Daniela: Energia cômica, Byatt?! Puxa, discordo, hein. A única parte, ou melhor, diálogo que achei engraçado foi aquele próximo ao final, no qual Paul D e Stamp Paid questionam se Sethe seria tomada por instintos assassinos sempre que visse um branco pela frente. Os dois riram; eu, não nego, ri junto.
Ignes Sodré: De qualquer maneira, a narrativa, de fato, traz a gente logo para dentro desse mundo completamente diferente — pisamos dentro do 124 como os personagens o farão: do mundo exterior comum para o estranho mundo do 124, um mundo dominado por este bebê fantasma. É escrito de um modo que nos faz ser atraídos para o 124.
Toni Morrison: "Eu queria que o leitor fosse sequestrado, lançado sem dó para dentro de um ambiente estranho, o que seria o primeiro passo em direção a uma experiência compartilhada com a população do livro — assim como as personagens foram arremessadas de um lugar para outro, de qualquer lugar para qualquer outro, sem preparo ou sem defesa."
Daniela: "Atraídos" é uma palavra forte, Sodré. Eu, pelo menos, me perguntei se queria/deveria, afinal, entrar ali. O início do livro me despertou medo e indagações do tipo "quero mesmo entrar e passar tempo numa casa onde um fantasma comete atrocidades contra um cachorro?!"
Toni Morrison: "A escravidão é um terreno sem caminhos. Convidar os leitores (e eu mesma) para dentro de uma paisagem repulsiva (escondida, mas não completamente; deliberadamente enterrada, mas não esquecida) equivale a armar uma tenda num cemitério habitado por fantasmas altamente vocais."
A. S. Byatt: Entendo. "Eu sou Amada e ela é minha" é um eco do Cântico dos Cânticos. Alguém está dizendo: "Eu sou Amada, e portanto ela é minha", mas podia ser Denver falando, podia ser Amada falando, podia ser Sethe falando. São todas mulheres negras que perderam. São todas pessoas mortas também, eu creio, dizendo: "Embora eu esteja debaixo da grama, eu sou amada." Então a voz que fala se move para dentro do navio negreiro enquanto ainda é a voz de Amada na sepultura.
Ignes Sodré: Isto enfatiza a importância do livro não fazer sentido à primeira leitura: o que aconteceu no passado é tão insuportável que só pode ser apreendido de uma maneira fragmentária. O leitor tem que sentir que a história só pode ser contada lentamente em pequenas migalhas, de outro modo seria impossível de digerir.
Daniela: Exato, Byatt e Sodré. Meu começo de leitura foi estranho; sobretudo porque não me sentia segura quanto à plena compreensão do que lia. Cheguei a dar uma passada de olho em comentários de leitores no Goodreads, a fim de sondar se minha inicial desorientação era normal — era. No entanto, captei rapidamente o que Morrison estava fazendo com aquela narrativa, e a leitura passou a fluir mais fácil.
Ignes Sodré: Verdade, Daniela. Você não só sente que nada sabe a respeito do muito que está sendo contado, mas sua imaginação pode correr temporariamente para o lugar errado, para ser corrigida depois por outros pedacinhos de interpretação.
A. S. Byatt: Com Morrison, você precisa ler cada palavra. A little old baby / Um pequeno velho bebê, por exemplo, é linguagem coloquial e, no entanto, no momento em que este bebê está morto, ele se torna o Deus, ele se torna toda a história da sua raça. E, de certo modo, os mortos são velhos porque são parte do passado e dos ancestrais.
Ignes Sodré: Sim, existe nas personagens uma qualidade mítica, uma vez que são descritas em grande detalhe como indivíduos, mas também representam seu passado e sua raça. Além disso, as personagens são pessoas que passaram por experiências tão insuportáveis que têm de estar engajadas em batalhas com suas próprias mentes.
Daniela: Impossível não falar da questão da memória neste livro, sim? A própria forma narrativa a respeito da qual estamos comentando reflete a relação que as personagens estabelecem com suas memórias. Na introdução de Beloved, Morrison afirma a pretensão de criar um contexto onde o esforço hercúleo para esquecer estivesse ameaçado pela memória desesperada por permanecer viva.
Ignes Sodré: Sim, pois este romance é essencialmente sobre a memória, sobre personagens que não querem se lembrar, escrito por uma autora que é poderosa na ênfase de que não devemos nunca esquecer. A memória e a lembrança estão ligadas para manter vivos na mente aqueles que morreram e, portanto, com todo o processo de luto, que implica tanto manter uma relação interna com os mortos como também elaborar a perda. Isto é, naturalmente o que Sethe não pode fazer: ela está tão ocupada pelo fantasma deste bebê, que um processo normal de luto não pode acontecer.
Daniela: Correto; e me agrada a complexidade com que Morrison trata o tema, sem apelar para trivialidades. A importância da preservação da memória mediante transmissão oral entre gerações, por exemplo, surge belamente no livro, por meio das histórias que Baby Suggs e Sethe contam para Denver, quem, por sua, vez, as conta para Amada — papel que Morrison também assume ao escrever Beloved. No entanto, a memória não é retratada com absoluto preciosismo; quero dizer, consigo identificar no texto elementos sugestivos de que a autora concorda com estas palavras de Todorov: "Sacralizar a memória é uma outra maneira de torná-la estéril."
Toni Morrison: "Não queria que as memórias e o passado de Sethe fossem abstratos, eu queria que ela sentasse à mesa com aquilo que tentava evitar e explicar; uma forma de dizer que o passado é isso, é algo vivo que somos obrigados a confrontar."
A. S. Byatt: Morrison descreve a memória de Sethe como uma criança voraz, o que significa que o fantasma de Amada se identifica com sua memória que não a deixa ir embora. Mas isto nos traz uma grande ambivalência na história, porque tanto em Paul D quanto em Sethe sua força é sua capacidade de lembrar e de não serem destruídos.
Daniela: Verdade, Byatt! Você me fez lembrar que o livro destaca o valor de termos pessoas em nossas vidas com as quais podemos compartilhar e dividir o fardo de memórias dolorosas — uma expressão de amor* mediante a memória...? —; o que aparece nesta tocante frase: "The mind of him that knew her own. Her story was bearable because it was his as well—to tell, to refine and tell again." (*: tema crucial na obra de Morrison.)
Ignes Sodré: Outra coisa em relação à memória é que Amada tem uma memória tão fragmentária. Tem apenas fiapos de memória que vêm do outro mundo ou de alguma infância psicótica vagamente lembrada. Quase sem ter memória, ela não se sente uma pessoa real: ela é estranha, ela não consegue se comunicar.
A. S. Byatt: E por ela ter furos de memória, ela possui furos no ego. Suas memórias têm uma qualidade fragmentária que as memórias de nossa infância possuem. Isto se encaixa com aquela cena em que Amada sente que está caindo aos pedaços.
Daniela: Byatt, acho que sua reflexão serve para propor que livros também funcionam como objetos mediantes os quais esbarramos com rememórias que não nos pertencem, conforme Sethe explica a Denver em relação a lugares, neste trecho do livro: "Someday you be walking down the road and you hear something or see something going on. So clear. And you think it's you thinking it up. A thought picture. But no. It's when you bump into a rememory that belongs to somebody else."
A. S. Byatt: Vamos falar de Sethe. O romance se baseia numa história verdadeira, de uma mulher que matou seus filhos para não serem devolvidos à escravidão. É ousado para uma romancista escolher alguém que cometeu tal ato como protagonista e então fazer com que você a ame, simpatize com ela. Ela o faz inventando uma mulher cujos poderes de amar são fortes. Você a considera psicologicamente convincente, Sodré?
Ignes Sodré: Inteiramente convincente, e acho que minha simpatia por Sethe é absolutamente constante ao longo do livro, o que é extraordinário. Reagimos à intensidade da sua dor e ao horror da tragédia, mas nunca, em nenhum momento, contra ela, porque acreditamos em seus motivos.
Daniela: O ponto é que, sem termos passado pela violência extrema da qual Sethe fora vítima (destino que ele pretendia evitar aos filhos), não temos ferramentas, quiçá o direito, de condená-la sumariamente pelo que fez — aliás, nem é preciso, visto que Sethe assume a função de sua própria juíza implacável. Você perguntou, Byatt, se Sethe seria "convincente", mas acredito tratar-se de uma pergunta despropositada, sobretudo quando sabemos que o mote principal de Amada de fato ocorreu, digo, Margaret Garner existiu. Conforme afirmara Morrison, esse evento é maior do que a linguagem. Ao escolher narrar esses fatos, Morrison escolheu narrar o indizível (o que também corrobora a forma escolhida).
Toni Morrison: "Ela reivindicou aquilo que não tinha o direito de reivindicar; a propriedade de seus filhos. Decidiu que podia não só ditar a vida deles, como acabar com ela. E quando sabemos, assim como ela sabia, qual seria o futuro daquelas crianças, não é tão difícil entender a decisão dela."Daniela: A autora comentou ainda que, quando lera o artigo sobre o fato — a história de Margaret Garner—, enxergou nele ideias relacionadas à compulsão pelo cuidar, à ferocidade que acomete uma mulher que se sente responsável por uma criança e, ao mesmo tempo, a tensão de ser uma pessoa separada, completa. Suponho que o fato de eu não ter vivido a experiência materna seja responsável pelo assombro e medo que o dito amor materno me desperta. Sem dúvidas a maternidade vincula-se, no livro, às noções de sufocamento, posse e obsessão que beiram a loucura. Em outras palavras, não nego enxergar pertinência na assertiva de Paul D: Your love is too thick. Também gosto desta frase acerca do amor de Sethe: Locked in a love that wore everybody out.
Daniela: Curiosos seus comentários, pois afirmo que esse livro, em várias passagens, me remeteu a cenas do filme Alien, no que refere-se à relação da mãe com sua filha fantasma materializada. Tudo muito assustador. Parafraseando novamente Paul D, é too thick pra mim, não dou conta; meu espírito é afeito a amores mais serenos — defeito? Qualidade? Vai saber.
Daniela: Também interessante é quando a narrativa nos evidencia que, por consequência, não havia uma comunidade de mulheres formada e consolidada para servir de suporte mútuo na dura tarefa que é criar e ser responsável por uma criança. Fiquei profundamente tocada quando Sethe desabafa que, na criação de seus filhos, não tivera uma outra mulher a quem pedir ajuda, uma orientação, restando obrigada a descobrir sozinha seus caminhos maternais: "I wish I'd a known more, but, like I say, there wasn't nobody to talk to. Woman, I mean. (...) It's hard, you know what I mean? by yourself and no woman to help you get through."
Daniela: Esse destaque para a significância de fortes laços comunitários (sobretudo entre mulheres), é um dos artifícios dos quais Morrison lançava mão para explorar o tema que lhe era tão caro: o amor e a bondade, o Bem. Conforme expôs numa palestra que proferira na Harvard Divinity School, Morrison pretendia que sua obra firmasse contraponto à marcante presença do Mal na literatura contemporânea, o qual, na visão dela, habitualmente surge envolto por ares sedutores e inteligentes, em contrapartida aos tons de asneira reservados para o Bem. Ou seja, a autora era comprometida em narrar o Bem / a Bondade sem os corriqueiros marcadores narrativos do humor, tolice e/ou ironia; e, nesse sentido, o suporte comunitário desponta como uma dos artifícios temáticos aos quais Morrison recorria para atingir seu objetivo.
"You know as well as I do that people who die bad don't stay in the ground."He couldn't deny it. Jesus Christ Himself didn't, (...)"
A. S. Byatt: De fato, Morrison recorre à linguagem bíblica e cristã em Amada, como o faz em toda a sua obra, mas eu a vejo usando estas histórias de uma nova maneira, porque a história cristã também apresenta grandes figuras míticas sofredoras das quais se pode extrair força, mais do que sentir que elas exigem que se parta para a perseguição e vingança.
Ignes Sodré: E Sethe tem fé na possibilidade de uma relação inteiramente boa e por isso é capaz de entregar seus filhos a estranhos. Não é apenas o horror de sua posição, não é o desespero. É o apego à certeza de que a bondade existe, contra a prova de tanto mal. Esta certeza é o que Baby Suggs finalmente perde: o momento em que ela se fragmenta. A crença na bondade—sua existência como uma realidade psíquica—é a única coisa que torna possível esta vida absolutamente intolerável.
Daniela: Contudo, Sodré, há uma fala de Sethe que, depois do que você disse, preciso incluir: "I birthed them and I got them out and it wasn't no accident. I did that. I had help, of course, lots of that, but still it was me doing it, me saying, Go on, and Now. Me having to look out. Me using my own head." Ou seja, considerando-se as críticas que fiz ao tom cristão de Amada, preciso admitir que a narrativa não constrói personagens passivas, digo, que esperam que Deus resolva seus problemas, sem que elas mesmas movam uma palha para isso. Na fala que destaquei, Sethe reconhece os muitos auxílios com os quais contou durante seu percurso (inegáveis e, certas vezes, cruciais), mas isso não a refreia de asseverar que, no fim das contas, a ajuda e feitos maiores tiveram de partir, em primeiro lugar, de si própria.
A. S. Byatt: Amada também é Cristo, ela é ou o demônio ou o salvador, ela é o cordeiro sofredor sacrificado que foi morto em favor do povo. "Muitas águas não podem..."— estou certa de que esta imagem sustenta e fortalece a imagem de Amada no fundo do rio. E o Cântico dos Cânticos é uma extraordinária mistura da imagem sexual e amor religioso, amor de sacrifício e amor paterno. Parcialmente sugere uma espécie de incesto, creio.
Daniela: Ah, olha só, então não estou doida quando enxergo uma forte dinâmica incestuosa entre Sethe e Amada. Bom, ainda há muito o que discutir quanto ao livro — liberdade, cores/colorismo, símbolos (água, sangue, leite, seios), masculinidade, amor, escravidão na literatura... — mas já tomei demais o tempo de vocês. Agradeço-lhes pela paciência de conversarem comigo, Byatt e Sodré.
Ignes Sodré: Foi um prazer.
A. S. Byatt: Até mais.
Toni Morrison: "Quanto aos críticos que me acusam de escrever personagens maiores do que a vida, entendo que eles estariam dizendo que a vida é pequena. Minhas personagens não são pequenas, elas são, na verdade, tão grandes quanto a vida, que é realmente enorme."
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