13/03/2021

eta barulhinho bom!

  




🔊 Concluí a mudança de apartamento em fevereiro, porém, como a nova escrivaninha chegou há apenas alguns dias, só agora retorno ao blog. Não; seguindo a praxe, não significa que tenho algo relevante pra registrar, mas apenas que bateu uma intensa vontade de escrever um bocadinho, o que atribuo ao aniversário de um ano de isolamento/distanciamento social. Conforme aponta Amanda Mull em artigo publicado no The Atlantic, a pandemia pausou as relações sociais casuais que, para o bem ou mal, eram basicamente do que eu dispunha para trocar ideia com um ser humano. (- A resposta é sim, Dr. Dráuzio.) Atualmente, conto com as mensagens diárias no whatsapp estritamente relacionadas ao trabalho (voltarei a esse tema), assim como as ligações para a família que reside noutro estado, a fim de saber, principalmente, se estão todos bem. Portanto, na falta de outra possibilidade concreta de jogar conversa fora com uma pessoa, o faço comigo mesma mediante a escrita no blog. (Meio deprê, né? Oh, well.) Planejo adotar a singela tática desta personagem de Kafka:
"(...) escrever ao amigo só sobre incidentes insignificantes, da maneira como estes se acumulam desordenadamente na lembrança, quando se reflete sobre eles num domingo tranquilo."
                                                            - O Veredito; Franz Kafka (Tradução: Modesto Carone)

Do que diabos estou falando?! E essa já não é minha estratégia predominante no blog? Nem saberia escrever de modo diferente. Aliás, a tática da personagem é singela, mas esse adjetivo não serve para caracterizar o conto de Kafka. Talvez não seja o momento oportuno para ler o autor, porém, de fato, tem sido pra mim; sobretudo porque meu novo trabalho (nem tão novo mais) me lançou numa realidade que me parece insana. Sabe quando a gente pergunta pra uma amiga "vem cá, eu não tô ficando doida, tô? isso aqui é completamente sem sentido, não é? não é?". Pronto; o Kafka está na posição da amiga. Infelizmente a responsabilidade jurídica não me permite desabafar e divagar a respeito dessa conexão Kafka x Trabalho, contudo deixo esta pergunta: e aquele Na Colônia Penal, hein? Ô lôco, né? 


🔊 Mas não deixam de ser inusitadas, essas lamúrias pela perda dos papos furados diários que trocávamos antes do maldito vírus. Dia desses assisti ao filme Bom Dia (1959), do Yasujiro Ozu (♥️), e o discurso que o garotinho dispara quando o pai o manda se calar, parar de reclamar e falar tanto, me impressionou:
"São os adultos que falam demais. "Olá.", "Bom dia.", "Boa noite.", "O tempo está bom, não está?", "Sim, está.", "Aonde está indo?", "Ah, só caminhando por aí", "Ah, é?". Um monte de conversa fiada. "Entendo, entendo" - entendo o quê?!"
Ao final do filme, uma bela e simples cena sugere que a criança possivelmente precipitou-se ao criticar tão duramente as conversas banais do dia a dia. Em resumo, tratava-se do instante em que mais um diálogo corriqueiro permitia que um casal se aproximasse, que uma relação humana aos poucos se estreitasse e o prospecto de uma nova vida a dois surgisse. (assim começam as famílias de Ozu?) Para minha grata surpresa, o livro The Condition of Secrecy, coletânea de ensaios escritos pela poeta dinamarquesa Inger Christensen, me presenteou com uma citação de Novalis que, teorizo, é capaz de elucidar aquele desfecho do Ozu (tradução livre, a partir da tradução para o inglês por Susanna Nied):

"(...) conversação é um mero jogo de palavras. Só nos resta nos admirar com o risível erro que as pessoas cometem - acreditar que falam sobre coisas. Ninguém atina para o que é mais peculiar à linguagem, que ela refere-se apenas a si mesma. Por essa razão, é um mistério maravilhoso e fértil - quando alguém fala apenas por falar, expressa precisamente nesse momento a mais esplêndida e original das verdades. Já quando alguém deseja falar sobre algo específico, então a língua temperamental o faz dizer as coisas mais engraçadas e perversas."

                                     - Monólogo, Novalis; citado por Inger Christensen no ensaio It's All Words. 

Então, peço licença, do jeitinho de Isamu, para prosseguir falando groselha neste post. No entanto, basta apertar minha testa, que eu me calo e solto um peido; novo talento que aprendi com Isamu e seus sábios amigos. 

🔊 Beleza, retornemos à imagem que ilustra o topo desta postagem, extraída da série Pretend It's a City (Netflix), na qual Fran Lebowitz, a escritora que não escreve, mas reclama (e lê)® (?! - she's living the dream), ironiza os riquinhos que desembolsam U$500,00 numa sessão de terapia, só pra reclamar do barulho da cidade de Nova York. Obviamente entendo o ponto dela (pertinente, inclusive), MAS  < atenção, lá vem o choramingo da burguesa >, dado que ouvi essa fala no dia seguinte a uma intensa e longa crise de choro desencadeada pela descoberta de que eu me mudara para um apartamento onde os ruídos são intensos, não pude evitar o desbarato. Recentemente assisti ao filme A Montanha dos 7 Abutres (Billy Wilder, 1951), no qual um homem fica preso por seis dias numa mina, e a queixa que ele externa com maior desespero refere-se justamente ao contínuo barulho intervalar da perfuradora que tenta abrir caminho até ele, através da rocha. O sujeito implora para que, pelo amor de deus, parassem de perfurar, pois já não aguentava mais o som das insistentes pancadas. Puxa, me sensibilizou demais. Enfim, ainda que Lebowitz tenha lá razão (e tem mesmo), não se pode desconsiderar o quanto a poluição sonora afeta nossa saúde. Nesta época em que sequer podemos sair de casa, então, nem se fala; e Alceu Valença comparece para corroborar meu devaneio  - "a obra do vizinho não deixa o poeta dormir, pensar". Calcule a situação atual do novo velho lar: andar alto + próximo a uma linha de metrô elevada do solo e sem cobertura + próximo a avenidas com tráfego intenso nos horários de pico + dividindo paredes com dois apartamentos distintos + um dos vizinhos reformando a unidade + vizinhança de doguinhos que curtem latir 24h/dia + alarme sonoro de portão de garagem que dispara toda hora. Sim, estou ciente de que a única pergunta pertinente é "mas por que se mudou pra esse apê, sua imbecil??". Bom, num esforço para aliviar minha barra, elaboro a seguinte mequetrefe desculpa: ora, eu tive de ponderar todas as variáveis considerando a realidade de um mercado imobiliário ridículo; e após uma única visita de meros quinze minutos realizada pela manhã, fora do horário de pico, "portanto" acabei errando feio nos cálculos, inclusive na estimativa de minha tolerância a ruídos. De todo jeito, o choro está sob controle e esforço-me para desligar dos barulhos, porém admito que é complicado (e triste). Estou praticamente vivendo o que a família do filme Home (2008), da cineasta Ursula Meier, viveu; e receio terminar esta provação (mão no peito, olhos fechados) tal qual Isabelle Huppert: completamente louca, tapando todas as janelas e frestas da casa até morrer asfixiada. A fita crepe, já pus pra jogo; o próximo passo será a concretagem das janelas. E pensar que, quando vi esse filme, ri um bocado dos franceses que, subitamente, se veem morando à beira de uma rodovia. Bem feito pra mim.

Só agora percebo que essa lenga-lenga é quase uma metáfora ruim para a realidade atual, né? Estamos nos trancafiando em nossas casas, tapando os contatos com o mundo externo na tentativa de nos proteger de um vírus. Simultânea e perversamente, reconheço que eu deveria ter iniciado essa historinha com a mesma estupenda primeira frase do romance O Diabo no Corpo, de Raymond Radiguet: "Vou me expor a recriminações."Sim, pois, em meio a uma pandemia que tem gerado desemprego e miséria, é forçoso agradecer por, afinal, ter um trabalho, um salário para pagar as despesas de uma casa - ainda que barulhenta.

*: a propósito, esse deveria ser o nome do blog.


🔊 Para encerrar essa saga do novo velho lar, continuarei a me expor a recriminações, porque confessarei que também me entristeceram os pequenos problemas arquitetônicos e estruturais que fui descobrindo no apartamento, além de toda a dificuldade, logística e financeira, inerente a possíveis reformas e projetos de decoração. Achava que finalmente teria uma casa do jeito que eu sonhava e me dei mal. Igualmente não ajuda me estressar com qualquer manchinha/irregularidade na parede, qualquer porta que não fecha direito, qualquer lasquinha num móvel, qualquer cheiro estranho etc... Culpa do Instagram e de vídeos de decoração no Youtube? Pode ser, hein; pode ser. Enquanto assisto àquela série Schitt's Creek, os lençóis com os quais David veste sua cama sempre me enternecem. Ele até podia morar num motel forreca, agora que a família estava falida, mas ao menos sua cama ele faz questão de manter bonita. Sei que eu não teria essa força de espírito; que seguiria na vibe tá tudo uma merda mesmo, então foda-se.

Em meio a esse abatimento fútil, mal acreditei quando uma escritora japonesa do ano 1000/1001 (!!!!!!) veio ao meu socorro. Com a contribuição da incrível equipe de tradutoras que trabalharam na edição da Estação Liberdade Editora 34, Sei Shônagon acalentou meu coração:
"A casa de uma dama que vive sozinha apresenta-se bastante danificada: muro de terra batida por terminar, plantas aquáticas que invadem o lago e, embora o jardim ainda não esteja totalmente coberto de artemísias, podem-se ver ervas daninhas verdes por entre as pedrinhas - uma imagem de tanta solidão chega a comover. É tão desinteressante quando nada há para ser consertado, com o portão bem trancado e tudo na mais devida ordem, que nos enfastiamos muito."

- Sei Shônagon; O Livro do Travesseiro. (Tradução: Geni Wakisaka, Junko Ota, Lica Hashimoto,                                                                         Luiza Yoshida, Madalena Hasimoto)

Olha, vindas de uma mulher que tanto valorizava a beleza das coisas, essas palavras foram tocantes. No fim das contas, estou desencanando. Como a própria Shônagon também escreveu, as coisas feias existem no mundo (eu sou uma delas, caramba**) e não é possível evitá-las, nem deixar de registrá-las.
**:

                                                                                   
🔊 Quanto drama por tanta besteira, né? Nossa, nem eu me aguento mais com esse papo, o que pode ser outra consequência do isolamento extremo. Se Lebowitz estiver seguindo o isolamento com rigor (nem estou cobrando), estará satisfeita por reclamar apenas de si própria? É, pode ser que ela tenha dado uma pausa nas reclamações ixpertíneas, para focar apenas em suas leituras, vai saber. No conto The House of Fear, da Leonora Carrington, a protagonista assume sem cerimônias que, por ser super reclusa, acabava falando demais consigo mesma, tendendo a repetir as mesmas coisas. A personagem reconhece ser uma chata e que ela, melhor que qualquer um, tinha plena consciência disso. É aquilo: não há nada melhor do que ficar quieta no seu canto, sozinha, curtindo o silêncio..., MAS: durante um ano? Na versão extreme? Para espanto próprio, suspeito de que talvez seja excessivo, com efeitos colaterais geradores de um círculo vicioso potencialmente autodestrutivo.


🔊 Daí, tenho pensado com frequência nestas duas marcantes e especiais amizades que conheci ano passado:

- Emmanuel Carrère & Hervé, livro O Reino;

- Vivian Gornick & Leonard, livro The Odd Woman and the City.

Fiquei deslumbrada com as características que Carrère destaca a respeito do amigo Hervé: não era irônico nem maledicente, não praticava o mal, não se preocupava com o efeito que produzia, não jogava nenhum jogo social." (> que bálsamo.) Carrère sentia que a convivência com o amigo não era estúpida nem exaustiva feito aquela dos mundinhos do jornalismo e editorial francês ao qual estava habituado. Também adorei quando o autor comenta que Hervé fazia parte da família de pessoas para quem existir não era óbvio. Porém o mais legal dessa amizade, achei, é isto aqui: na publicação do livro, fazia 23 anos que os dois se encontravam, toda primavera e outono, na aldeia francesa Levron; período durante o qual caminham longamente. Carrère garante que Levron e a amizade com Hervé são os lugares para onde vai inquieto, e de onde volta resserenado. Carrére descrevendo a amizade:
"É uma amizade íntima: agora mesmo eu escrevia que, como todo mundo, Hervé tem seus segredos, mas acho que não os tem para mim, e o que me faz pensar isso é que não os tenho para ele. nada é vergonhoso a ponto de eu não poder lhe contar sem sentir um pingo de vergonha: pode parecer inacreditável dizer isso, mas sei que é verdade. É uma amizade serena, que não conheceu crise nem eclipse e que se desenvolveu ao abrigo de toda interferência social."

                                                           - Emmanuel Carrère; O Reino. (Tradução: André Telles) 

Já no texto de Vivian Gornick, os paradoxos presentes nas grandes amizades ganham um espacinho. Ela e Leonard também contam com mais de duas décadas de amizade, sempre se encontrando uma vez por semana para caminhar, jantar, assistir a um filme. A autora diz que eles não fazem nada exceto ter ótimas conversas; admitindo que a atração mútua resulta do efeito positivo que suas conversas exercem no modo com que enxergam a si próprios, ou seja (e ainda parafraseando Gornick:), a autoimagem projetada no amigo os engrandece. Se o convívio é tão prazeroso, eles deveriam se ver com maior frequência, não? Pois aí que está. Gornick explica que os dois são um tanto negativos, pessoas para quem o copo está sempre metade vazio, de modo que estar com Leonard força Gornick a confrontar sua própria voz, a faz relembrar o quanto ela própria é julgadora, uma mulher que sempre repara nas falhas, nas ausências, nas incompletudes. (exato, igualzinha a mim, reparando nas falhas da nova casa; vai vendo.)

Pelejo para desvendar o segredo dessas amizades preciosas, entretanto é difícil. Carrere e Hervé são totalmente diferentes, enquanto Gornick e Leonard representam imagens especulares, portanto a mágica não parece estar nas semelhanças ou diferenças compartilhadas. A consistência de encontros regulares, com intervalos espaçados, por seu turno, chama atenção, apontando para o suposto caminho das pedras. Sobretudo neste aniversário histórico, não posso evitar de pensar como seria ter uma amizade similar a desses dois autores. Talvez a situação esteja menos dura para quem dispõe do tipo de enlevo propiciado por profundas amizades. 


🔊 Quase esqueci das famigeradas mensagens de trabalho no whatsapp. Veja, nesta altura do campeonato, creio que todos colegas trabalhadores já estão cientes de que nos lascamos, confere? Por razões de naturezas distintas, o raciocínio procede tanto para quem está em casa, quanto para quem infelizmente não pode se proteger dessa forma. Aos desempregados - e aqui reside a grande crueldade da situação - procede ainda mais. A ingênua do passado: poxa, seria tão bacana trabalhar em casa, tão legal, tão cômodo... A lascada do presente: eita, quase nove horas de trabalho ininterrupto, e  não consegui entregar essa maldita meta estrambólica justificada pelo fato de estar em casa. e o chefe ainda manda mensagem "parabéns pelo dia das mulheres" às 06h da manhã. Kafka, me ajuda!" Nos momentos em que me afobo para dar conta da meta, lembro das belas e inspiradoras palavras ditas ano passado pelo atual chefe do Poder Executivo: "O homem do campo é um exemplo, realmente, de trabalhador brasileiro. Eles trabalham de segunda a domingo, por vezes, 24 horas por dia, e não reclamam de absolutamente nada. A não ser, às vezes, quando o Estado quer interferir no seu trabalho." Ele tem razão, né? Não trabalho no campo, entretanto, quando o Estado vem se meter à besta pra garantir uns direitos pra minha classe, é super chato; nada a ver. Desconfio que o nobre orador, que professou ideias tão acertadas, compartilha daquela mesma opinião do capataz alemão da Sinhá do livro Água Funda, de Ruth Guimarães:"- Fôsses, brrasileirras, non serrfem parra trrabalharrr." A mexicana Elena Garro está ligada na importância do trabalho. No excelente As Lembranças do Porvir (Tradução: Iara Tizzot), outro aparente amigo íntimo do nosso chefe do Executivo inventa de falar pro general que, do que o país precisava, era de alguém que fizesse o povo trabalhar. O general, que sequer estava de bom humor, vociferou esta sagacidade: "Pois é bom saber. Deixe de discursinhos e ponha-se a trabalhar! Pando, traga-me uma vassoura, que o companheiro aqui quer trabalhar. Varra a cantina." Depois que o cara termina de varrer o recinto, ele sai para o banheiro com os olhos cheios de lágrimas, o que claramente demonstra a gratidão que sentia pelo sublime general. Lindo de ler, aprendi muito.


🔊 Chega, né? Queria falar de outros livros, mas fica pra depois.

E lembrando: não escuto um barulhinho bom ao abrir as janelas, é verdade; porém nada que o YouTube não possa "resolver", certo? Certo, né?
"-Vou à Penha agradecer o quê, Nascimento? Estar aleijado, falido, (...)
-Você está vivo, Gattai! Acha pouco?"

                                         - Zélia Gattai, Anarquistas, Graças a Deus. 



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