13/11/2021
[off-topic] 저기 멀리서 바다가 들려
05/11/2021
Ne me quitte pas; Je t'inventerai des mots insensés que tu comprendras
"...Não aguento mais, não posso passar mais um dia sem vê-la. Senão é a atroz loucura. Tudo acabou, não trabalho mais, (...) amo você com furor. (...) não deixe que a horrível e lenta doença atinja minha inteligência, o amor ardente e tão puro que sinto por você. Enfim, piedade minha querida, e você mesma será recompensada."
— Rodin, 1883.
➽ Ao ler algumas das cartas escritas por Claudel durante a internação, restou a impressão de que o senso de realidade da artista fora de fato afetado com repercussões clínicas relevantes em sua capacidade funcional (há recorrentes sinais sugestivos de delírios persecutórios, por exemplo). O que permanece bastante questionável, entretanto, é a indicação clínica de mantê-la internada num manicômio — em especial por 30 anos —, impedindo-a de continuar produzindo (se é que desejava). As críticas dirigidas à conduta da família da artista, em especial ao irmão, talvez tenham fundamento. Transcrevo, a seguir, o fragmento de uma dessas cartas, o qual ilustra meu questionamento (grifos meus):
"Haveria ao menos alguém que tivesse reconhecimento e que soubesse oferecer algumas compensações à pobre mulher cujo gênio despojaram? Não! Uma casa de alienados! Nem mesmo o direito de ter meu canto!... (...) é a exploração da mulher, o massacre da artista a quem querem fazer suar até o sangue."
— Camille Claudel; 03/03/1930
(1) A Valsa (1895-1905)
Em minhas observações da escultura A Valsa, jamais enxerguei uma saia vestindo a mulher; a qual, inclusive, fora acrescentada por causa do chilique crítico contra a nudez do casal — no desenho de Claudel, fica claro tratar-se de uma saia. O que sempre enxerguei na peça é a imagem de um casal rodopiando a medida que emerge em explosão a partir das profundezas do mar (sim!, uma escultura em movimento...), motivo da presença de algas — e não saia — vestindo a parte inferior da valsista. De qualquer jeito, minha prévia leitura não é equivocada, pois o texto do livro descreve a obra "como uma concha marinha" (boa, é isso que vejo). No mais, confirmei que as heroínas de Claudel se projetam em direção ao céu num grande voo ou espiral quebrados; a ascendente oblíqua constitui o eixo preferido de suas esculturas. Também adorei saber que a música e a dança fascinam as heroínas da escultora, as quais assumem o papel de uma dançarina hindu mais que europeia, dançando sem pés nem pernas, com os braços, com seus dedos e a cabeça jogada para trás.
Uma vez que vejo mar em tudo, mal pude conter o feliz espanto diante da escultura A Onda (não conhecia); esta quarta dimensão onde a pequenez humana se situa frente à imensidão do mundo; uma confusão imaginária com uma força marinha, o fluxo do desejo, da pulsão carnal projetada fora de si.
E, opa, super dialoga com as algas que sempre enxerguei (e continuo enxergando rs) em A Valsa. Adorei demais a obra.
"Assim como o poeta fala por entre palavras, desvia as palavras de seu sentido por subversão da língua comum, também a escultura de Camille, vibrante, construída como um escape, embaralha o mundo das aparências. Ela é feita do desejo. Metamorfoseia o desejo em amor da forma. Transforma o sentido em energia, faz surgir o sentido do corpo de sua massa."
— Gérard Bouté, O espelho e a noite.
❧
Este é o aparente momento And now for something completely different (E agora para algo completamente diferente); contudo prevejo que, ao final deste post, a pertinência deste suposto desvio restará demonstrada. Em meio às reflexões propiciadas pela vida e obra de Claudel, por acaso calhei de ler (pela primeira vez) o lindo poema Tríptico, do português Herberto Helder. A foto do danado está na mão:"Maria Lúcia Dal Farra vê, também, neste poema uma metáfora da própria leitura onde o amador é o leitor que vem com seu silêncio e seu ruído, e onde a coisa amada é o texto (FARRA 1978: 87), para depois referir a permeabilidade e o espaço físico representados pela amada como sendo a opacidade do texto (OP. CIT. 1978: 88).(...)Deste modo, não se trataria apenas de uma leitura desmistificante do amor platônico, mas também uma leitura do próprio processo de busca que o poeta realiza na escrita. E isso faz-se através da posse, do texto, esse espaço baía onde o amador-poeta se renova e se transforma, com ele, transformando o mundo. "
— Rui Torres, Camões Transformado e Re-Montado: o caso de Herberto Helder
Relendo o poema com essa nova chave em mãos, um novo fascínio certamente se revelou pra mim. Por ora, guardemos este dado: amador e amada se batendo mutuamente — Escritor X Escrita —, transformando o mundo num ruído áspero; alimentando o silêncio do mundo e do amor.
Para encerrar esta groselha, incluo a grata surpresa que tive ao ler — motivada pela presença de Camille Claudel — a obra Paixão Simples, de Annie Ernaux (Editora Objetiva, 1992 - Tradução: Adalgisa Campos da Silva). O livro pegava poeira em minha estante há algum tempo; e lembro de tê-lo adquirido num sebo após esbarrar com os comentários de uma leitora dinamarquesa que afirmara ter encontrado nas palavras de Ernaux um alento para a dor provocada pelo fim de um romance. Além disso, se a capa ilustrada pela escultura O Beijo, de Rodin, não for um sinal de que este era o momento certo de lê-lo, não sei o que mais seria.
"O segundo volume (Tempo e Narrativa)... Só queria ressaltar o sentimento muito forte que se apodera do leitor, enredado (!) pela estratégia narrativa de Ricoeur. O sentimento de que somente a arte da narração poderia nos reconciliar, ainda que nunca definitivamente, com as feridas e aporias de nossa temporalidade. (...) O tempo nos escapa e, por ele, como que escapamos a nós mesmos; mas a retomada dessa fuga na matéria frágil das palavras permite uma apreensão nova, (...) Uma nova apreensão que, ao criar sentidos, fugazes eles também, permite jogos ativos com o(s) tempo(s) e no(s) tempo(s) (...)"
— Jeanne Gagnebin; Uma Filosofia do Cogito Ferido: Paul Ricoeur.
Com o artigo De l’écriture « comme un couteau » à l’écriture « dans le vif » : Le vrai lieu d’Annie Ernaux (li aqui: X), publicado pela pesquisadora Mariana Ionescu, pude confirmar que o projeto literário de Ernaux efetivamente visa registrar a todo custo a passagem do desejo carnal à escrita, de modo a conferir sentido à opacidade de suas experiências — um sentido não só individual, mas também coletivo; ou seja, a autora pretende intervir em si e no mundo.
Portanto, após todos esses paralelos estabelecidos, inevitavelmente questionei se essa não foi a saída que escapara a Camille Claudel. Digo; no começo deste post, transcrevi as palavras de Bouté, segundo as quais a escultura de Claudel embaralha o mundo das aparências, metamorfoseia o desejo em amor da forma e transforma o sentido em energia, certo? Então, assim como a escrita é capaz — vide o que aprendi com Helder, Ernaux, Ricoeur, Gagnebin —, será que o amor vivido na escultura também não poderia ter permitido a Claudel reconciliar-se com a dor do abandono? Mediante continuidade de seu trabalho como escultora, Claudel não teria encontrado um sentido para sua experiência e um novo jeito de habitar o mundo? Ou ainda: ela não teria se transformado numa pessoa mais ligada ao mundo (usando palavras de Ernaux), em vez de desconectada dele? Dada a impossibilidade de obter uma resposta categórica às minhas indagações (e de mudar o passado), me resigno a encerrar este alinhavo lamentando profundamente o que ocorreu a Claudel, desejando que a artista finalmente esteja em paz.
25/09/2021
Beloved (Amada) - Toni Morrison
Daniela: Energia cômica, Byatt?! Puxa, discordo, hein. A única parte, ou melhor, diálogo que achei engraçado foi aquele próximo ao final, no qual Paul D e Stamp Paid questionam se Sethe seria tomada por instintos assassinos sempre que visse um branco pela frente. Os dois riram; eu, não nego, ri junto.
Ignes Sodré: De qualquer maneira, a narrativa, de fato, traz a gente logo para dentro desse mundo completamente diferente — pisamos dentro do 124 como os personagens o farão: do mundo exterior comum para o estranho mundo do 124, um mundo dominado por este bebê fantasma. É escrito de um modo que nos faz ser atraídos para o 124.
Toni Morrison: "Eu queria que o leitor fosse sequestrado, lançado sem dó para dentro de um ambiente estranho, o que seria o primeiro passo em direção a uma experiência compartilhada com a população do livro — assim como as personagens foram arremessadas de um lugar para outro, de qualquer lugar para qualquer outro, sem preparo ou sem defesa."
Daniela: "Atraídos" é uma palavra forte, Sodré. Eu, pelo menos, me perguntei se queria/deveria, afinal, entrar ali. O início do livro me despertou medo e indagações do tipo "quero mesmo entrar e passar tempo numa casa onde um fantasma comete atrocidades contra um cachorro?!"
Toni Morrison: "A escravidão é um terreno sem caminhos. Convidar os leitores (e eu mesma) para dentro de uma paisagem repulsiva (escondida, mas não completamente; deliberadamente enterrada, mas não esquecida) equivale a armar uma tenda num cemitério habitado por fantasmas altamente vocais."
A. S. Byatt: Entendo. "Eu sou Amada e ela é minha" é um eco do Cântico dos Cânticos. Alguém está dizendo: "Eu sou Amada, e portanto ela é minha", mas podia ser Denver falando, podia ser Amada falando, podia ser Sethe falando. São todas mulheres negras que perderam. São todas pessoas mortas também, eu creio, dizendo: "Embora eu esteja debaixo da grama, eu sou amada." Então a voz que fala se move para dentro do navio negreiro enquanto ainda é a voz de Amada na sepultura.
Ignes Sodré: Isto enfatiza a importância do livro não fazer sentido à primeira leitura: o que aconteceu no passado é tão insuportável que só pode ser apreendido de uma maneira fragmentária. O leitor tem que sentir que a história só pode ser contada lentamente em pequenas migalhas, de outro modo seria impossível de digerir.
Daniela: Exato, Byatt e Sodré. Meu começo de leitura foi estranho; sobretudo porque não me sentia segura quanto à plena compreensão do que lia. Cheguei a dar uma passada de olho em comentários de leitores no Goodreads, a fim de sondar se minha inicial desorientação era normal — era. No entanto, captei rapidamente o que Morrison estava fazendo com aquela narrativa, e a leitura passou a fluir mais fácil.
Ignes Sodré: Verdade, Daniela. Você não só sente que nada sabe a respeito do muito que está sendo contado, mas sua imaginação pode correr temporariamente para o lugar errado, para ser corrigida depois por outros pedacinhos de interpretação.
A. S. Byatt: Com Morrison, você precisa ler cada palavra. A little old baby / Um pequeno velho bebê, por exemplo, é linguagem coloquial e, no entanto, no momento em que este bebê está morto, ele se torna o Deus, ele se torna toda a história da sua raça. E, de certo modo, os mortos são velhos porque são parte do passado e dos ancestrais.
Ignes Sodré: Sim, existe nas personagens uma qualidade mítica, uma vez que são descritas em grande detalhe como indivíduos, mas também representam seu passado e sua raça. Além disso, as personagens são pessoas que passaram por experiências tão insuportáveis que têm de estar engajadas em batalhas com suas próprias mentes.
Daniela: Impossível não falar da questão da memória neste livro, sim? A própria forma narrativa a respeito da qual estamos comentando reflete a relação que as personagens estabelecem com suas memórias. Na introdução de Beloved, Morrison afirma a pretensão de criar um contexto onde o esforço hercúleo para esquecer estivesse ameaçado pela memória desesperada por permanecer viva.
Ignes Sodré: Sim, pois este romance é essencialmente sobre a memória, sobre personagens que não querem se lembrar, escrito por uma autora que é poderosa na ênfase de que não devemos nunca esquecer. A memória e a lembrança estão ligadas para manter vivos na mente aqueles que morreram e, portanto, com todo o processo de luto, que implica tanto manter uma relação interna com os mortos como também elaborar a perda. Isto é, naturalmente o que Sethe não pode fazer: ela está tão ocupada pelo fantasma deste bebê, que um processo normal de luto não pode acontecer.
Daniela: Correto; e me agrada a complexidade com que Morrison trata o tema, sem apelar para trivialidades. A importância da preservação da memória mediante transmissão oral entre gerações, por exemplo, surge belamente no livro, por meio das histórias que Baby Suggs e Sethe contam para Denver, quem, por sua, vez, as conta para Amada — papel que Morrison também assume ao escrever Beloved. No entanto, a memória não é retratada com absoluto preciosismo; quero dizer, consigo identificar no texto elementos sugestivos de que a autora concorda com estas palavras de Todorov: "Sacralizar a memória é uma outra maneira de torná-la estéril."
Toni Morrison: "Não queria que as memórias e o passado de Sethe fossem abstratos, eu queria que ela sentasse à mesa com aquilo que tentava evitar e explicar; uma forma de dizer que o passado é isso, é algo vivo que somos obrigados a confrontar."
A. S. Byatt: Morrison descreve a memória de Sethe como uma criança voraz, o que significa que o fantasma de Amada se identifica com sua memória que não a deixa ir embora. Mas isto nos traz uma grande ambivalência na história, porque tanto em Paul D quanto em Sethe sua força é sua capacidade de lembrar e de não serem destruídos.
Daniela: Verdade, Byatt! Você me fez lembrar que o livro destaca o valor de termos pessoas em nossas vidas com as quais podemos compartilhar e dividir o fardo de memórias dolorosas — uma expressão de amor* mediante a memória...? —; o que aparece nesta tocante frase: "The mind of him that knew her own. Her story was bearable because it was his as well—to tell, to refine and tell again." (*: tema crucial na obra de Morrison.)
Ignes Sodré: Outra coisa em relação à memória é que Amada tem uma memória tão fragmentária. Tem apenas fiapos de memória que vêm do outro mundo ou de alguma infância psicótica vagamente lembrada. Quase sem ter memória, ela não se sente uma pessoa real: ela é estranha, ela não consegue se comunicar.
A. S. Byatt: E por ela ter furos de memória, ela possui furos no ego. Suas memórias têm uma qualidade fragmentária que as memórias de nossa infância possuem. Isto se encaixa com aquela cena em que Amada sente que está caindo aos pedaços.
Daniela: Byatt, acho que sua reflexão serve para propor que livros também funcionam como objetos mediantes os quais esbarramos com rememórias que não nos pertencem, conforme Sethe explica a Denver em relação a lugares, neste trecho do livro: "Someday you be walking down the road and you hear something or see something going on. So clear. And you think it's you thinking it up. A thought picture. But no. It's when you bump into a rememory that belongs to somebody else."
A. S. Byatt: Vamos falar de Sethe. O romance se baseia numa história verdadeira, de uma mulher que matou seus filhos para não serem devolvidos à escravidão. É ousado para uma romancista escolher alguém que cometeu tal ato como protagonista e então fazer com que você a ame, simpatize com ela. Ela o faz inventando uma mulher cujos poderes de amar são fortes. Você a considera psicologicamente convincente, Sodré?
Ignes Sodré: Inteiramente convincente, e acho que minha simpatia por Sethe é absolutamente constante ao longo do livro, o que é extraordinário. Reagimos à intensidade da sua dor e ao horror da tragédia, mas nunca, em nenhum momento, contra ela, porque acreditamos em seus motivos.
Daniela: O ponto é que, sem termos passado pela violência extrema da qual Sethe fora vítima (destino que ele pretendia evitar aos filhos), não temos ferramentas, quiçá o direito, de condená-la sumariamente pelo que fez — aliás, nem é preciso, visto que Sethe assume a função de sua própria juíza implacável. Você perguntou, Byatt, se Sethe seria "convincente", mas acredito tratar-se de uma pergunta despropositada, sobretudo quando sabemos que o mote principal de Amada de fato ocorreu, digo, Margaret Garner existiu. Conforme afirmara Morrison, esse evento é maior do que a linguagem. Ao escolher narrar esses fatos, Morrison escolheu narrar o indizível (o que também corrobora a forma escolhida).
Toni Morrison: "Ela reivindicou aquilo que não tinha o direito de reivindicar; a propriedade de seus filhos. Decidiu que podia não só ditar a vida deles, como acabar com ela. E quando sabemos, assim como ela sabia, qual seria o futuro daquelas crianças, não é tão difícil entender a decisão dela."Daniela: A autora comentou ainda que, quando lera o artigo sobre o fato — a história de Margaret Garner—, enxergou nele ideias relacionadas à compulsão pelo cuidar, à ferocidade que acomete uma mulher que se sente responsável por uma criança e, ao mesmo tempo, a tensão de ser uma pessoa separada, completa. Suponho que o fato de eu não ter vivido a experiência materna seja responsável pelo assombro e medo que o dito amor materno me desperta. Sem dúvidas a maternidade vincula-se, no livro, às noções de sufocamento, posse e obsessão que beiram a loucura. Em outras palavras, não nego enxergar pertinência na assertiva de Paul D: Your love is too thick. Também gosto desta frase acerca do amor de Sethe: Locked in a love that wore everybody out.
Daniela: Curiosos seus comentários, pois afirmo que esse livro, em várias passagens, me remeteu a cenas do filme Alien, no que refere-se à relação da mãe com sua filha fantasma materializada. Tudo muito assustador. Parafraseando novamente Paul D, é too thick pra mim, não dou conta; meu espírito é afeito a amores mais serenos — defeito? Qualidade? Vai saber.
Daniela: Também interessante é quando a narrativa nos evidencia que, por consequência, não havia uma comunidade de mulheres formada e consolidada para servir de suporte mútuo na dura tarefa que é criar e ser responsável por uma criança. Fiquei profundamente tocada quando Sethe desabafa que, na criação de seus filhos, não tivera uma outra mulher a quem pedir ajuda, uma orientação, restando obrigada a descobrir sozinha seus caminhos maternais: "I wish I'd a known more, but, like I say, there wasn't nobody to talk to. Woman, I mean. (...) It's hard, you know what I mean? by yourself and no woman to help you get through."
Daniela: Esse destaque para a significância de fortes laços comunitários (sobretudo entre mulheres), é um dos artifícios dos quais Morrison lançava mão para explorar o tema que lhe era tão caro: o amor e a bondade, o Bem. Conforme expôs numa palestra que proferira na Harvard Divinity School, Morrison pretendia que sua obra firmasse contraponto à marcante presença do Mal na literatura contemporânea, o qual, na visão dela, habitualmente surge envolto por ares sedutores e inteligentes, em contrapartida aos tons de asneira reservados para o Bem. Ou seja, a autora era comprometida em narrar o Bem / a Bondade sem os corriqueiros marcadores narrativos do humor, tolice e/ou ironia; e, nesse sentido, o suporte comunitário desponta como uma dos artifícios temáticos aos quais Morrison recorria para atingir seu objetivo.
"You know as well as I do that people who die bad don't stay in the ground."He couldn't deny it. Jesus Christ Himself didn't, (...)"
A. S. Byatt: De fato, Morrison recorre à linguagem bíblica e cristã em Amada, como o faz em toda a sua obra, mas eu a vejo usando estas histórias de uma nova maneira, porque a história cristã também apresenta grandes figuras míticas sofredoras das quais se pode extrair força, mais do que sentir que elas exigem que se parta para a perseguição e vingança.
Ignes Sodré: E Sethe tem fé na possibilidade de uma relação inteiramente boa e por isso é capaz de entregar seus filhos a estranhos. Não é apenas o horror de sua posição, não é o desespero. É o apego à certeza de que a bondade existe, contra a prova de tanto mal. Esta certeza é o que Baby Suggs finalmente perde: o momento em que ela se fragmenta. A crença na bondade—sua existência como uma realidade psíquica—é a única coisa que torna possível esta vida absolutamente intolerável.
Daniela: Contudo, Sodré, há uma fala de Sethe que, depois do que você disse, preciso incluir: "I birthed them and I got them out and it wasn't no accident. I did that. I had help, of course, lots of that, but still it was me doing it, me saying, Go on, and Now. Me having to look out. Me using my own head." Ou seja, considerando-se as críticas que fiz ao tom cristão de Amada, preciso admitir que a narrativa não constrói personagens passivas, digo, que esperam que Deus resolva seus problemas, sem que elas mesmas movam uma palha para isso. Na fala que destaquei, Sethe reconhece os muitos auxílios com os quais contou durante seu percurso (inegáveis e, certas vezes, cruciais), mas isso não a refreia de asseverar que, no fim das contas, a ajuda e feitos maiores tiveram de partir, em primeiro lugar, de si própria.
A. S. Byatt: Amada também é Cristo, ela é ou o demônio ou o salvador, ela é o cordeiro sofredor sacrificado que foi morto em favor do povo. "Muitas águas não podem..."— estou certa de que esta imagem sustenta e fortalece a imagem de Amada no fundo do rio. E o Cântico dos Cânticos é uma extraordinária mistura da imagem sexual e amor religioso, amor de sacrifício e amor paterno. Parcialmente sugere uma espécie de incesto, creio.
Daniela: Ah, olha só, então não estou doida quando enxergo uma forte dinâmica incestuosa entre Sethe e Amada. Bom, ainda há muito o que discutir quanto ao livro — liberdade, cores/colorismo, símbolos (água, sangue, leite, seios), masculinidade, amor, escravidão na literatura... — mas já tomei demais o tempo de vocês. Agradeço-lhes pela paciência de conversarem comigo, Byatt e Sodré.
Ignes Sodré: Foi um prazer.
A. S. Byatt: Até mais.
Toni Morrison: "Quanto aos críticos que me acusam de escrever personagens maiores do que a vida, entendo que eles estariam dizendo que a vida é pequena. Minhas personagens não são pequenas, elas são, na verdade, tão grandes quanto a vida, que é realmente enorme."
22/08/2021
Lendo Contos| O Aleph - Jorge Luis Borges / Emma Zunz
(Editora Companhia das Letras / Tradução: Davi Arrigucci Jr.)
A poeta Aline Aimée, do ótimo canal (no You Tube) Chave de Leitura, disponibilizou resenhas em vídeo para cada um dos contos da coletânea O Aleph, de Jorge Luis Borges (link aqui). Aproveitando a chance de poder contar com alguém para enriquecer minha experiência de leitura, tentarei incluir postagens em resposta aos vídeos da Aimée. Um clube de leitura formado por duas leitoras, maaaaais ou menos. A sequência proposta para o post é a seguinte:> Assisto ao respectivo vídeo da Aline Aimée > Complemento as impressões com as novas informações e reflexões.
"... Emma Zunz é bastante pragmática. Ela reconstrói sua realidade de modo que passe a atender a seus propósitos. Ela deseja vingar o pai, cuja morte decorreu largamente das ações exploradoras e repressoras do chefe. Então ela perde a virgindade para um marinheiro e, depois, atira no chefe do pai, contando à polícia que o morto a havia estuprado e que, portanto, ela meramente se defendeu. A realidade de Emma é dolorosamente real, (...) ela usa seu mundo da melhor forma que conhece, conformando-se a ele, ao mesmo tempo em que rebela-se contra suas injustiças, a fim de atingir seu objetivo."
— Floyd Merrell; The Cambridge Companion to Jorge Luis Borges
"By coming in here, you agree to a certain behavior," Mink said.
"What behavior?""Room behavior. The point of rooms is that they're inside. No one should go into a room unless he understands this. People behave one way in rooms, another way in streets, parks and airports. To enter a room is to agree to a certain kind of behavior. It follows that this would be the kind of behavior that takes place in rooms.
— Don DeLillo; White Noise (Ruído Branco)
Ou seja, a narrativa de DeLillo, mediante essa fala de Mink, propõe que entrar num quarto, um espaço fechado, implica assumir um comportamento diferente daquele em espaços abertos. Então, ao penetrar nesses espaços, as personagens assassinas continuam a ser a mesma pessoa? Estaríamos falando, assim, de outra realidade E de outra identidade? Opa!, agarro essa segunda deixa para fixar o próximo item desta lista.
(2) "(...) quem sabe; já era a que seria." — Borges; Emma Zunz.
Quando Humbert confronta Quilty, ele se apresenta como o pai de Dolores, acusando-o de tê-la raptado e estuprado; em outras palavras, Quilty torna-se o único responsável pela desgraça que ocorrera na vida de Lolita. Humbert, naquele instante, deixa de ser Humbert; não tem mais culpa de coisa nenhuma, passando a ser apenas um papai que sofre e vinga a violência cometida contra a filha amada. Acredito que Humbert e Quilty se aproximam a um Duplo, porém com a notável ressalva de que é Humbert quem força esse Duplo ao se posicionar artificiosamente no polo oposto ao de Quilty, na tentativa de que deixem de corresponder a uma identidade em tudo equivalente.
Minha leitura de Emma Zunz seguiu caminhos similares àqueles que percorri a partir da cena de Nabokov. Embora a narrativa de Borges não permita acessar o íntimo de Emma, teorizei, mediante os subsídios textuais fornecidos, que a notícia do falecimento do pai inundou a personagem de sentimentos de culpa: se Emma tivesse revelado a verdade acerca do crime pelo qual o pai fora injustamente acusado, será que ele teria se suicidado? Quer dizer, penso que a personagem entrou na paranoia de questionar se ela poderia ter evitado a morte do pai. Seguindo esse raciocínio, especulo que, para matar Loewenthal, Emma precisa projetar toda essa culpa nele — à semelhança do que fez Humbert. Inclusive, antes de efetivamente apertar o gatilho, ela já está convicta de que fora Lowenthal quem a estuprara, no entanto o leitor sabe que a decisão de transar com o marinheiro foi única e exclusivamente dela.
"Diante de Aaron Lowenthal, mais que a urgência de vingar o pai, Emma sentiu a de castigar o ultraje por ela sofrido."
"Relatar com alguma fidelidade os fatos daquela tarde seria difícil e talvez improcedente. Um dos atributos do inferno é a irrealidade, um atributo que parece mitigar seus terrores e talvez os agrave. Como tornar verossímil uma ação quase desacreditada por quem a executava, como recuperar aquele breve caos que hoje a memória de Emma Zunz repudia e confunde?"Eu sei, eu sei; ninguém aguenta mais esse papo de narrativa, mas suspeito de que o fastio geral é mera decorrência da plena ciência de estarmos diante de um fato incontornável da vida humana (e inumana até). O crítico Roberto González Echevarría discute diretamente a confluência entre crime e narrativa, na obra de Borges (traduzo livremente): "Tanto no crime quanto na ficção há um esforço para esconder os mecanismos da mentira que, com todas suas conotações morais, funciona como o incentivo. Emma executa o que acredita ser um crime perfeito, do mesmo modo que um escritor busca escrever uma história perfeita." (The Cambridge Companion to Jorge Luis Borges)
Persistindo nessa reflexão, esta frase do conto borgiano me atrai em particular:
'...e o singular alívio de estar afinal naquele dia. Já não tinha de tramar e imaginar, dali a algumas horas chegaria à simplicidade dos fatos."Quer dizer, esse processo de elaboração, via narrativa, de uma outra realidade e identidade é exasperante, não é algo que ocorre facilmente, sem dor alguma. — Escritores que o digam, imagino. — A propósito, o momento do assassinato faz com que o leitor compartilhe com a personagem assassina do mesmo alívio: a vítima morreu, encerrou o suspense e tensão, o fim da história chegou e, assim, ninguém precisa sofrer acompanhando/elaborando uma narrativa. Entretanto a cena de Ruído Branco subverte, até certo ponto, precisamente isso e, na verdade, é o que mais me marcou. Explico: disparados os tiros, ao ver o corpo ensanguentado à sua frente, Jack parece ser lançado para fora da realidade e identidade que construíra a fim de conseguir matar Mink. Em outras palavras, os disparos não trazem a Jack o alívio, mas sim o desespero de perceber que acabara de atirar contra um ser humano que, em consequência, morreria rapidamente, caso ele não fizesse algo para ajudar. Essa súbita mudança de chave no comportamento de Jack me surpreendeu bastante.
"Com efeito, a história era incrível, mas se impôs a todos, porque substancialmente era verdade. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que sofrera; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios."
— Amós Oz, Fania Oz-Salzberger; Os Judeus e as Palavras (Tradução: George Schlesinger)"Mas os autores existiram, e sua linguagem existiu. Quem inspirou essas histórias? De onde vieram os heróis e heroínas, os enredos e fábulas, os diálogos e expressões? Da vida real, foi daí que vieram. De linhas de textos.
Um arqueólogo poderá se preocupar com o fato de os relatos bíblicos serem mera "ficção", mas nós viemos de um lugar diferente. "Ficção" não nos assusta. Como leitores, sabemos que ela transmite verdades."
15/08/2021
[off-topic] And I draw a line to your heart today
"Nunca digo que sou artista. Eu sou pintora. Porque o mundo é arte; tudo é arte e, se não houvesse arte, não existiria vida."
- Helga Roht Poznanski
Suei, mas a Buffy do Wishverse finalmente saiu (ou algo parecido — nem queiram ver como ficou a versão em aquarela. Spoiler: horrível). Conforme comentei no post a respeito de minha experiência revendo Buffy em 2020/2021, espanta saber que, caso a série fosse criada hoje, essa daí, com absoluta certeza, seria a Buffy do Universo Canon, enquanto a Buffy que conhecemos é quem pertenceria a um mundo paralelo distópico. Que instigante, o quanto uma sociedade é capaz de mudar, em tão pouco tempo. (*material: lápis de cor + giz pastel seco.)
Esse danadinho me deu um baita trabalho; especificamente, o próprio rascunho: o que é a cabeça desse bicho, afinal? Que crânio é esse? E o olho?! A patinha?! Mas estou curtindo bastante desenhar animais e já salvei várias fotografias para referência, vejamos se conseguirei executar algumas delas.
A inspiração desse desenho veio de uma foto postada, no Instagram, pela conta @zildafariass, link: X. A Zilda Farias posta tantas fotos lindas do tio que mora no interior de Pernambuco, que talvez eu traga outros desenhos inspirados pelas imagens que ela compartilha. (*material: lápis de cor.)
"Watching [The Color of Pomegranates] is like opening a door and walking into another dimension, where time has stopped and beauty has been unleashed…. Before all else it's a cinematic experience, and you come away remembering images, repeated expressive movements, costumes, objects, compositions, colours"
- Martin Scorsese