11/05/2021

sobre janelas, bicicletas e gagueiras

Às vezes fico preocupada com o quanto você olha por essa janela
, comentou, certa vez, minha mãe. Noutra ocasião, o desassossego a fez perguntar: no que tanto você pensa aí, afinal? Confrontada pela direta pergunta, me dei conta de que, na verdade, não penso em nada quando estou à janela. Por outro lado, é possível que eu esteja tão profundamente imersa em pensamentos que, ao ser chamada, perco o fio da meada, tal qual um mergulhador que emerge sem a adequada descompressão. No livro Des Histoires Vraies, Sophie Calle compartilha uma foto da vista de sua janela, explicando que aquela é a imagem mais fotografada por seus olhos, ou seja, é a imagem da vida dela. Talvez seja isso; digo, a cada volta à casa dos pais, descubro que alguma coisa da suposta imagem de minha vida (infância, adolescência) não está mais lá, foi substituída por algo novo que preciso assimilar, o que requer longos períodos contemplativos. Uma teoria, apenas. 

No primeiro episódio da série Joe Pera Talks with You, o singelo protagonista fala que jamais poderia vender a casa em que mora, pois ela tem os melhores lugares para pensar, dentre os quais inclui-se o lado da cama de onde é possível observar a vista da janela. Sendo um homem solitário habitante de um lugar frio, Joe reconhece ter bastante tempo livre para pensar em questões urgentes como "Qual o futuro dos jantares casuais?", portanto é essencial que a casa dele tenha um lugar perfeito para pensar. Suspeito de que Joe não ficaria intrigado com o tempo que passo à janela.

Esses devaneios sobre janelas retornaram-me devido ao recente vídeo em que Gilberto Gil exibe as lindas janelas de seu novo apartamento. Sem exagero, quando meus olhos capturaram aqueles janelões lindos, de frente para o mar de Copacabana, quase chorei. No breve vídeo, o músico diz algo que definitivamente atesta sua larga experiência de janeleiro: abrir uma janela não significa apenas deixar o exterior entrar, mas também abrir-se para si próprio. Gil ressalta que a janela dá o poder da interioridade exteriorizar, ou seja, a janela não apenas traz o exterior pra dentro, como também leva o interior pra fora. É, creio que Gil é mais um que não ficaria intrigado com o tempo que passo à janela.

A todas as pequenas desvantagens de meu novo apartamento (registrei algumas em post anterior), acrescento agora a ausência de uma janela perfeita para pensar em nada. Localizando-se de frente para a outra torre do condomínio, meu novo lar assemelha-se ao apartamento onde Valeria Luiselli morou em Nova York, conforme ela descreve no livro Papeles Falsos: de dia, as paredes e janelas dos vizinhos dominam a vista; de noite, os vidros das janelas refletem o interior do próprio apartamento. A autora defende que essa impossibilidade de ver o mundo externo, substituída, à noite, por nosso próprio reflexo nos vidros, corresponde a uma estratégia arquitetônica que pretende criar a ilusão de privacidade em cidades onde, efetivamente, as vistas são um constante convite à bisbilhotagem. Embora ciente de que espiar a vida dos outros é sempre arriscado, uma vez que as posses e felicidades alheias podem resultar, pelo irresistível ato da mera comparação, numa onda de tristeza; a autora se arrisca e depara-se com uma realidade amarga: os vizinhos levam vidas tão chatas quanto a dela. A parte mais divertida, achei, é quando ela teoriza que nada acontece na janela alheia porque todos têm um computador/celular. Para Luiselli, a invasão de nossas casas por esses aparelhos implicou na impossibilidade de vidas interessantes o suficiente para satisfazer um vizinho voyeur. Ela não toca no assunto, porém o faço eu: os malditos celulares tornaram-se nossas janelas pro mundo, e isso me entristece um bocado (em postagem prévia, tangenciei o tema, ao comparar nossa situação atual a uma cena do livro Frankenstein, alinhavando-a ao livro The Lonely City, de Olivia Laing). A propósito, Luiselli me fez perceber que, se duvidar, só mantenho a cortina fechada para que o vizinho não descubra que passo até doze horas do meu dia diante do computador. Que deprimente. [P.S.: por razões óbvias, evito manjadas ironias com o filme Janela Indiscreta.]

Sendo um pouquinho mais grata por aquilo que tenho, devo reconhecer que a janela do banheiro me oferece uma vista bastante digna. No livro Em Louvor da Sombra, Junichiro Tanizaki destaca os prazeres das antigas latrinas em estilo japonês, ao ar livre, considerando indescritível a sensação de contemplar o jardim pela janela e se perder em pensamentos. Então, enquanto cagavam e apreciavam o luar, poetas japoneses vislumbraram temas para seus haicais*; eu, enquanto tomo banho e aprecio as luzes da cidade, confabularei novas groselhas para este blog. [* = foi Tanizak quem escreveu, tenho nada a ver com isso.]

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Valeria Luiselli exerceu grande papel na conversão desta corredora/andarilha que ora escreve numa ciclista mequetrefe. Destaco que não houve apostasia, pois todo dia ainda é um bom dia para correr/caminhar. Por sinal, essa historinha também começa com a bendita mudança de apartamento. Durante a separação dos itens para doação, a velha bicicleta que viveu encostada por dez anos na parede da cozinha pediu piedade: — Dani, me dá uma chance, confia em mim. Enquanto ponderava com a empoeirada magrela, lancei mão do manifesto de Luiselli a favor das bicicletas.

Luiselli alega que, ao contrário de caminhantes e corredores, o ciclista não está preso ao ritmo e modulações de mais ninguém, estando livre para entregar-se plenamente à solitude e ao doce fluxo dos próprios pensamentos. — Ressalto que ela parece ignorar que, em cidades brasileiras, um ciclista, mesmo trafegando numa ciclovia, corre o risco de ser assassinado por um motorista. Será que as coisas são diferentes no México? Acredito que ela tenha em mente cidades europeias; não sei. — Bom, ressalva feita, afirmo que os argumentos dela sobre o quanto o ciclismo pode ser generoso com o ato de pensar me convenceram em definitivo e fizeram a velha bicicleta sobreviver às doações. Sobre duas rodas, Luiselli me garantiu que o ciclista consegue encontrar o ritmo perfeito para observar a cidade, pondo-se na posição simultânea de testemunha e agente. Lendo as palavras da autora, tive a impressão de que a bicicleta poderia me proporcionar prazer semelhante àquele de olhar por uma bela janela. Hoje, após alguns bons passeios, confirmo que Luiselli está certa: aquele que descobre o ciclismo como uma atividade sem finalidade específica sabe possuir uma estranha forma de liberdade comparável apenas àquela do pensamento ou da escrita. Quem não tem janela, pensa com bicicleta. So it goes. [P.S.: quanto tempo até que eu apareça no blog, escrevendo que caí da bike e quebrei todos os dentes? Se eu continuar procurando passarinhos; logo, logo.]

Para fechar esse ponto do alinhavo, uma última nota. Ignoro se atualmente ainda ocorre entre europeus, mas fiquei encantada quando li, no livro da dinamarquesa Inger Christensen e no do francês Raymond Radiguet, relatos de famílias que, na primeira metade do século XX, fizeram viagens intermunicipais de bicicleta. Ok, talvez não seja tão glamoroso quanto eu esteja idealizando (a canseira; o "detalhe" da 2a. Guerra), porém imagine a vista dessas janelas itinerantes?! 

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No último post sobre os diários de Alejandra Pizarnik, escrevi que a descoberta de uma suposta gagueira da poeta me pôs num estado reflexivo, e a razão, em parte, recai sobre uma passagem do livro de Luiselli. Antes, contudo, quero registrar uma cena do filme visto hoje, o Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami; a qual resgatou estes desvarios gagos. Numa conversa com o ("futuro") marido, a personagem de Binoche diz que a irmã, embora casada com um homem simplório e gago, julgava ter como marido o melhor homem do mundo, ouvindo o MMMMM-Marie como quem ouve uma canção de amor. O interlocutor de Binoche não se surpreende com o relato, compreendendo que o marido gago simplesmente se detém, agarra-se ao nome da amada. O golpe de misericórdia do filme é dado mediante a última fala de Binoche que, na tentativa de convencer o marido a dar-lhes uma chance, suplica: JJJ-James.

Pronto, voltemos à Luiselli, pois sozinha não consigo desenvolver estes pensamentos. Por intermédio da autora, conheci este poema de Ghérasim Luca, Passionément, no qual o eu lírico, gaguejando desde o primeiro verso, declara sua paixão: 

pas pas paspaspas pas 
pasppas ppas pas paspas 
le pas pas le faux pas le pas 
paspaspas le pas le mau 
le mauve le mauvais pas

(...) 

t'aime je t'aime passionnément 
je t'ai je t'aime passionné né 
je t'aime passionné 
je t'aime passionnément je t'aime 
je t'aime passio passionnément

(...)

Luiselli me conta que Luca foi um poeta romeno que teve de abandonar seu país e exilar-se na França, onde escreveu poemas gagos cheios de buracos. Luca habitava o francês, língua que era-lhe estrangeira, levando-o aos limites da sintaxe, ao outro lado da gramática. No ensaio, Luiselli recorda que, segundo Deleuze, quando a língua é tensionada a tal ponto em que a gagueira se inicia, significa que ela alcançou seus limites, passando a confrontar o silêncio. Depois dessa, como não ficar pensativa ao descobrir que uma poeta de quem se gosta pode ter sido gaga? E como não ficar desnorteada quando uma mulher apaixonada pronuncia (*importante: em meio a idas e vindas entre inglês, francês e italiano) o nome daquele que ama deste jeito: JJJ-James? (Ah, se eu te pego, Kiarostami.) 

É; a janela que busco é aquela que me permita mergulhar no silêncio.

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