16/07/2021

Tables only turn when tables learn

Há algum tempo sinto comichão para devanear a respeito de mesas e, se não o fiz antes, é porque a suposta excepcionalidade do tema me refreava. Tonta que sou, esqueci de que uma das maiores satisfações de manter um blog diarinho em 2021 é dispor da liberdade para escrever qualquer bobagem que me apeteça. Ora, e mesas sequer são meras bobagens; não, senhor. Pois falemos de mesas.

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Reparei que não existe emoji de mesa. Está errado, pessoal; está errado.

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Visto que não encontrei na internet (!), não sei mais se existiu ou não; mas sabe (?) quando empresas de colchões tentavam nos convencer a investir uma fortuna em seus produtos, mediante o argumento de que dormimos sobre eles durante cerca de oito horas diárias? Bom, com o atual trabalho remoto / distanciamento social, atinei que, no quesito tempo de uso, minha mesa sobrepujou em importância — e muito  minha cama. Sem qualquer exagero, este é o número entregue por meus cálculos: ~ 11-14 horas/dia sentada à mesa. [Eita; depois reclamo de que estou torta e com dor no pescoço, ombro, coxas, punho, dedos... Talvez eu deva mudar o nome deste blog para Sentada (e travada) entre Livros.)

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A propósito, preciso especificar de que mesa estou falando, afinal. Citei trabalho, no entanto não é a esse tipo de mesa, exclusivamente, que me refiro. Poderia tratar-se da estimada mesa à qual sentamos pra comer, compartilhando refeições com quem amamos; mas não. [Puxa, perdi uma boa oportunidade pra fazer média com o crush chef de cozinha, especialmente porque ele curte montar a comida diretaço sobre a mesa, sem prato nem nada. É, ele aprovaria um post desses.] Poderia ser a mesa de cabeceira, outro prezado objeto. Enfim, diversas mesas passam por nossas vidas; porém, aqui, eu falo da mesa... xi, como adjetivá-la? No meu caso, é a mesa à qual: trabalho, escrevo as groselhas deste blog, vasculho a internet, leio livros, estudo, pinto desenhos feios, escrevo em cadernos, vejo episódios de séries de tv enquanto como lanchinhos, planejo viagens... Ou seja, escrevo acerca da mesa comparsa de todos os dias, um (quase) parque de diversões de quatro pernas.

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Virginia Woolf está certa ao afirmar que precisamos de um quarto todo nosso, mas, se esse quarto não tiver uma mesa, nossa vida continuará um tanto complicada. Não ouso dizer que tal teto seria inútil porque, quando li o livro O Reino, aprendi que, naquela época de Cristo, os romanos pouco usavam mesas, preferindo fazer tudo deitados (dormir, comer, escrever). Espie a cena que o Emmanuel Carrère me pediu pra imaginar: "Vamos supor que Lucas, como Proust, tenha escrito seu livro na cama." Os caras escreveram aqueles evangelhos sem a ajuda de uma mesa amiga?! Fiquei abestalhada pensando nisso. Quanto ao Proust, eu também não estava ligada. Além do mais, sei que, mesmo hoje, há pessoas que, infelizmente, não têm uma mesa toda sua. [Confesso: ainda não li esse livro da Woolf. Será que ela fala de mesas? Tomara que sim.]

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Numa das edições da newsletter Tá Todo Mundo Tentando, Gaía Passarelli compartilha sua mesa parceira; herança do avô. Achei a danada bem ostentosa, e o texto super ajudou a me convencer de que não é tão absurdo querer groselhar sobre mesas. [*Ok; nesta economia, nesta pandemia e com este Executivo, talvez até seja meio absurdo sim, porém insistirei: ter um blog desprestigiado serve justamente pra isso.]
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Tive o prazer de conhecer a querida Alice Secco e, acompanhando a conta no Instagram mantida pela mãe dela (a fotógrafa Morgana Secco), percebi que, puxa, mesas são amigas que nos acompanham da infância à velhice. Lembro com bastante carinho, em especial, da mesa que tive na adolescência. Se falassem, certamente seriam capazes de narrar toda a nossa história (e até a de nossas gerações, pensando no exemplo de Passarelli). 


Agora me diga se aguento a Alice na mesa dela? Meu coração explode pela boca. Aliás, a Alice me ensinou que eu posso usar minha mesa pra brincar de cozinhar cogumelos na manteiga (link aqui)! — Massa demais!
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O que, de fato, me fez observar minha mesa com novos olhos foi a série Dickinson. Obviamente eu conhecia Emily Dickinson, entretanto não fazia ideia de que ela escrevera seus lindos poemas numa mesa tão miudinha. É fascinante pensar que seus poemas, usualmente escritos em minúsculos pedaços de papel, também tenham sido concebidos numa mesa tão pequena. Assistindo à série, não tive dúvidas de que essa mesa é uma das protagonistas da história; tamanha é a presença que ela emana. (Tentei achar algum poema de Dickinson sobre ela, porém não tive sorte. Será que não rolou nada?! Desejo muito vê-la pessoalmente um dia, no museu da poeta.) 


É possível que a constatação dessa mesinha na jornada de Emily Dickinson tenha me tocado porque, até então, eu supunha que, quando eu tivesse uma mesa maior, ah! minha escrita e meus desenhos voariam. Quer dizer, meu problema seria apenas a mesa pequena. Eis que, com a mudança de apartamento, arrumei uma mesa pebinha de madeira pinus, com nada menos que 1,70 m de comprimento, e atesto que meus textos e desenhos continuam uma porcaria. Dickinson prova que nem só de grandes mesas se fazem grandes artistas; e, com minha própria experiência, comprovei que ela está certa. Poxa, até os evangelistas já tinham me garantido que, para que seu texto faça parte da História, um escritor sequer depende de mesa. Por que mesmo eu decidi escrever sobre mesas, hein?!

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Outra escritora que não teve uma mesa enorme é a russa Teffi. Imagine meu entusiasmo quando me dei conta de que, no primeiro texto do livro Tolstoy, Rasputin, Others and Me (nyrb), Teffi descreveria a mesa de que dispunha na pequena pensão onde morou em Paris, após o exílio em decorrência da Revolução Russa. Exato; a autora narra seus encontros com Tolstói, Lenin e Rasputin (!); e o que mais me empolga de verdade é o que ela tem a dizer a respeito de uma mesa. Tal qual a minha, a mesa de Teffi era multifuncional: servia para escrever, jantar, se maquiar/pentear, costurar. Uma vez que consistia em apenas um metro de comprimento, Teffi explica que precisava ser criteriosa com o que mantinha ali à mão. No entanto, ela brinca que os objetos sempre acabavam formando verdadeiras camadas geológicas sobre a mesa, bastando que uma rajada de vento derrubasse tudo e a fizesse desenterrar dos escombros itens há muito dados por perdidos. No arremate do texto, tive a sensação de que Teffi viajou de 1916 para falar especialmente comigo, em 2021:
"I'm not planning to write anything at all big. I think you'll understand why.
We must wait for a big table. And if we wait in vaintant pis."  
("Não planejo escrever nada grande. Acho que você entenderá por quê. Precisamos esperar por uma mesa grande. E se esperarmos em vãonão faz mal.")

    - Teffi; How I live and work (tradução para o inglês: Robert e Elizabeth Chandler)

É possível que eu tenha chorado; mas só um pouquinho.

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Então a mesma pessoa que dia desses leu um livro do Perec (A Vida Modo de Usar) surge "subitamente" escrevendo sobre mesas? Não escondo: tem o dedo do autor nesta minha nova presepada. Em A Vida Modo de Usar, há uma passagem relacionada a mesas que me comoveu um bocado; aquela que aborda a grande mesa de trabalho, diante da janela, da miniaturista Marguerite. O narrador nos diz que, embora Marguerite fosse uma artista bastante precisa e meticulosa, reinava em sua mesa uma desordem completa:
"(...) uma eterna babel, sempre atravancada por uma quantidade de material inútil, um amontoado de objetos heteróclitos, um desalinho sem par cuja invasão precisava constantemente deter, antes de começar qualquer trabalho; (...)

    - Georges Perec; A vida modo de usar (tradução: Ivo Barroso)

[*Por sinal, é o que verifiquei após arrumar uma mesa maior: a sensação de falta de espaço é intransponível, pois, quanto maior a mesa, maior a quantidade de objetos desencavados para pôr sobre ela.] Perec descreve, é lógico, cada um dos diversos objetos que Marguerite deixava em cima da mesa, o que nos permite vislumbrar toda uma vida; é incrível. Quando a personagem morre, seu marido (o notável Winckler) passa o inverno sentado à mesa da esposa, apertando na mão cada um dos objetos que ela havia tocado, olhado, admirado. Depois, um dia, ele atira tudo fora e queima a pobre mesa.

É, cada vez mais convicta de que Perec foi um cara que (*alerta de sacadinha*:) sabia das coisas. Tanto sabia, que — descobri ao acaso recentemente, para minha felicidade — até escreveu um breve ensaio intitulado Notes concernant les objets qui sont sur ma table de travail (integra o livro Penser/Classer) / Notas relacionadas aos objetos que estão sobre minha mesa de trabalho. A partir das reflexões de Perec — principalmente quando ele discorre acerca da transitoriedade dos objetos mantidos sobre a mesa e da falta de lógica/razão objetiva para cada objeto que ali é encontrado a cada momento — pude compreender que olhar para nossas mesas equivale a olhar-se num espelho mágico, capaz de mostrar muito além do nosso exterior e de nosso tempo presente. Acredito que o tocante parágrafo final do ensaio resume bem o que Perec efetivamente pretendeu, quando decidira classificar/listar/pensar sobre os objetos dispostos em sua mesa de trabalho, assim como o que eu mesma pretendia dizer quando cedi ao meu desejo de escrever sobre o tema (grifos meus):
"Ainsi, une certaine histoire de mes goûts (leur permanence, leur évolution, leurs phases) viendra s’inscrire dans ce projet. Plus précisément, ce sera, une fois encore, une manière de marquer mon espace, une approche un peu oblique de ma pratique quotidienne, une façon de parler de mon travail, de mon histoire, de mes préoccupations, un effort pour saisir quelque chose qui appartient à mon expérience, non pas au niveau de ses réflexions lointaines, mais au coeur de son émergence."

       - George Perec; Notes concernant les objets qui sont sur ma table de travail

Embora meu francês seja mega capenga, arriscarei registrar uma tradução da passagem (*com ajuda de tradutor on-line):
"Assim, uma certa história de meus gostos (suas permanências, evoluções, fases) fará parte deste projeto. Mais precisamente, será, mais uma vez, uma forma de marcar o meu espaço, uma abordagem um pouco oblíqua da minha prática diária, uma maneira de falar sobre o meu trabalho, minha história, minhas preocupações, um esforço para apreender algo que pertence à minha experiência, não ao nível de seus reflexos distantes, mas no cerne de seu surgimento."

     - George Perec; Notas relacionadas aos objetos que estão sobre minha mesa de trabalho

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Chegado o fim deste post, sei que deveria incluir uma foto da minha própria mesa, porém as palavras de Perec deixam claro o quanto esse objeto é íntimo e revelador, portanto peço desculpas pelo vacilo da omissão. (Aliás: por que os caras mandam fotos de pintos, quando poderiam mandar fotos das mesas? Francamente.) Como substitutos, escalo uns versinhos extraídos de um poema de Nicanor Parra, intitulado Sigmund Freud. Sim, pois é claro (?) que Freud teria algo a dizer a respeito desse papo de mesa pra cá, mesa pra lá, né?

Sigmund Freud

Pássaros com as penas na boca
Já não se pode mais com o psiquiatra:
Tudo ele relaciona com o sexo.
(...)

(...)
Onde nós enxergamos artefatos
Por exemplo, lâmpadas ou mesas
O psiquiatra vê pênis e vaginas.

 Nicanor Parra (tradução: Joana Barossi e Cide Piquet)


[Será que este post realmente tratou de mesas? Questões.]

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