatos da sua vida transmitidos com grande esforço através da memória; por último todo o mundo civilizado estará repleto de seu nome. A Alma, certa de que a peculiar mortalidade não a proporcionará qualquer utilidade ou alegria no período post mortem, pede para trocá-la pelo nascimento na forma do mais imperfeito ser bruto e pela morte acelerada; tudo para reduzir o sofrimento em vida.
📔 "Simpatizamos enseguida. A veces me extraño de las simpatías que inspiro. ¿Cómo es posible?"
Pizarnik se pergunta como alguém pode simpatizar com ela, e infelizmente me identifico com esse sentimento, o qual pode levar um indivíduo a abraçar com vigor o eremitismo. Dia desses li um conto super engraçado da Lydia Davis, intitulado Kafka Cooks Dinner, no qual um cara (o próprio Kafka?) tenta superar a ansiedade provocada pelo jantar que cozinhará para uma garota. No meio das ruminações, o cozinheiro kafkiano solta esta lamúria digna daquela de Pizarnik: "She would have been so much happier dining with another man."/ "Ela teria sido tão mais feliz jantando com outro cara." Tive dó, mas ri um bocado.
📔 "17h: Me voy. Reviso los libros de los puestos del Cabildo. Compro cuatro. 17.30: Cruzo a la biblioteca. 18: Al café Bolívar. Leo. (Siento paz, mucha paz.) Entra una compañera."
Um dia na vida de Pizarnik: revisar livros, comprar quatro livros, cruzar a biblioteca, ir para um café, ler, encontrar-se com um amigo e sentir paz. Logo se vê que ela e Patti Smith poderiam ter sido boas amigas.
📔 "En el Atelier había dos cuadritos confeccionados por los indios del Brasil. Los materiales empleados eran puramente naturales: alas de mariposas, plumas de diversas aves, raíces secas de algunas plantitas y semillas ajadas. Representaban paisajes de la selva. El colorido tenía un exotismo maravilloso. Sentí deseos de poseerlos."
O Brasil nas páginas do diário de Pizarnik! Aproveitei para pesquisar artes indígenas brasileiras, acerca das quais sei tão pouco (vexame), porém não consegui localizar nada semelhante à obra descrita pela autora.
📔 "Despierto angustiada después de una noche llena de sueños desagradables y fantasías voluptuosas. Todo esto me indica hasta qué punto no acepto enfrentar la realidad del «medio». Sólo me consuela pensar en el material literario que puedo obtener de estas veleidades de mi cerebro. Pero también está la sensación de pérdida de energía de la imaginación."
Pizarnik espera que os sonhos desagradáveis possam servir-lhe de material literário, mas teme que a façam perder a imaginação. Recordei uma breve frase de Borges que talvez ajude esclarecer isso: "Os sonhos são um trabalho da memória, a imaginação é um ato da memória, um ato criador da memória." Afirmar que Sonhos e Imaginação estariam indissoluvelmente conectados pela Memória me faria cair no golpe da falácia lógica?
📔 "en la librería P. estuve mirando un número de la Revista de Psicoanálisis. Había un artículo sobre la creación literaria de M. Spira. Sí. Diana, una paciente, escribe un poema (bastante bueno) y a M. Spira no se le ocurre hacer nada mejor que cortarlo en trocitos y decir «Es un ojo éste, aquél, una frente ésta, aquélla», que en lenguaje profesional viene a ser: este verso se refiere a una transferencia X, aquél a un sentimiento de culpa por el hermano. ¡Y sigue así! Mon dieu! Mon dieu! ¿Y qué me da para vivir saber que Vallejo haya sido neurótico, que Leopardi fue leptosomático, que Van Gogh estuvo internado? ¡Nada! ¡Nada! Destrozo mi frente. Arte puro. (Las señoras elegantes de la revista Sur. esas señoras, ¿hubiesen recibido a Van Gogh en sus reuniones?)"
Quando aparecem por aí, tais reduções psicanalíticas de uma obra artística também me despertam certa preguiça. No entanto, a partir do pouco que li sobre o assunto, me parece que hoje há correntes que não mais estabelecem relações assim tão tacanhas entre arte e psicanálise, nos termos criticados por Pizarnik. Resgatei uma breve citação de Tania Rivera (Livro Arte e Psicanálise) que toca sucintamente nessa questão: "É uma preocupação bem diferente com o conteúdo das obras que leva alguns autores a usarem — de forma um pouco ligeira, às vezes — noções psicanalíticas para traçar comentários de um determinado trabalho, ou ainda relacioná-lo à vida de seu autor (...). O pressuposto de que há uma relação direta entre uma vida e uma determinada obra talvez seja sempre fácil de ser confirmado, e isso se deve à maleabilidade e multiplicidade inerente a toda interpretação. No texto lido por Anna Freud na cerimônia de entrega do Prêmio Goethe da cidade de Frankfurt em 1930, que Freud recebeu tanto pelo valor científico quanto pelo alcance literário de sua obra, este declara existir entre a vida e a obra de um grande homem uma rica rede a ser tecida através da interpretação. Essa perspectiva simplifica ao extremo, porém, as múltiplas questões levantadas pela criação artística, tanto em seus aspectos histórico-sociais quanto em seus aspectos psíquicos."
📔 "Del Diario de Katherine Mansfield: «La vida no parece más que arena y serrín».
(...) Observan el libro que llevan mis manos: Diario de K. Mansfield. D. no la conoce. Me extraño. G. sabe de su vida, adaptándola en dos segundos a un proceso psicoanalítico que transforma el título del libro: Diario de una neurótica, por K. Mansfield."
Pizarnik registra o que aparenta ser outro exemplo concreto de redução psicanalítica de uma obra.
Dia desses, li um livro atraída pelo seguinte belo título: "Dear friend, from my life I write to you, in your life."/ Querida amiga, de minha vida escrevo para você, em sua vida." Durante a respectiva leitura, me surpreendi quando a autora, a chinesa Yiyun Li, refere que o título que me encantou é, na verdade, uma frase extraída do diário de Katherine Mansfield. A respeito da frase, Li comenta (tradução minha): "Chorei quando li essa frase. Ela me lembra do garoto que anos atrás não parava de escrever relatos de seus sonhos em cartas. Ela também me faz perceber por que não quero parar de escrever. Os livros que escrevemos - passado, presente e futuro - não estão tentando dizer a mesma coisa: "Querida amiga, de minha vida escrevo para você, em sua vida"? Que longo é o caminho de uma vida para outra, mas por que escrever, senão por essa distância (...)? A mim, isso basta para que eu rejeite a redução do diário de K. Mansfield ao mero diário de uma neurótica, assim como jamais o faria em relação ao diário de Pizarnik.
📔 "Que hoy conocí a un compañero, D. Martínez, que tiene la libretita de teléfonos llena de nombres grandes: Borges, Mallea, V. Ocampo, etc. D. M. es poeta. Ni grande ni pequeño. Hace años que lucha por imponerse y lo ha conseguido. Pero hay en todo esto un fondo de suciedad que me azquea [sic]. Algo que no puedo superar. No puedo admitir que mi relación cordial con Vicente Barbieri sea un puente para llegar a relacionarme con otros y luego otros y luego vendrá la consagración y la codiciada libretita telefónica. Se me ocurre que debo tener una concepción del artista un tanto retrógada. Que ya no hay lugar para el solitario, neurótico y bohemio artista (romántico). Que ahora un artista es un ser sociable y reflexivo como cualquiera que no lo es."
Esse lance de networking é um troço muito embaraçoso e entendo o desconforto de Pizarnik. Fiquei pensando no que seria da poeta, caso estivesse viva hoje, vendo-se obrigada a bater ponto nas redes sociais e a interagir assiduamente com o público e com "a galera que importa", a fim de abrir espaço para seu trabalho artístico. Monetização das relações sociais. Que triste. Por outro lado, suponho que existam redes de contatos profissionais um bocadinho mais saudáveis, baseadas em compatibilidades genuínas e na promoção do crescimento mútuo. Sonho de tola?
📔 "Hablé de mis tentativas literarias. Siempre las haré, pero nunca llegarán al acto. No escribiré nunca nada bueno, pues no soy genial. No quiero ser talentosa, ni inteligente ni estudiosa. ¡Quiero ser un genio! ¡Pero no lo soy! Entonces ¿qué? Nada. Alejandra, ¡nada! (...) que me quite esta sensación de fracaso literario que no soporto.
Hay mujeres locas y mujeres de talento, pero ninguna tiene esa locura del talento que se llama genio.
SIMONE DE BEAUVOIR"
Numa das entrevistas concedidas para promover Adoráveis Mulheres, a diretora Greta Gerwig diz que sua frase favorita do filme (e do livro escrito por May Alcott) é aquela dita pela personagem Amy, interpretada pela talentosa Florence Pugh:
"Quero ser genial ou nada!". A resposta da Gerwig me atraiu porque, quando eu assisti ao filme, a carapuça da fala me serviu direitinho. Basta fechar os olhos e aguçar os ouvidos, para que eu escute minha versão jovem vociferar palavras similares àquelas de Amy. O resultado? Ah, sim, virei nada. ¯\_(ツ)_/¯ Será que toda jovem passa pela fase de aspirar à genialidade? Em princípio, acho essa ambição saudável e essencial para viabilizar a realização de um projeto sonhado para a vida. No caso da Pizarnik de 19 anos (1955), esse sentimento era intenso, uma vez que ser estudiosa, inteligente e talentosa não a contentariam.
Na continuidade desse devaneio, eu estava prestes a questionar se também não seria benéfico ter em mente que a poucos resta o papel de gênio e que o "nada" (que sequer é nada, exatamente) é uma possibilidade real para a maioria (visando amenizar uma decepção futura, sabe?); entretanto aquela citação de Beauvoir, inserida por Pizarnik na entrada, me salvou de mais essa vergonha. Para entender melhor o contexto e o sentido do enunciado, pesquei da estante O Segundo Sexo (nunca li) e, durante a leitura da passagem, tomei uma bofetada tão certeira na cara, que está latejando até agora. A respectiva citação faz parte do segundo volume, quarta parte, capítulo intitulado A Mulher Independente; e sua tradução para o português é a seguinte (tradutor: Sérgio Milliet): "Há mulheres loucas e mulheres de talento: nenhuma tem essa loucura no talento, que chamam gênio." Assim isolada do texto, a frase pode levar desavisados a supor que Beauvoir concorda com a tese de que mulheres não possuem gênio criador; mas não se trata disso. Na verdade (e resumindo bastante), Beauvoir teoriza que as limitações de criação da mulher se relacionam sobretudo às pressões/restrições sociais que a cercam e à tradição que mistifica sua consciência e nega-lhe a liberdade. Quer dizer, Beauvoir denuncia que toda a possibilidade de realização de uma obra genial (ou simplesmente uma obra) é recusada à mulher; que acaba despendendo tanta energia para libertar-se, que não sobram forças para aproveitar a vitória e romper amarras no instante da criação artística. Naquela citação do diário, Beauvoir identifica dois tipos de dinâmicas que costumam aparecer nesse jogo de forças: 1. a da mulher que abraça sua singularidade, enquanto rejeita a disciplina para o rigoroso domínio da técnica (a loucura sem talento), e 2. a da mulher que escolhe dominar a técnica e a expressão com vigor, enquanto abafa sua singularidade (o talento sem loucura). Ou seja, naquela frase, Beauvoir diz que a genialidade exigiria tanto a disciplina para dominar as técnicas do ofício pretendido, quanto o pleno acolhimento da singularidade - a loucura no talento. Portanto, lido o texto de Beauvoir, imagino que a vigorosa ambição do tipo "quero ser genial ou nada!" seja exatamente do que as mulheres precisam, a fim de garantir a determinação e a disciplina necessárias para que tenham uma chance real de sair do domesticado papel de amadoras e de profissionais que morrem à beira da genialidade.
Como o orgulho pede que eu ainda tente me defender, o farei destacando que, de início, eu tinha em mente aquela temática explorada pelo livro O Náufrago, de Thomas Bernhard. Nessa obra (faz tempo que a li, ressalto), o austríaco examina os intensos sentimentos de frustração e derrota que se apossam de pianistas, no instante em que se dão conta de que não são, nem jamais serão (não importa o quanto se dediquem), um virtuose. O confronto com aquele "nada" da fala de Amy gera um sofrimento profundo, e o trauma pode ser intransponível para o indivíduo.
Mas é complexo, né? Persistirei no universo musical proposto por Bernhard, para perguntar a mim mesma se Mozart/Beethoven/Maria Callas/Nina Simone/Glenn Gould/Coltrane teriam chegado aonde chegaram, caso tivessem pensado, no meio do caminho: "ãin, isso provavelmente não dará certo e nem serei grande, mas tô de boas". É aquela coisa: No creo en genios, pero que los hay, los hay.
📔 "Me desespera no saber pintar. Ni dibujar. Siento que las cosas me gritan rogándome que las reviva en un lienzo blanco. Pero ¡no sé!, ¡no sé!"
Usei a deixa para pesquisar os desenhos e pinturas de Pizarnik, mas parece que não há um acervo on-line bem organizado dessa produção. A melhor fonte localizada foi a mini galeria (link: aqui) reunida pelo site alejandrapizarnik.blogspot.com.
A exasperação de Pizarnik com seus desenhos me obriga a mais uma vez resgatar a marcante angústia de Lily Briscoe, a pintora personagem de Virginia Woolf, no livro To The Lighthouse (Ao Farol): "She could see it all so clearly, so commandingly, when she looked: it was when she took her brush in hand that the whole thing changed. It was in that moment’s flight between the picture and her canvas that the demons set on her who often brought her to the verge of tears and made this passage from conception to work as dreadful as any down a dark passage for a child.". Por coincidência, agora atravesso a fase em que descubro que também não serei um gênio do desenho e da aquarela. Faz parte. ¯\_(ツ)_/¯ Naquela breve leitura do capítulo de O Segundo Sexo, motivada pelo diário de Pizarnik, acabei esbarrando com a honesta descrição de minha presente situação: "(...) a mulher, para compensar as falhas de sua existência, se volta para o pincel ou para a pena: é tarde demais; carecendo de uma formação séria, não passará de amadora." E a parte mais legal é quando Beauvoir diz que a culpa é minha, por ser uma narcisista preguiçosa.😬 Errada, ela não está; e agradeço-lhe por ter me ajudado a economizar umas quatro sessões de terapia. Para fechar, acrescentarei apenas que aquela frase de Beauvoir (e o teor daquele respectivo capítulo lido) me lembrou outra correlata, que aparece na série Nada Ortodoxa (Unorthodox), da Netflix (*desculpa para trazer a Shira Haas de volta ao blog):
"Noutras circunstâncias, talvez as coisas tivessem sido diferentes pra você."
📔 "Finalmente, aparece Picasso llevando a Guernica. Lloro más fuerte. Picasso me obliga a aferrarme a la Vida. ¡Y es mucho más cómodo rechazarla! No puedo decir que el hombre es nada cuando sé que allí está Picasso."
Surgiu um espelho poético. Para Szymborska, enquanto a mulher de Vermeer derramar o leite na tigela, o mundo não merece o fim. Para Pizarnik, enquanto existir a obra de Picasso, ela não pode afirmar que o ser humano é nada.
📔 "D. M. me invitó a participar en un concurso literario, de cuyo jurado forma parte. Se me ocurre que no debo intervenir, pues D. M. es pseudoclasicista y dijo que mis poemas «son muy buenos, pero un tanto osados». ¡Osadía! Escribo como puedo. Jamás sería capaz de escribir un soneto ni una apología al jardín de esa plaza. Jamás sabría componer un alejandrino ni calcular una rima. No lo lamento, pues D. M. tampoco «sabría» hacer ninguno de mis poemas."
📔 "Cada cual se forja su mundo. Mi mundo es esta habitación. Fuera de ella está lo desconocido, lo indiferente, que no tengo deseos de explorar. Acá es donde siento la limitación. Acá es donde veo lo vano de los esfuerzos humanos. De pronto, me asalta la idea de vivir. Me pregunto si vivo. No sé qué es vivir. Además, al estar acá, respondo a mis necesidades. Necesito de esta soledad llena de libros, de música, de humo y café. ¡Vivir! Supongo que «vivir la vida» significa gozarla. Pues mi goce es este.
Em momentos de isolamento."
Tradução: José Paulo Paes
(P.S.: o fato de Rilke estar cheio de perguntas me traz uma paz tremenda.) Não sei se há relação exata, contudo essa reflexão me fez regressar a um dos breves relatos compartilhados por Sophie Calle no incrível True Stories (Des histoires vraies, 1994). Previamente a um almoço, a artista combina com um amigo (uma precaução, pois o moço era inteligente, segundo ela) que o tema da conversa seria "O que te faz levantar de manhã?". No dia do encontro, as respostas super elaboradas, na ponta da língua de Calle, não sobrevivem à primeira resposta do sujeito: o cheiro de café me faz levantar de manhã. Ao fim do encontro, Calle rouba a xícara como memória daquele momento.
📔 "Dicen que T. E. Lawrence leía 6 libros por día. ¡Eso es vivir!"
Opa, Pizarnik pensou numa possível definição para o que seria viver: ler seis livros por dia. Pode ser um bom motivo para levantar da cama.
Em várias entradas dos diários, Pizarnik reitera a importância que confere à imaginação (almeja quase uma imaginação pura, digamos; desconectada por completo da memória) como principal ferramenta de seu processo de escrita (não surpreende que Aira goste dela). Nessa entrada específica, ela parece ter encontrado na felicidade a chave que supostamente abre sua imaginação literária. No ensaio O meu ofício, Natalia Ginzburg defende justamente a teoria de que a felicidade e a infelicidade nos levam a escrever de maneiras diferentes. Segundo Ginzburg, a felicidade fortalece nossa fantasia, enquanto a infelicidade estimula nossa memória, tornando-nos presos às lembranças do passado. Será que a onda contemporânea de livros de memórias e autoficções (termo odiado, eu sei) reflete os tempos atuais em que prevaleceria uma infelicidade? Ignoro, mas deixo o registro da especulação. É possível que Giacomo Leopardi não concordasse com a teoria de Ginzburg, dado que, naquele Diálogo da Natureza e uma Alma, a Natureza afirma que a argúcia do intelecto e a vivacidade da imaginação excluem uma grande parte do domínio sobre si próprio; criando mil dúvidas na deliberação e mil contenções na execução dos atos em causa própria. Ou seja, ainda que a imaginação permita a criação de obras de grande valor artístico e filosófico, ela também pode contribuir para a infelicidade em vida.
📔 "Pasó una hora. 22 h. Pienso en ÉL y una oleada de cálida euforia envuelve mi imaginación. Me siento como inspirada por algo fantástico y deseo hacer cosas increíbles. Si en estos momentos escribiera, creo que saldría algo bueno."
Para dificultar o imbróglio, trarei Amós Oz para a conversa. Quando li o livro Como curar um fanático, tive a surpresa de descobrir que o autor israelense defende a imaginação como meio de adquirir imunidade ao fanatismo - "(...) necessitamos de imaginação, de uma profunda habilidade de imaginar o outro (...)". Embora reconheça que a literatura não é uma cura rápida e definitiva, Oz a encara como um recurso válido e importante contra o fanatismo. Retornei à perspectiva do autor não somente por causa dos vários comentários de Pizarnik em relação à imaginação, mas também porque o editor Luiz Schwarcz comentou, numa dessa lives da Companhia das Letras, que o cenário atual é de menor interesse por livros de ficção, em contrapartida à maior demanda por livros de não-ficção. Desde então, tenho matutado no que isso vai dar; se é que vai dar em alguma coisa; veja bem.
📔 "Arturo me dice que está loco. Que está internado en Vieytes y a veces sale para embriagarse y escribir. Me sube el llanto. Se me ocurre que es un verdadero poeta (los que sufren del dolor mundial)."
Essa imagem do poeta como o louco que sustenta nas costas a dor do mundo não já caducou? Se bem que a Beauvoir referiu, naquele mesmo capítulo de O Segundo Sexo, que "os indivíduos (...) que condecoramos com o nome de gênio são os que pretenderam jogar em sua existência singular a sorte de toda a humanidade (...), confundir seus problemas, suas dúvidas, suas esperanças com os da humanidade". A propósito, esse Arturo é um primo de Bioy Casares.
📔 "Un compañero de clase me muestra un poema suyo. Lo leo. Es superficial y vulgar. Le pregunto por qué no es más profundo."
Já que falamos de imaginação, imaginemos a cena: chego pro artistão e tasco na lata "Ei, por que as coisas que você escreve não são mais profundas, hein?". De que maneira o cara responderia isso? Pô, achei a pergunta meio cruel. Seria exagero compará-la à pergunta "por que você não é um gênio?"? Tipo, e se me perguntassem por que escrevo tanto groselha, em vez de escrever coisas mais profundas? É, acho que eu personificaria a grande Lispector: "E eu sei?".
📔 "¿Y L.? ¿Qué te gustaba en L.? ¡Su rostro! (...) Oh, jamás podré gustar de nadie después de no haber podido amar a L.! ¡Cómo lo deseo! ¡Cómo lo extraño! Era lo máximo que podía exigir de un hombre en cuanto a cualidades. Y su rostro de estudiante francés torturado."
"Rosto de estudante francês torturado"?! Adorei. Não é a perfeita descrição da cara do Louis Garrel? Greta Gerwig acertou demais no casting desse ator em Adoráveis Mulheres.
📔 "En la librería Letras, un hombre (corredor de libros) mostraba un bellísimo misal romano. El canto estaba pintado con oro rojizo. Era maravilloso. Le dije que «sólo por ese libro me haría católica». Todos rieron, la dueña, generalmente fría, no sabía qué decirme para manifestar su simpatía. Compruebo que en cualquier ambiente, una nota ingeniosa o chispeante sirve más que la erudición seca o las serenas virtudes morales. Sí. Todo reside en la simpatía (en cuanto a las relaciones sociales). Sin embargo, amo mis ojos lacrimosos y mis labios cerrados. ¡No quiero que desprecien mi angustia! ¡Alejandra!, ¿exiges darle validez universal?"
📔 "Me despierta la voz de mi tío diciendo que el Sr. V. ha muerto. Me levanto y encuentro a mis padres desayunando sanamente y comentando el suceso. Lo peor es que el tema carece de continuidad y las opiniones sobre la maldad de la muerte se mezclan a cierto asunto comercial de mi padre. Llego y me comunican la noticia. No contesto. Siento deseos de decirles que dejen de comer, que lloren, que «eso» nos espera a todos. Mi padre se levanta y quedo con mi madre. Me dice que no hay que pensar en la muerte, pues una se vuelve pesimista, que la vida es bella (parece [palabra ilegible]). Le contesto diciendo que salga a la calle y que si encuentra alegría y belleza que me avise, así no voy a pensar en la muerte. Se escandaliza. ¡A mi edad pensar en «eso»! (...) ¿Para qué tanta lectura? ¡Si después nada queda!"
Por outro lado, o argumento que Pizarnik escolhe para confrontar a mãe -"saia de casa e, se encontrar alegria e beleza, me avise, assim não pensarei na morte" - me soa um tanto despropositado. Na música Rasga, há um trecho em que a cantora Urias lança a seguinte pergunta ao ouvinte:"Sabe quando você sai de casa com a certeza da beleza?" A pergunta me fisgou desde o instante em que a ouvi pela primeira vez, e estava ansiosa para usá-la numa futura piadinha autodepreciativa, na qual diria choramingando que a gata aqui não faz a mais remota ideia do que é sair de casa com a certeza da beleza, pois a gata sabe que não é bela. Graças ao início do isolamento social, finalmente notei que a pergunta de Urias, se destacada do contexto da canção, não especifica a beleza a que se refere, adquirindo uma poética ambiguidade. Sair de casa com a certeza da beleza. Sim, acho a reflexão bonita e admiro a construção da pergunta. Enfim, esse lero-lero serve apenas para explicar por que tendo a discordar do argumento da Pizarnik de 1955, pois sei o que é sair de casa com a certeza da beleza, a despeito da feiura que também encontrarei. Lá fora há beleza e há feiura, so it goes; cabendo-nos o esforço diário, na medida do possível, para ampliar a beleza e reduzir a feiura.
Leopardi, caso lesse essa minha groselhada, rolaria de rir. Este trechinho do Diálogo de um Vendedor de Almanaques e um Passante demonstra a tática com a qual ele zombaria da minha cara, sem que eu nem percebesse (Tradução: Vilma De Katinszky Barreto de Souza):
"Passante: Há quantos anos vendes almanaques?
Vendedor: Mais ou menos uns vinte anos, ilustríssimo.
Passante: A qual desses gostaria que fosse igual o próximo?
Vendedor: Eu? Não sei.
Passante: Não te lembras de nenhum ano em particular que te pareceu feliz?
Vendedor: Na verdade, não, ilustríssimo.
Passante: No entanto a vida é uma bela coisa. Não é verdade?
Vendedor: Isso sim."
Era um fanfarrão, esse Leopardi. Mas tudo bem; porque chamarei o Rilke para me dar um apoio moral e, com somente três versos, resumir toda minha conversa fiada:
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