05/11/2021

Ne me quitte pas; Je t'inventerai des mots insensés que tu comprendras

L'Âge mûr, de Camille Claudel

 
"É inacreditável a frieza dos homens diante do padecimento de uma mulher abandonada sem compaixão. Ainda por cima, criticam as pessoas e se defendem muito bem."

— Sei Shônagon, O Livro do Travesseiro. 
(*Tradução: Geny Wakisaka, Junko Ota, Lica Hashimoto, Luiza Yoshida, Madalena Cordaro)


Embarquei noutro daqueles devaneios nos quais, partindo de um ponto A, chego a um ponto B; porém sem entender por que fui parar ali. De qualquer forma, é precisamente pra isto que (também) me serve o blog: tentar compreender os percursos até os pontos B's e averiguar se, afinal, o ponto B é um destino pertinente ou uma tola fuga de rota. Pois bem, o início desta conversa fiada corresponde ao filme Camille Claudel (1988), do diretor Bruno Nuytten, no qual Isabelle Adjani interpreta Claudel e Gérard Depardieu encarna Rodin — trata-se da adaptação cinematográfica da biografia de Claudel escrita por Reine-Marie Paris, sobrinha-neta da artista. Considerando-se que meus conhecimentos acerca de Claudel se resumiam à escultura A Valsa e  a "um tal envolvimento com Rodin", suponho que não despertarei suspeitas ao compartilhar que o filme (visto em Maio/2021) me pôs num profundo estado de assombro e desalento. Num vexatório exercício de honestidade, assumirei que minha reação, para além da curiosidade despertada pela obra da escultora, partiu sobretudo do seguinte pensamento: ...mas será que foi disso, então, que escapei (fedendo)? Calma, não estou insinuando ser uma artista que se relacionou com um escultor famosão, mas simplesmente que já interpretei o —inevitável? — papel da mulher abandonada. Deprimente e deplorável, é o que me restrinjo a dizer a respeito da experiência. O caso de Claudel, no entanto, é marcado por certas peculiaridades desconsoladoras: eventos ocorridos no final do século XIX, no seio de uma sociedade francesa moralista e machista; protagonizados por uma mulher solteira de meros 20 anos; uma talentosa artista que, em pleno início de carreira, se envolve profissional e amorosamente com um homem casado de mais de quarenta anos, daí colocando-se deliberadamente à sombra de um artista do porte de Rodin (já renomado naquele período). O sentimento de sororidade fatalmente me conduz à ingênua pergunta "por deus; não tinha ninguém para avisá-la da cagada em que se metia?!", porém basta recordar que falo de uma mulher apaixonada (e jovem; pior) para constatar que qualquer alerta seria inútil. O lamentável resultado para Claudel: a perda da razão, uma carreira artística abortada prematuramente e trinta anos vividos internada num hospital psiquiátrico. O chão me escapa. 


Fiquei tão ansiosa para conhecer melhor o trabalho de Claudel que, no mesmo dia em que vi o filme, comprei no sebo o livro organizado pela Pinacoteca de São Paulo para a Exposição Camille Claudel, a qual ocorrera em 1997 no Ibirapuera, com a curadoria de Reine-Marie Paris. Gravei um vídeo bastante improvisado no qual o folheio, só para dar uma ideia do material — ressalto que gostei bastante dos text  textos de apoio.

 

Quanto à leitura, incluirei na postagem estas breves descobertas:

➽ Trecho de uma das cartinhas que o senhor Rodin mandou a Claudel durante o flerte; permeado de uma profecia reversa tragicômica (ah, a vontade de dar um soco...):
"...Não aguento mais, não posso passar mais um dia sem vê-la. Senão é a atroz loucura. Tudo acabou, não trabalho mais, (...) amo você com furor. (...) não deixe que a horrível e lenta doença atinja minha inteligência, o amor ardente e tão puro que sinto por você. Enfim, piedade minha querida, e você mesma será recompensada."

                                                                                                                    — Rodin, 1883. 

➽ Ao ler algumas das cartas escritas por Claudel durante a internação, restou a impressão de que o senso de realidade da artista fora de fato afetado com repercussões clínicas relevantes em sua capacidade funcional (há recorrentes sinais sugestivos de delírios persecutórios, por exemplo). O que permanece bastante questionável, entretanto, é a indicação clínica de mantê-la internada num manicômio — em especial por 30 anos —, impedindo-a de continuar produzindo (se é que desejava). As críticas dirigidas à conduta da família da artista, em especial ao irmão, talvez tenham fundamento. Transcrevo, a seguir, o fragmento de uma dessas cartas, o qual ilustra meu questionamento (grifos meus):

"Haveria ao menos alguém que tivesse reconhecimento e que soubesse oferecer algumas compensações à pobre mulher cujo gênio despojaram? Não! Uma casa de alienados! Nem mesmo o direito de ter meu canto!... (...) é a exploração da mulher, o massacre da artista a quem querem fazer suar até o sangue."

                                                                                   — Camille Claudel; 03/03/1930 

➽ Conheci melhor a obra de Claudel e, neste post, anoto somente dois pontos: 
(1) A Valsa (1895-1905)

Em minhas observações da escultura A Valsa, jamais enxerguei uma saia vestindo a mulher; a qual, inclusive, fora acrescentada por causa do chilique crítico contra a nudez do casal — no desenho de Claudel, fica claro tratar-se de uma saia. O que sempre enxerguei na peça é a imagem de um casal rodopiando a medida que emerge em explosão a partir das profundezas do mar (sim!, uma escultura em movimento...), motivo da presença de algas — e não saia — vestindo a parte inferior da valsista. De qualquer jeito, minha prévia leitura não é equivocada, pois o texto do livro descreve a obra "como uma concha marinha" (boa, é isso que vejo). No mais, confirmei que as heroínas de Claudel se projetam em direção ao céu num grande voo ou espiral quebrados; a ascendente oblíqua constitui o eixo preferido de suas esculturas. Também adorei saber que a música e a dança fascinam as heroínas da escultora, as quais assumem o papel de uma dançarina hindu mais que europeia, dançando sem pés nem pernas, com os braços, com seus dedos e a cabeça jogada para trás.

(2) A Onda (1897)

Uma vez que vejo mar em tudo, mal pude conter o feliz espanto diante da escultura A Onda (não conhecia); esta quarta dimensão onde a pequenez humana se situa frente à imensidão do mundo; uma confusão imaginária com uma força marinha, o fluxo do desejo, da pulsão carnal projetada fora de si.
 
E, opa, super dialoga com as algas que sempre enxerguei (e continuo enxergando rs) em A Valsa. Adorei demais a obra.



➽ Por fim, destacarei uma passagem do texto O espelho e a noite, escrito por Gérard Bouté, pois será fundamental para o alinhavo final desta postagem (grifos meus):
"Assim como o poeta fala por entre palavras, desvia as palavras de seu sentido por subversão da língua comum, também a escultura de Camille, vibrante, construída como um escape, embaralha o mundo das aparências. Ela é feita do desejo. Metamorfoseia o desejo em amor da forma. Transforma o sentido em energia, faz surgir o sentido do corpo de sua massa."

                                                               — Gérard Bouté, O espelho e a noite. 

Este é o aparente momento And now for something completely different (E agora para algo completamente diferente); contudo prevejo que, ao final deste post, a pertinência deste suposto desvio restará demonstrada. Em meio às reflexões propiciadas pela vida e obra de Claudel, por acaso calhei de ler (pela primeira vez) o lindo poema Tríptico, do português Herberto Helder. A foto do danado está na mão:

(*cobri parte de minhas marginálias, pois sou pudica.😁)

Tríptico é o segundo poema da coletânea Poemas Completos (Tinta da China) do poeta, o que complicou um bocadinho minha leitura, pois, após lê-lo, simplesmente não consegui superá-lo e avançar para o próximo. Os versos de Helder persistiram martelando minha cabeça por dias, e me vi obrigada a buscar análises que me ajudassem a entender meu apego. Não esmiuçarei aqui o poema — malz aê —, mas apenas trarei a imprevista chave de leitura que me interessa para meu devaneio. Com o papo de "amador" pra cá e "amada" pra lá, o eu lírico de Helder acaba sugerindo a imediata e fácil leitura de um amor romântico entre duas pessoas, porém o texto Camões Transformado e Re-Montado: o caso de Herberto Helder, de Rui Torres (li aqui: X) chamou-me atenção à leitura que Maria Lúcia Dal Farra faz de Tríptico, a qual enxerga no poema uma metáfora da própria leitura; assim como da própria escrita, conforme complementado conclusivamente por Torres:
"Maria Lúcia Dal Farra vê, também, neste poema uma metáfora da própria leitura onde o amador é o leitor que vem com seu silêncio e seu ruído, e onde a coisa amada é o texto (FARRA 1978: 87), para depois referir a permeabilidade e o espaço físico representados pela amada como sendo a opacidade do texto (OP. CIT. 1978: 88). 
(...)
Deste modo, não se trataria apenas de uma leitura desmistificante do amor platônico, mas também uma leitura do próprio processo de busca que o poeta realiza na escrita. E isso faz-se através da posse, do texto, esse espaço baía onde o amador-poeta  se renova e se transforma, com ele, transformando o mundo. "

       —  Rui Torres, Camões Transformado e Re-Montado: o caso de Herberto Helder

Relendo o poema com essa nova chave em mãos, um novo fascínio certamente se revelou pra mim. Por ora, guardemos este dado: amador e amada se batendo mutuamente —  Escritor  X  Escrita —, transformando o mundo num ruído áspero; alimentando o silêncio do mundo e do amor. 



Para encerrar esta groselha, incluo a grata surpresa que tive ao ler — motivada pela presença de Camille Claudel  — a obra Paixão Simples, de Annie Ernaux (Editora Objetiva, 1992 - Tradução: Adalgisa Campos da Silva). O livro pegava poeira em minha estante há algum tempo; e lembro de tê-lo adquirido num sebo após esbarrar com os comentários de uma leitora dinamarquesa que afirmara ter encontrado nas palavras de Ernaux um alento para a dor provocada pelo fim de um romance. Além disso, se a capa ilustrada pela escultura O Beijo, de Rodin, não for um sinal de que este era o momento certo de lê-lo, não sei o que mais seria.

Em Paixão Simples, Ernaux rememora seu envolvimento amoroso com um estrangeiro casado (a autora é notória por textos autobiográficos, descobri) e, até certo ponto, o livro oferece ao leitor o antecipado: a descrição de um amor tórrido protagonizado por uma mulher apaixonada que, uma vez tomada pela loucura passional, vive, pensa e respira em função do homem amado. Até aí, beleza; no entanto há, pelo menos, duas cruciais ressalvas:

1. conforme Marylène Caron escreve na tese Annie Ernaux, Passion simple et L'occupation: féminisme, autosociobiographie e passion amoureuse (2014; li aqui: X), Ernaux narra sua experiência amorosa sem o sentimentalismo que facilmente se suporia observar. Longe de lamentar a condição de amante abandonada, a autora analisa sua paixão de maneira impessoal, permanecendo na linha estrita dos fatos e sem jamais perder o foco crítico quanto aos eventos recordados. O resultado é que a narrativa de Paixão Simples desvenda a artificialidade do estereótipo comumente ligado à mulher escritora. 

2. a narrativa de Ernaux reiteradamente confronta o leitor com explícitas reflexões metatextuais — em outras palavras, acerca de seu processo de escrita — que parecem operar à semelhança do que ocorreu com aquela leitura do poema de Herberto Helder, causando-me a sensação de que a autora corroborava a chave de leitura que Dal Farra e Torres ofereceram a Tríptico. Em determinado momento da leitura, comecei a me perguntar se Ernaux rememorava um relacionamento amoroso com um homem ou se, na verdade, discutia a natureza de sua relação (amorosa?) com a própria escrita. Para facilitar a compreensão do que tento dizer, listo alguns pontos discutidos pela narradora ao longo do livro:

- Escrita X Sexo?
"... esta deveria ser a tendência da escrita, esta impressão que a cena do ato sexual provoca, esta angústia e este estupor, uma suspensão do juízo moral."

- Viver uma paixão = Escrever um livro?
"...sensação de estar vivendo esta paixão da mesma maneira que eu escreveria um livro: a mesma necessidade de construir bem cada cena, a mesma preocupação com todos os detalhes."

- Em que modo escreve?
"...agora já não sei em que modo escrevo, se é no do testemunho, vai ver é no da confidência nos moldes da que se encontra nas revistas femininas, no do manifesto ou no do processo-verbal, ou mesmo no do comentário de texto."

- Vergonha de escrever sobre uma experiência pessoal?
"... não sinto vergonha de anotar essas coisas, por causa do espaço de tempo que separa o momento em que elas se escrevem, em que na solidão eu as vejo, do momento em que elas forem lidas pelos outros, que aliás. acho que nunca chegará. (...) (Logo é um erro que nos leva a tachar de exibicionista quem escreve sobre a sua vida, pois exibicionista é quem só quer uma coisa: se mostrar e ser visto na mesma hora)."

- Por que escrever memórias?
"O tempo da escrita não tem nada a ver com o da paixão. No entanto, comecei a escrever para continuar naquele tempo, (...)"

- Escrita X Objetos na evocação de memórias:
"(E continua sendo tão doloroso reler as primeiras páginas quanto tocar no roupão de toalha que ele usava (...). A diferença: estas páginas sempre terão sentido para mim, talvez para outros também, enquanto o roupão — que só faz sentido mesmo para mim — qualquer dia já não evocará mais nada (...)"

- Por que escrever memórias II:
"Queria ver que diferença havia entre aquela realidade passada e uma coisa fictícia. (...) (Será que só eu volto ao local de um aborto? Será que escrevo para saber se os outros já fizeram ou sentiram essas coisas, ou para que encarem normalmente o fato de senti-las. Ou até para que as vivenciem também esquecendo que as leram um dia em algum lugar.)"

- O Tempo na Escrita
"Eu poderia parar na frase anterior e fazer de conta que nada do que se passa no mundo e na minha vida tenha qualquer possibilidade de intervir neste texto. Considerá-lo saído do tempo, em suma, pronto para ser lido. mas enquanto estas páginas forem pessoais e estiverem à mão como hoje estão, a escrita está sempre aberta. me parece mais importante acrescentar o que a realidade veio trazer do que mudar um adjetivo de lugar."


Mediante a leitura dessas passagens, imagino que seja fácil entender por que guardei, da análise de Tríptico, a premissa de que escritor e escrita se batem mutuamente numa relação de amor, transformando o mundo; certo? Caso esse alinhavo ainda esteja embaçado, vale partir para a conclusão à qual a narradora de Ernaux chega, por meio da escrita, quanto à paixão vivida com aquele homem casado (grifo meus): "Medi o tempo de outra maneira, com todo meu corpo. Descobri do que a gente pode ser capaz, isto é, de tudo. Desejos sublimes ou mortais, ausência de dignidade, posições e atitudes que eu condenava nos outros antes de recorrer a elas. Sem saber, ele me ligou mais ao mundo."  

No livro Lembrar Escrever Esquecer — li na sequência, incentivada pelas reflexões de Paixão Simples — , Jeanne Gagnebin me apresentou sumariamente ao pensamento de Paul Ricoeur, e confabulo que possivelmente as ideias de Ernaux sobre a escrita se aproximam bastante ao que esse filósofo francês defende quanto à hermenêutica do si pelo desvio necessário dos signos da cultura (destaque para o segundo volume de Tempo e Narrativa). Para sustentar a hipótese, trago este trecho escrito por Gagnebin (grifos meus):
"O segundo volume (Tempo e Narrativa)... Só queria ressaltar o sentimento muito forte que se apodera do leitor, enredado (!) pela estratégia narrativa de Ricoeur. O sentimento de que somente a arte da narração poderia nos reconciliar, ainda que nunca definitivamente, com as feridas e aporias de nossa temporalidade. (...) O tempo nos escapa e, por ele, como que escapamos a nós mesmos; mas a retomada dessa fuga na matéria frágil das palavras permite uma apreensão nova, (...) Uma nova apreensão que, ao criar sentidos, fugazes eles também, permite jogos ativos com o(s) tempo(s) e no(s) tempo(s) (...)"

                     — Jeanne Gagnebin; Uma Filosofia do Cogito Ferido: Paul Ricoeur. 

Com o artigo De l’écriture « comme un couteau » à l’écriture « dans le vif » : Le vrai lieu d’Annie Ernaux (li aqui: X), publicado pela pesquisadora Mariana Ionescu, pude confirmar que o projeto literário de Ernaux efetivamente visa registrar a todo custo a passagem do desejo carnal à escrita, de modo a conferir sentido à opacidade de suas experiências — um sentido não só individual, mas também coletivo; ou seja, a autora pretende intervir em si e no mundo. 

Portanto, após todos esses paralelos estabelecidos, inevitavelmente questionei se essa não foi a saída que escapara a Camille Claudel. Digo; no começo deste post, transcrevi as palavras de Bouté, segundo as quais a escultura de Claudel embaralha o mundo das aparências, metamorfoseia o desejo em amor da forma e transforma o sentido em energia, certo? Então, assim como a escrita é capaz — vide o que aprendi com Helder, Ernaux, Ricoeur, Gagnebin —, será que o amor vivido na escultura também não poderia ter permitido a Claudel reconciliar-se com a dor do abandono? Mediante continuidade de seu trabalho como escultora, Claudel  não teria encontrado um sentido para sua experiência e um novo jeito de habitar o mundo? Ou ainda: ela não teria se transformado numa pessoa mais ligada ao mundo (usando palavras de Ernaux), em vez de desconectada dele? Dada a impossibilidade de obter uma resposta categórica às minhas indagações (e de mudar o passado), me resigno a encerrar este alinhavo lamentando profundamente o que ocorreu a Claudel, desejando que a artista finalmente esteja em paz.

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