06/10/2022

[alinhavando] He'll make a tree from me


Em um grupo de pessoas vestidas de luto
um garoto
olha encantado um pé de caqui.
— Abbas Kiarostami
(Tradutor: Pedro Fonseca)

Assistindo a um vlog de viagem no You Tube (despretensioso, feito por quem não é influenciadora), fui surpreendida pela seguinte confidência da turista: "Estou fascinada pelas árvores daqui. Vou mostrar minha árvore favorita." Sem exagero, afirmo ter sido uma das coisas mais delicadas que já ouvi — num vídeo de viagem, ao menos. Nos dias seguintes, o comentário da vlogueira persistiu ecoando na cabeça e me vi consumida pela triste constatação de que não tenho uma árvore favorita. Por que e como isso aconteceu? Não sei; no entanto fui tomada pela certeza de que preciso encontrar minha árvore favorita. Desse modo, durante as caminhadas no parque, resolvi parar de observar os passarinhos (é um observatório fabuloso), a fim de reparar nas árvores. A dificuldade da empreitada logo superou a prevista, sobretudo porque atinei que sequer sei o que procurar ou registrar, durante a observação. Em outras palavras: o que torna uma árvore a favorita de alguém?

Calculei que seria um bom momento para ler Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos (não, nunca tinha lido), contudo a obra só me deixou mais confusa. Para começo de conversa, Zezé não exatamente escolhe o pé de laranja lima como seu favorito. Na narrativa, o processo corresponde a um feliz encontro resultado do acaso: a família se muda de casa, cada irmãozinho escolhe uma árvore para chamar de sua e, a Zezé, sobra aquele pequenino pé de laranja lima. Descobri, também, que eu não apenas necessito encontrar minha árvore favorita, como terei de nomeá-la. Zezé, por exemplo, batiza sua plantinha de Minguinho, com direito ao apelido carinhoso de Xuxuruca. E até seu amigo português (um adulto) tem uma árvore favorita chamada Rainha Carlota, ainda que ele sempre a trate por Majestade. — Então é isto: todo mundo tem uma árvore favorita, menos eu. Ah, pronto. — Puxa vida, mas como eu poderia nomear uma árvore? Aquelas do parque se apresentam a mim tão imponentes e majestosas que, estou segura, jamais aceitariam ser nomeadas por uma humana. A propósito, o pé de laranja lima de Zezé fala (oh yeah), portanto teorizo que, na verdade, tenho de ouvir o nome das árvores, que elas próprias me dirão. Bom, nem preciso contar que não consegui ouvir nada, preciso? Para ouvi-las, possivelmente tenho de pedir a Deus meu passarinho de volta; aquele passarinho que, segundo o tio de Zezé, eu teria devolvido ao chegar (supostamente) na idade da razão.

Retornando ao vídeo da vlogueira, para checar se ela explica o motivo daquela danada ser sua favorita, me deparei com isto: "Minha árvore favorita, ali está ele. Ou ela. Ele/Ela tem um certo ar que impressiona." Ah, pois é, outro problema a sanar: qual será o gênero da minha árvore favorita? Que imbróglio. Enfim, ao prestar melhor atenção nas árvores, sinto, conforme adiantei, uma presença bastante grandiosa, o tal ar que impressiona dito pela youtuber, porém isso se aplica a todas elas. Por outro lado, notei que cada uma emana, de fato, certa particularidade cuja percepção exige sensibilidade do observador. No ótimo livro Lembranças do Porvir, escrito pela mexicana Elena Garro, há uma passagem que aborda, de um jeito engraçado e preciso, essa questão à qual me refiro. A costureira Blandina vai até a casa dos Moncada, para preparar o enxoval dos filhos da família que partiriam em breve, e informa que, para trabalhar, não pode ficar entre paredes, sendo necessário que ela veja folhas. O detalhe é que não pode ser qualquer folha: 

"—Aqui está bem, dona Blandina?
— Não, não, não! Vamos para lá, em frente às tulipas... estas samambaias são muito intrigantes...!"

Colocada de frente às tulipas, nova queixa:
Muito vistosos! Muito vistosos! - disse com desgosto. Se não se incomodam prefiro estar em frente às magnólias."

Posicionada então diante das magnólias, outra reclamação:
"São muito solenes e me deixam triste."

Após testar a paciência da família, aqui está o ângulo da varanda no qual Blandina se encontra (grifo meu):
"— Daqui só vejo a folhagem; o alheio se perde entre o verde."

                                 — Elena Garro, Lembranças do Porvir (Tradução: Iara Tizzot)


Quer dizer, umas são intrigantes, outras vistosas e algumas solenes. Por sinal, lembro que a série Dickinson também explora brevemente esse mesmo ponto, mediante esta personagem* que atesta a impossibilidade de paz, quando estamos sentados ao lado de uma roseira:  
(* = Ninguém menos que Frederick Law Olmsted, o paisagista responsável pelo projeto do Central Park.)

No meu caso, porém, o que prevalece durante as caminhadas é a forte sensação de ser observada atentamente pelas árvores. Por alguma razão que não sei explicar, inclusive, sinto que elas me observam a partir de suas cascas. É provável que isso decorra do simples fato de que as cascas estão facilmente à mostra, logo na altura de meus olhos, refletindo meu próprio olhar. Além disso, admito que a casca é o que mais tem chamado minha atenção; e fico apalermada diante da encantadora variedade de formas, cores, texturas, desenhos — a imagem no início do post são algumas cascas fotografadas durante recentes andanças. Dessa maneira, conjecturei que encontraria minha árvore favorita, caso seguisse as pistas das cascas. Assim, lembrei que o filósofo Georges Didi-Huberman escreveu um livro intitulado Cascas, o qual saquei para imediata leitura. Tal qual Meu Pé de Laranja Lima, o livro de Didi-Huberman não me ajudou tanto, visto que a obra realmente concentra-se na reflexão filosófica acerca de como recordar/ler o passado do holocausto; quer dizer, como construir e preservar essa memória para efeitos no presente. Simultaneamente, porém, foi bastante intrigante constatar que, durante a visita ao campo de concentração Birkenau, o filósofo foi tomado pela urgência exata de arrancar lascas de cascas das Bétulas que povoam o bosque daquele local. Nas palavras do autor (tradução: André Telles): "(...) três lascas de tempo. Meu próprio tempo em lascas: um pedaço de memória, essa coisa não escrita que tento ler; um pedaço de presente aqui, sob meus olhos, sobre a branca página; (...)". Ao descrever as Bétulas que testemunharam o horror ali cometido contra os judeus, Didi-Huberman diz que seus troncos possuem uma enorme força visual que chega até a tornar discreto o arame farpado, os postes de cimento e os fios eletrificados do campo. Ainda segundo o autor, as Bétulas transmitem uma paradoxal serenidade verdejante, com toda a delicada beleza dos troncos brancos com suas manchas, que evocam resquícios de alguma partitura musical. Em consequência, ele me ajudou a perceber que os relevos de um dos troncos que avistei remete a caixinhas de música (!).  Ao contrário de Zezé, quem sabe eu precise estar atenta para ouvir não a fala verbal, mas sim a música das árvores...? Melhor: tocá-las para ouvi-las? [Vixe, neste ritmo, logo virarei a louca que abraça árvores.]


Didi-Huberman assegura que a casca das árvores não exatamente equivale àquela mera superfície que esconde a verdadeira essência das coisas; afirmando que as árvores se exprimem pela casca; ou que, em todo caso, elas se oferecem ao exterior mediante as cascas. Esse pressuposto é usado pelo autor como metáfora para fundamentar a necessidade de olharmos feito arqueólogos o espaço soterrado do campo de concentração, a fim de localizar elementos que ajudarão a firmar a memória daquele evento histórico. Embora a fundamentação faça sentido, não nego que ela acabou por estremecer minha impressão de que as árvores estariam me encarando de volta a partir de suas cascas; quero dizer, a palavra "superfície" permaneceu piscando pra mim. Para piorar, durante a rápida pesquisa feita objetivando rememorar informações biológicas sobre cascas, esbarrei com o óbvio: essa é a parte morta da árvore, logo como elas poderiam estar me enxergando pela casca?! Felizmente, entretanto, meu sentimento de estupidez se esvaiu quando minha memória catapultou à superfície (😉) um trecho do ensaio The Naive Reader, no qual a poeta dinamarquesa Inger Christensen escreve (tradução dinamarquês ➝ inglês: Susanna Nied; inglês ➝ português: minha):
"Eu consigo enxergar uma árvore, enquanto a árvore presumivelmente não consegue me enxergar. Mas o que significa "enxergar"? Isso é linguagem humana. É claro que é correto dizer que uma árvore não enxergou nada, porém, à sua maneira, a árvore me enxergou. Ela registrou presença humana, nem que tenha sido nada além da poluição do ar. (...)"

                                                             — Inger Christensen, The Naive Reader 

Certo; reescreverei, portanto, minha declaração: as árvores do parque registram minha presença. O curioso é que, naquela mesma pesquisa, o Google acidentalmente (?) me mostrou um artigo que aborda a possibilidade de avaliar a qualidade do ar a partir do estudo da casca das árvores. (Link: X)

Ao revisar os procedimentos desta busca, aventei a possibilidade de que talvez eu não esteja observando direito; falha que potencialmente possa ser corrigida, caso eu me dedique ao desenho e à pintura das árvores do parque. Essa hipótese me foi soprada ao ouvido pelo pintor David Hockney que, no livro A Bigger Message, explica a Martin Gayford que desenhar nos permite ver melhor e cada vez mais claro, nos permite enxergar o mundo com maior intensidade. Na ocasião em que tivera essa conversa com Gayford, a obra de Hockney estava marcada pela presença de árvores que, na opinião do pintor, são a maior manifestação de força vital que testemunhamos, cada uma única — e Gayford complementa (no que Blandina concordaria): gigantes vegetais, algumas heroicas, algumas elegantes, outras sinistras. Fiquei aliviada quando Hockney acrescenta que árvores não são fáceis de desenhar, especialmente a folhagem — "não parecem seguir as leis da perspectiva, com linhas seguindo em todas as direções" — porque eu mesma enfrento muita dificuldade ao tentar desenhá-las. Das pinturas que já fiz, gosto desta onde, sem surpresas, predominam tronco e casca (*aquarela):


O que ocupa minha mente nos momentos em que contemplo as várias árvores do parque, em especial agora que sinto e vejo incontestáveis sinais de envelhecimento em meu corpo, é sobretudo o verso de Tom Waits usado para intitular esta postagem: He'll make a tree from me / ~Ele fará, de mim, uma árvore  (música Green Grass voltando ao blog). Ou seja, é o pensamento de que se aproxima a hora em que cederei todos os meus átomos para a eventual constituição de uma daquelas (ou outras) árvores. Nem de longe trata-se de um sentimento mórbido ou pesaroso. Juan Ramón Jimenez, no lindo livro Platero e Eu, escreveu de modo muito mais bonito e certeiro o que tento expressar. Colarei o trecho aqui, extraído do breve poema em prosa no qual o autor nos diz o que percorre seus pensamentos, quando ele avista o pinheiro no alto da montanha da cidade espanhola de Moguer (grifo meu):
"Quando, no vaguear de meus pensamentos, as imagens arbitrárias se colocam onde querem, ou nos instantes em que há coisas que se veem como numa segunda visão e à parte do que é distinto, o pinheiro do Alto da Montanha, transfigurado como que num quadro de eternidade, surge-me mais eloquente e mais gigantesco ainda, na dúvida, chamando-me para descansar em sua paz, como o término verdadeiro e eterno de minha viagem pela vida."

                              — Juan Ramón Jiménez; Platero e Eu (Tradução: Monica Stahel)

Por ora, sou obrigada a encerrar esta postagem sem que eu tenha encontrado minha árvore favorita. Acredito que seja uma questão de acaso realmente. Ou talvez eu não esteja pronta. Não chegou a hora? Falta a vivência de uma história, que construirá uma memória afetiva? No máximo, tenho uma árvore que já há algum tempo me é muito querida: um ipê amarelo localizado em frente à rodoviária de Brasília. Quando está todo florido, esse ipê vive rodeado por pessoas tirando fotos; porém basta que suas flores amarelas caiam e seus galhos sejam tomados por abundantes folhas verdes, para que todos esqueçam dele. Desde que notei isso, faço questão de travar um diálogo silencioso com o Ipezinho da rodoviária, sempre que passo por ele durante trajetos de ônibus: "Olá, Ipezinho, estou te vendo e você segue bonito como sempre." Ao mesmo tempo, que sei eu daquele Ipezinho? É possível que ele nem curta a badalação e prefira não ser importunado. Sua voz ou sua música, nunca consegui ouvir, então eu não saberia dizer. De qualquer forma, ressaltarei que estas duas do parque em que caminho, que aparentam se abraçar (brigar por espaço?! xi), aos poucos me fazem sorrir:

11/08/2022

[alinhavando] Em que espelho ficou perdida a minha face?

 [— Retrato, Cecília Meireles]

Em Seeing Ourselves - Women's Self-Portraits (2016, edição revista e atualizada), Frances Borzello reúne autorretratos de mulheres (curadoria focada na Europa, notadamente Inglaterra; iniciando-se no século XVI), com a finalidade de investigar as razões por trás da maneira com que artistas mulheres se retrataram ao longo dos séculos. Em linhas gerais, a autora defende que os temas e gêneros observados nos autorretratos resultam largamente, em cada período, da combinação destes principais fatores: a respectiva situação das mulheres no mundo das artes, as ideias contemporâneas e os estilos artísticos do momento histórico específico. Quer dizer, não é possível falar de uma suposta essência fixa da artista mulher, pois costumes e atitudes de cada tempo afetam a concepção do trabalho e, claro, a leitura feita pelo público. 

Alguns elementos tornam instigante essa perspectiva do autorretrato (pra mim, pelo menos). Primeiro, há enorme curiosidade em saber o que acontece quando a mulher se liberta da posição de objeto retratado por homens e assume, ela própria, o manejo dos pincéis e das tintas (ou de outro meio), a fim de se autorretratar. Além disso, Borzello faz uma ressalva pertinente: no momento de planejar um autorretrato, as mulheres que iniciaram essa linhagem artística não tiveram referências nas quais se ancorar. Para modelos e parâmetros formais em pinturas de paisagens, por exemplo, elas sabiam a que recorrer; porém como uma mulher deveria se autorretratar? Os autorretratos feitos por homens não se mostravam apropriados, pois, em épocas passadas, dificilmente uma mulher ousaria se apresentar com o mesmo ar altivo, orgulhoso ou de boêmio desleixado, habitualmente observados naquelas obras. Ou seja, as artistas precisaram encontrar sua linguagem. No mais, é importante recordar que, até aproximadamente metade do século XIX, havia barreiras artísticas concretas e objetivas a serem superadas, dentre as quais o impedimento de ingressar em escolas de arte e de frequentar exercícios de pintura do nu com modelos vivos — com o agravante de que, durante muito tempo, os nus foram as pinturas mais valorizadas no universo da arte. Aliás, mesmo quando tais espaços começaram a se abrir para mulheres, as dificuldades persistiram. Em 1870, a jovem russa Marie Bashkirtseff se mudou para França com o propósito de estudar arte, e seus diários trazem o valioso registro da dimensão das adversidades enfrentadas pelas artistas, deixando evidente que os professores jamais permitiam às estudantes esquecerem de que eram mulheres. Transcreverei algumas passagens desse diário incluídas no livro de Borzello (tradução e grifos meus): 
"(...) ele (o professor) sugeriu o tema, disse que um estúdio de mulher nunca havia sido pintado. (...) como lhe serviria de propaganda, ele faria tudo para me garantir a maravilhosa notoriedade de que ele tanto falava. (...)  
O que anseio é a liberdade de sair por aí sozinha, de ir e vir, de sentar nos bancos do Jardim das Tulherias e especialmente no de Luxemburgo, de parar e olhar as lojas de arte, de entrar em igrejas e museus, de andar pelas velhas ruas à noite; é isso que desejo; e essa é a liberdade sem a qual não é possível tornar-se uma verdadeira artista. Como posso tirar máximo proveito daquilo que vejo, sendo escoltada o tempo todo; quando, para ir ao Louvre, preciso esperar a carruagem, uma dama de companhia ou um parente?"
                                          — Marie Bashkirtseff, The Journal of Marie Bashkirtseff 

Com Seeing Ouselves, descobri que, no século XVIII, havia inclusive livros que desencorajavam mulheres a usar tinta a óleo — com o fundamento de que são excessivamente difíceis para mulheres, que portanto deveriam se ater ao pastel oleoso e à aquarela e que as desaconselhavam, veja só, a pintar retratos, pois são gêneros que não perdoam erros — as mulheres deveriam, isto sim, dedicar-se à pintura de flores. Bicho; a desfaçatez da galera, né? Depois dessa, me peguei confabulando se o trabalho de Georgia O'Keeffe teria alguma relação com esse fato histórico. Digo, teria passado pela cabeça dela algo do tipo "vocês querem que eu pinte florzinhas? Pois muito bem, pintarei "florzinhas""? Não faço ideia, no entanto me diverti pensando nessa possibilidade.
 
Visto que sequer pretendo resumir ou resenhar este livro, acredito que escrevi até demais. Na verdade, o trago ao blog por causa da surpresa que tive diante da evidência de um histórico diálogo artístico construído não só entre as próprias pintoras (do que resulta a lenta, porém gradativa, formação de uma linhagem), mas também entre mulheres artistas de áreas diversas. Explico. No capítulo sobre o século XX, Borzello ressalta que, alguns anos antes da publicação do livro A Room of One's Own (1929), de Virginia Woolf, já era possível encontrar em quadros de pintoras a temática da importância de um espaço particular para aquelas mulheres que pretendiam seguir carreira artística. Não é fabuloso?! Em retrospecto, me parece um tanto óbvio, contudo assumo que essa possibilidade jamais havia passado por minha cabeça. Dentre as pintoras que inauguraram, naquele século, o gênero de autorretratos baseados na pintura do ateliê da artista, Borzello cita as seguintes (colo, abaixo, imagens das obras inclusas no livro):

- Gwen John ⇒ por duas vezes, pintou seu amado quarto em Paris (1907-9);
- Emily Charmy ⇒ em 1900, pintou o primeiro dos vários de seus autorretratos concebidos a partir da imagem do quarto onde trabalhava;

- Gabriele Münter ⇒ no autorretrato, mostra-se trabalhando em seu ateliê (1909);
- Nina Simonovitch-Efimova ⇒ em 1916-17, produziu um quadro espacialmente complexo, no qual ela figura de corpo inteiro, no espelho de seu estúdio.

Por grata coincidência, acabei constatando que o livro de ficção que eu lia paralelamente à leitura de Seeing Ourselves, Women's Self-Portraits também aparentava dialogar com obras de pintoras. Ao longo do século XX, Borzello refere que a temática da velhice tornou-se cada vez mais frequente nos autorretratos de mulheres, fato possivelmente relacionado (segundo a autora) ao maior número de mulheres artistas e à maior expectativa de vida. Outra distinção é que, a partir desse século, o retrato da velhice feminina nem sempre se revestia de ares, digamos, singelos. A seguir, fixo algumas obras compiladas por Borzello, nas quais a velhice é retratada como uma experiência cruel e macabra; das artistas (em sentido horário, início no canto superior esquerdo:) Käthe Kollwitz (1925-30), Alice Neel (1958), Meret Oppenheim (1964), Helene Schjerfbeck (1945).


Quando alcancei este ponto do livro de Borzello, minha leitura simultânea da obra A Pianista, de Elfried Jelinek, aproximava-se da metade. Por conseguinte, pude constatar que, neste livro publicado em 1983, Jelinek unia-se às artistas plásticas que, desde o início do século XX, começaram a retratar a experiência do envelhecimento sob uma perspectiva dura e brutal. Minha situação chegou a ser cômica, pois eu havia decidido ler A Pianista na esperança de que oferecesse algum conforto à minha própria experiência de envelhecer (desde logo espinhosa), uma vez que o livro supostamente exploraria o tema do erotismo mediante o relacionamento de uma mulher mais velha com um jovem aluno. Puxa vida, o tombo que eu levei — tantas leituras, e ainda não aprendi que literatura não conforta ninguém. Na realidade, Elfried Jelinek é assustadoramente cruel com sua protagonista, uma mulher beirando os quarenta anos, que não conseguiu realizar nenhum de seus desejos; mesmo porque, coitada, mal sabe quais são. As possíveis expectativas de leitura desmoronam tão logo ultrapassa-se o título - A  pianista - e lê-se a primeira frase do livro: "A professora de piano Erika Kohut entra como um furacão no apartamento onde vive com sua mãe." (Tradução: Luis S. Krausz) Quer dizer, a mulher não é pianista, mas, sim, professora de piano. Sem querer ofender professores, há de se concordar que a autora, logo na largada, deliberadamente finca uma distinção relevante nos possíveis papéis da personagem, a qual se aprofunda à medida que conhecemos a trajetória de Erika (ela teria nascido para brilhar como pianista; não como professora). 

Enfim, conforme adiantei, a narrativa de Jelinek trata com uma brutalidade exasperadora o envelhecimento dessa personagem; e, após esbarrar com os comentários de Borzello em Seeing Ourselves, iniciei um levantamento sistemático das respectivas passagens. Revisando minhas anotações, decido trazer estes trechos:


"Por fora, seu rosto ficou grande demais, e esse processo há de continuar por anos a fio, até que a carne sob a pele encolha, desapareça, e a pele se grude na cabeça morta, que não mais a aquecerá. Na cabeleira, fios brancos são nutridos por sucos apodrecidos e se multiplicam sem parar, até que surjam ninhos de um cinza feio, nos quais nada nasce (...)"
(⇒ Está mentindo? Eu bem gostaria que estivesse.)

"(...) vê homens jovens com corpos jovens andando de um lado para o outro, porque, pela sua idade, ela quase poderia ser mãe deles. Tudo o que aconteceu antes de ela chegar à sua idade atual passou, irrevogavelmente, e nunca poderá ser repetido. Mas quem é que sabe o que o futuro trará? Com os padrões elevados da medicina atual, a mulher pode exercer suas funções femininas até uma idade avançada." (⇒ Beleza; então o lance é ligar pra Jennifer Lopez e pedir os contatos dos médicos dela, anotar a rotina de skincare e de musculação etc. Ah, e pedir que ela compartilhe a conta bancária e a genética.)

"Velhas com lenços de cabeça, que dão o último passeio do dia com seus cachorros, esperando que, uma única vez, encontrem um velho solitário que também tenha um cachorro e além disso seja viúvo." (⇒ Jelinek passando o rolo compressor nas ilusões das jovens senhoras. Ok; o lenço e o cachorro - ou gato - até enxergo num futuro próximo, mas será que realmente procurarei um viúvo? Poxa.)

"(...) O técnico Klemmer calcula (...) Erika ainda tem um pouquinho de tempo antes de ir para a cova. (...) Mas, no final, o que conta são só as rugas, marcas, celulite, cabelos brancos, bolsas sob os olhos, poros dilatados, dentaduras, óculos, desfiguramento." (⇒ hahahahahaha 😢)

"Hoje Erika tem o dobro da idade de uma menina de dezoito anos! Ela repete a conta, incessantemente, e a distância entre Erika e uma menina de dezoito anos nunca diminui, mas também não aumenta. A antipatia que ela sente por todas as meninas dessa idade aumenta desnecessariamente essa distância." (⇒ É interessante que Jelinek tenha abordado esse aspecto do rancor em face dos mais jovens. No meu caso, o sentimento volta-se mais para a questão da saúde física (ando cheia de dores); havendo momentos em que me pego pensando coisas do tipo "Olha ali; lá vai o jovem sonso todo se achando, só porque seu pescoço dá conta de sustentar a cabeça." Pior que é engraçado, né? Ai, sei lá.)

Encerrarei aqui, pois acredito que já é possível confirmar o quanto a narrativa de Jelinek reverbera aquelas obras de Käthe Kollwitz, Alice Neel, Meret Oppenheim, Helene Schjerfbeck. [Apenas como registro, anoto minha teoria de que a personagem Erika é, no entanto, um artifício narrativo mediante o qual Jelinek, na verdade, fala sobre/critica a Áustria.] Simultaneamente, é válido ressaltar que nem sempre o envelhecimento surge como algo tão impiedoso nos trabalhos das artistas. O autorretrato pintado por Alice Neel em 1980, por exemplo, me pareceu admirável. Assim o descreve Frances Borzello: 





"Embora ela tenha ares de uma vovó delicada, nada se encaixa no estereótipo; desde as cores fortes e vibrantes até a aceitação de sua nudez. Longe de parecer patética ou feia, a mão direita segurando a ponta do pincel, (...) a concentração em seu rosto confere legitimação de sua nudez idosa." 


Para finalizar, confesso (com certa vergonha) que eu mesma acabei cometendo um autorretrato, o qual encerrará o post. Gosto bastante de desenhar e pintar, porém não tenho talento nenhum; portanto, numa hipotética futura edição atualizada do livro de Borzello, meu pobre autorretrato sequer figurará dentre aqueles das amadoras do século XXI. De qualquer jeito, foi como escolhi me expressar hoje, e talvez isso baste para ilustrar este blog irrelevante. Cogitei explicá-lo, mas sabe como é: ~uma artista não explica sua arte~. 😁
Autorretrato (07/2022; aquarela)
Daniela - Correndo entre Livros

31/07/2022

[alinhavando] Think of me as a train goes by


Sabe o meme do Compadre Washington? Eita; verdade, preciso especificar, pois o compadre já rendeu vários. Eu me refiro àquela imagem em que ele aparece sentado numa poltrona de ônibus, observando contemplativo pela janela, enquanto escuta música (suponho) pelos fones de ouvido. Faz tempo desde que a piadinha estreou na internet, porém me recordo bem do abatimento que senti, tão logo tomei ciência de sua existência. Dado que a premissa parte da palermice oculta em certos contextos humanos, até cabe aplaudir aqueles que primeiro identificaram o potencial da coisa, entretanto não consigo conter o desabafo lamurioso: — poxa, galera, mas precisava mesmo?  Enquanto pesquisava detalhes da real circunstância na qual se encontrava Compadre Washington (não obtive sucesso), o Google me mostrou este tweet de 2015, escrito por @AndrRbro: "Tava escrevendo no ônibus e me senti o Compadre Washington nessa foto."  Exato, AndrRbro! Quero dizer, esse meme tornou impossível (ou quase) mergulhar no particular e especial estado contemplativo — quiçá meditativo — que ocorre durante viagens de ônibus, sem que se escute, ao longe, as risadas de um twitteiro desalmado. Como alcançar, agora, a imprescindível perda de autoconsciência durante esses percursos? 

Bom, pois eu seguiria sentada e chorosa no meu canto, não tivessem dois livros coreanos me devolvido a poesia desses momentos. Bae Su-ah, em Noite e Dia Desconhecidos (2013) e Jang Eun-jin, em No One Writes Back (2008), usam em suas narrativas o mesmíssimo movimento: embarcar, sem destino, num ônibus trem; ou seja, simplesmente embarcar. A Coreia, por suas dimensões exíguas, favorece demais esse exercício, porque, em apenas duas horas — via trem de alta velocidade —, é possível cruzar o país de ponta a ponta (!). Duas horas, no entanto, pode ser pouco tempo para essa sublime modalidade de deslocamento, portanto ambas autoras recorrem especificamente aos mugunghwas 
(무궁화), que são os trens mais lentos (150km/h), antigos e baratos da malha ferroviária coreana. Eles costumam ter mais paradas, circulando por cidades não atendidas pelos trens modernos e velozes. Segundo pesquisei, por cerca de R$ 117,00, compra-se uma passagem para tais trens, num percurso partindo de Seul (norte) até chegar, após 05h53min, em Busan (sul, de frente ao mar). A graça da literatura reside bastante em imaginar o que se lê, reconheço; mas abrir o You Tube e percorrer virtualmente os caminhos de uma história lida é muito legal, assim colo aqui o vídeo a que assisti sobre uma viagem num mugunghwa


Aproveito para registrar novo queixume: por que diabos um enorme país feito o Brasil não tem uma boa e extensa rede ferroviária? Sequer trens de alta velocidade, entre Rio-SP, nós temos. Imagino que seja mais uma das idiotices importadas dos americanos. Ou seria a velha questão orçamentaria? Enfim, na falta de trens, sigamos o exemplo de Compadre Washington: façamos de ônibus, o extasiado rolê. Inclusive, quando usava o twitter, lembro de um tweet no qual um paulista compartilhava seu desejo de pegar um ônibus circular da madrugada apenas para rodar por São Paulo, absorto nas imagens da cidade sonolenta (ou nem tanto). Então, sim, creio que nós, brasileiros, damos nosso jeito. Ainda cabe, porém, chorar nossa escassez de trens, pois, conforme escreveu Adam O'Riordan num artigo do Guardian: "poets take trains / poetas andam de trens" — e não de ônibus, saco; mas, se só tem tu... Tomarei emprestadas algumas das palavras de O'Riordan (em tradução livre), a fim de melhor explicar aquilo sobre o que escrevo neste post e que as autoras coreanas estão abordando em seus livros. [*Acrescento que esta postagem é praticamente uma continuação/anexo do meu texto sobre janelas]:
"Trens permitem que nos movamos por lugares e conversas sem sermos percebidos; (...) Eles nos possibilitam estar no mundo, mas sem tomar parte nele. (...) em trens, ao menos perceptivamente, tomamos emprestado um movimento e omnipotência usualmente reservados a semideuses ou cineastas de filmes de baixo orçamento. Somos presenteados com enquadramentos predefinidos, atalhos, close-ups; nosso repertório visual expande (...)"

                                 — Adam O'Riordan, Why poets take trains (The Guardian, 2008)

Muitas interpretações e reflexões podem ser feitas a partir da premissa que ora discuto, mas a frase que destaquei no texto de O'Riordan guarda aquilo que mais me fascina nesse lance de embarcar sem destino em veículos providos de uma janela para o exterior: a oportunidade de estar num espaço conexo, separado do mundo; o não-lugar. Também gosto de pensar na sensação de pausa no tempo, aquela falsa impressão de que são os outros que se movem (e vivem), enquanto nós usufruímos de um intervalo no jogo, para tomar fôlego e recompor.

Embora Bae Su-ah e Jang Eun-jin tenham usado, conforme citei, esse mesmo recurso narrativo das viagens de trem sem destino, há notáveis diferenças de contexto. Em Noite e Dia Desconhecidos, fui apresentada a Volpi, um poeta estrangeiro que viaja à Coreia para escrever sua nova obra. Para surpresa de Ayami, a coreana que trabalha como guia para o poeta, bibliotecas e cafés não são espaços propícios para a escrita de Volpi. Não; nosso poeta pede que os dois embarquem numa viagem de trem que os permita passar a noite sobre os trilhos, ao que Ayami sugere o mugunghwa (e que admirável paralelo firmado com aquele tweet de AndrRbro e o texto de O'Riordan). O processo da escrita de Volpi ajuda a entender a predileção do poeta pelo espaço ferroviário (grifos meus):
"Mas eu tenho que anotar imediatamente o que me vem à cabeça. Porque as coisas vêm como filmes ou imagens, e não organizadas em orações. Se não for no momento exato, elas simplesmente evaporam. E quando isso acontece, não consigo enquadrá-las em linguagem. Tudo que eu escrevo não passa de esboço, não é a pintura final. Não me importo com o lugar. Esqueça bibliotecas ou cafés. Detesto bibliotecas ou cafés, até quando não estou escrevendo."

                                            — Bae su-ah, Noite e Dia Desconhecidos (Tradução: Hyo Jeong Sung) 

A narrativa de Bae Su-ah não se esquiva de reconhecer a inexistência de glamour no mugungwha — em concordância com o vídeo que anexei, por sinal —, visto que o poeta comenta nunca na vida ter visto  tanta gente junta, causando-lhe a sensação de que teria estourado uma guerra e todos os coreanos tentavam fugir. O comentário da personagem aponta para uma super lotação desses trens, o que, de certo modo, denuncia que a maioria da população coreana não teria dinheiro para pagar as linhas mais rápidas e caras. Ou, pelo menos, que a maioria apela para o sacrifício do trem pebinha, para economizar grana. Ou ainda: seriam os coreanos fervorosos praticantes do "simplesmente embarcar"?!

O contexto narrativo presente no livro de Jang Eun-jin, por sua vez, envolve sentimentos agridoces, sem relação direta com poetas ou escrita. Em No One Writes Back (tradutor coreano-inglês: Jung Yewon), Jihun viaja a esmo pela Coreia com uma mochila nas costas, na companhia de um cachorro cego. Em certo momento de suas andanças, ele esbarra com uma estação ferroviária e decide embarcar num mugunghwa, explicando que trens sempre o fazem lembrar-se do irmão. Ele conta que, quando criança, o irmão, do nada, pôs o chapéu, colocou um livro no bolso e virou, perguntando-lhe: "quer vir comigo? Acabarei me matando se continuar desse jeito." Assustado pelas palavras do irmão, Jihun decide acompanhá-lo, e os dois fogem de casa, embarcando numa viagem de trem sem destino em mente. Durante o trajeto, o irmão lhe diz: Jihun, faça o que você quiser da sua vida. Entende? Não deve haver mais que uma criatura estranha numa família." Jihun afirma que, naquele instante, compreendeu que, graças ao irmão, ele pôde seguir vivendo do seu jeito. Os dois acabam retornando para casa, e o irmão tira a nota mais alta no vestibular; desse modo demonstrando que, durante a viagem, decidiu (conformou-se?) correr atrás do sucesso como a maioria das pessoas do mundo. Ah, e a preciosa cereja do bolo: "(...) nunca mais leu romances (...)." Quer dizer, o irmão de Jihun tomou um trem para movimentar-se numa pausa do jogo, e assim decidir que estratégia seguir. (Se acertou/errou, eu não saberia dizer.) No mais, como curiosidade, incluo o que Jang Eun-jin diz a respeito de coreanos em trens (real? ficcional?): todos os passageiros batem palmas ao final da passagem por um túnel.

Após tais leituras, portanto, resolvo aconselhar a mim mesma: 
   — Daniela, prossiga com suas viagens de trem ônibus, olhando contemplativa pela janela, pois esses piadistas de internet não manjam nada.

[Atualização em 02/08/22:] Estava organizando minhas pastas, quando reencontrei este vídeo gravado em 01/2020: eu toda contente num vagão do metrô de BSB que, em plena tarde de um dia útil da semana, estava vazio. Na falta de bons trens, o metrô daqui até pode quebrar um galho, com seus janelões generosos (mas só nos trechos não subterrâneos, claro). 

18/07/2022

[alinhavando] mas, vovó, eu sei tão pouquinho...

Recentemente assisti pela primeira vez ao filme Yi yi (Edward Yang, 2000), e duas tocantes passagens dialogaram com elementos marcantes de dois livros lidos ano passado. A propósito, a surpresa de reencontrar essas questões na obra de Yang me ajudou a melhor assimilar minhas reações. Tentarei um breve registro desses paralelos. [*Spoilers, etc.]


(1) No filme Yi yi, a Vovó da família Jian acidenta-se, evoluindo para coma. Quando o médico dá alta hospitalar à paciente, transferindo-a aos cuidados domiciliares, recomenda que sempre conversem com a Vovó — mesmo que ela não responda —, a fim de estimular o sensório da idosa. Assim, diligentemente seguindo tais recomendações médicas, os amorosos familiares alternam lugar como interlocutores diários de conversas unilaterais com a Vovó comatosa.

Na cena capturada pela imagem colada acima, vemos Min-Min ao final de mais um papo com a mãe, momento em que colapsa em lágrimas, desabafando para o marido:
"Não tenho nada a dizer pra mamãe. Repito as mesmas coisas todos os dias. O que eu fiz de manhã, à tarde, à noite... Leva só um minuto. Não aguento isso. Eu tenho tão pouco! Como pode ser tão pouco? Minha vida é um vazio! Todo dia... todo dia pareço uma boba! O que eu faço todo dia? Se um dia eu ficar como ela..."

Quem não viu o filme possivelmente suspeitaria que o desabafo de Min-Min é consequência da exaustão relacionada aos cuidados de um parente idoso e doente, porém este não parece ser o caso — vale acrescentar que eles podiam contar com o auxílio de serviços de enfermagem. Assistindo ao trecho (e ao desenrolar da vida da personagem), a impressão é que a exigência de conversar todos os dias com a mãe, a qual era implementada mediante o artifício da narrativa em voz alta da própria rotina, obriga Min-Min a reconhecer e encarar aquilo que já estava consumindo-a intimamente. De certo modo, a circunstância parece se aproximar à experiência de uma sessão de terapia, dado que a verbalização dos pensamentos — a transformação das inquietações em palavras orais — forçou a personagem a constatar e compreender seus sentimentos. Com intuito de confortar a esposa, o marido decide que a enfermeira passaria a ler o jornal à Vovó, na esperança de que continuariam cumprindo a prescrição médica. Além disso, Min-Min resolve partir para uma espécie de retiro budista nas montanhas.

Enquanto via essa sequência, a lembrança de Miss Jean Hawkins, a protagonista do livro A Five Year Sentence (1978), escrito por Bernice Rubens, voltou-me à memória. Fui apresentada à senhorita Hawkins no instante em que ela saía de casa para o último dia de trabalho na fábrica de doces onde trabalhara por 46 anos. Por sinal, ela partia decidida a se suicidar quando retornasse da festa de despedida. Os planos da futura aposentada são, contudo, frustrados pelo presente recebido dos colegas: um caderno cuja capa de couro preto traz, grafada em letras douradas, a frase "O Diário de Cinco Anos da Senhorita Hawkins". Considerando-se que a personagem sempre viveu a obedecer ordens — uma vida solitária de dois ciclos: infância no orfanato de freiras  → fábrica de doces —, aquele caderno representou o incontestável comando de ter de viver por mais cinco anos; a tal sentença de cinco anos expressa no título do livro de Rubens. 

O início da batalha travada com o caderno remete bastante à situação de Min-Min, pois, durante a primeira semana, Hawkins decide ali anotar o que faz a cada intervalo de tempo. Quer dizer, Min-Min vê-se obrigada a narrar a vida a partir da palavra falada; Miss Hawkins, da palavra escrita. Uma dialoga com uma idosa em coma; a outra, com um caderno — e assim, em certa medida, ambas se veem obrigadas a conversar consigo mesmas. Eis a primeira entrada (*tradução livre minha):

"Segunda. Levantei às 8h30, tomei banho, me vesti, tomei café. Às 13h, almocei. Tomei chá às quatro da tarde. Janta às 19h. Não aconteceu nada."

                                                                                     — Bernice Rubens, A Five Year Sentence. 

Com essa estratégia de escrita, Hawkins constata que a entrada da terça-feira é igualzinha à da segunda, bem como a da quarta-feira, com exceção da omissão das refeições. As páginas são repetidamente tomadas pelo "nada aconteceu". O desânimo para prosseguir escrevendo "nada aconteceu" gera páginas em branco; e o retiro budista nas montanhas ao qual Min-Min apela é, aqui, trocado por dias de cama em casa.

No filme de Yang, essa premissa não é desenvolvida para além deste ponto (até porque Min-Min não é protagonista); enquanto o livro de Bernice Rubens não se acanha em explorá-la por meios assombrosos. Após aquela semana acamada, Hawkins retorna ao caderno e, de impulso, escreve "Saí para comprar comida", daí se veste e sai para cumprir o escrito. Aos poucos, portanto, a personagem aprende a usar o caderno como nova fonte de ordens a serem obedecidas, dessa maneira subvertendo o tempo dos diários, visto que o passado passa a representar o futuro. A medida que a narrativa evolui, as ordens inseridas no caderno tornam-se cada vez mais específicas e audaciosas; e Hawkins sente enorme prazer em cumpri-las, sobretudo em riscá-las da página com aquele check! de missão cumprida. No mais, a relação da personagem com o caderno logo se aproxima àquela de um dependente de substâncias psicoativas, pois ela é tomada por intensa ansiedade quando percebe ter saído de casa sem um comando. Não demora, também, para que ela alcance o ponto em que sequer recorda-se de ter escrito a ordem que lê na página. [Confabulei que o caderno vira quase uma materialização externa do Id da personagem, sei lá.] Após dois anos desse experimento forçado, Hawkins perde a vontade de prosseguir com o plano suicida, pois o diário havia lhe ensinado a não ter vergonha de buscar ativamente prazer na vida. Ao mesmo tempo, porém, a personagem teme o que aconteceria quando o caderno acabasse. Compraria outro? Conseguiria prosseguir sem a autoridade de um diário? Embora pareça que a história afinal segue um rumo feliz e edificante, asseguro que tal dedução não procede em absoluto — na verdade, a história degringola de um jeito assustador; mas manterei a descoberta dos pormenores a eventuais futuros leitores.

Eis aí por que eu, que não sou boba (ok, talvez um pouco), mantenho este blog diarinho conduzido por um fio temático alheio à minha vida. Fora deste espaço virtual, também escrevo num caderno, no entanto sou adepta do Commonplace Book**, e não de diários ou bullet journals. Se eu escrevesse sobre minha vida, as postagens não seriam tão diferentes daquela segunda-feira vivida pela senhorita Hawkins, e eu não daria conta de padecer de crises diárias como aquela da Min-Min. 

[**: Em resumo, são espaços onde anotamos aquilo que cruza nosso caminho e nos interessa; portanto vale tudo: citações de livros, letras de músicas, diálogos de filmes, desenhos, poemas, conversas, pensamentos, reflexões, pesquisas realizadas, trechos de artigos... Eu, porém, uso fichários tamanho ≈ A5.]


(2) O garotinho da imagem acima é Yang-Yang. Nessa passagem final do filme, ele se despede para sempre de sua avó, explicando-lhe por que não pôde conversar com ela durante o coma [*detalhe importante para o alinhavo desta postagem: a criança lê as palavras que ela mesma escrevera em seu caderno; ou seja, com a ajuda do caderno, ficou mais fácil conversar com a Vovó]:
"(...) tudo que eu podia te contar, você já devia saber (...) 
vovó, eu sei tão pouquinho."
Dentre as coisas tão lindas ditas por Yang-Yang, há a menção de lembrar-se da avó, quando ele olha o primo recém-nascido. O garoto fala que a avó, com frequência, dizia sentir-se velha; e agora ele próprio queria dizer que sente-se velho ao ver o priminho que nem sequer tem um nome.
"Vovó, sinto saudade de você, especialmente quando vejo meu priminho que ainda não tem nome, porque me lembro que você sempre dizia que se sentia velha. Aí quero dizer pra ele que me sinto velho também." 
Quando ouvi essas últimas palavras de Yang-Yang, o Asher Lev, protagonista do livro Meu Nome é Asher Lev (1972), escrito por Chaim Potok, voltou a me fazer companhia. Asher Lev é um garoto judeu nova-iorquino, filho da união de duas importantes genealogias do movimento chassidista de Ladov. O pai de Asher, Aryev Lev, chegou à Nova York quando tinha quatorze anos, partindo da Rússia com a família. Aryev formara-se na yeshiva ladoviana, diplomara-se em ciências políticas pela Universidade de NY e trabalha para o Rebbe, sobretudo no auxílio a judeus perseguidos pelo regime stalinista russo. Por causa desse trabalho do pai, Asher teve de conviver com histórias de judeus perseguidos, violentados e torturados (por mais que os pais tentassem protegê-lo). Para além disso, desde muito cedo ele precisou encarar o embate entre sua religião e sua vocação artística para a pintura. Durante a semana em que passei ao lado de Asher, costumava me sobressaltar quando ele dizia (tradução: Attílio Cancian):
"(...) não é um mundo agradável; (...) não é um mundo bonito. (...) 
Eu estava cansado, e muito cansado mesmo."

                                                                                             — Chaim Potok, Meu nome é Asher Lev

Uma criança de 08 anos sentindo-se velha; outra de 10 anos já sentindo-se tão cansada... É, Asher, o mundo às vezes não é exatamente agradável; no entanto, conforme reconheceu Yang-Yang, nós sabemos tão pouquinho, não é mesmo? Quem haveria de entender o que isso tudo significa? Yang-Yang disse que a Vovó sabe muitas coisas; então, quando eu chegar lá no lugar para onde ela foi, lhe perguntarei. A julgar por quão cansada e velha me sinto, devo chegar logo, logo. 

19/06/2022

[off-topic] And I draw a line to your heart today

Considerando-se (1) que reativei o blog e (2) que o estado deplorável do meu pescoço parece ter encerrado de vez meu impróspero futuro de artista; trarei pra cá alguns desenhos que fiz em 2022 (e umas velharias). Antes dos desenhos, porém, darei continuidade à proposta do post anterior, anotando alguns de meus encontros legais sobre o tema.

(*Arquivando desenhos/pinturas no Instagram: dani.x.ela)
...

🎨 Ano passado assisti ao Os Amantes de Pont-Neuf (Leos Carax; 1991) e achei muito bonita a sequência e o paralelo estabelecido entre as cenas iniciais e finais, nas quais Michèle, personagem de Binoche, desenha um retrato do amante, interpretado por Denis Lavant. Colo aqui uma edição breve (há spoilers, é lógico), mas também vale ressaltar a tocante cena à noite no museu, na qual Michèle, com ajuda de uma vela e de um ombro amigo, observa um dos autorretratos de Rembrandt, possivelmente pela última vez (ela estava prestes a perder a visão). 



🎨 Já neste ano, finalmente vi A Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010), do Herzog. Na sequência, aproveitei para ler um texto de Gilda de Mello e Souza — na verdade, a transcrição de uma palestra que ela proferira em 1954, na Sociedade de Psicologia de São Paulo — chamado O Desenho Primitivo, incluído no livro Exercícios de Leitura, publicado pela Editora 34. O tema é fascinante e, desse texto, escolho guardar aqui dois pontos:


(1) A ressalva feita por Gilda de Mello de que, nas sociedades primitivas, raramente encontramos um desenho que se encaixa na habitual definição de desenho — quer dizer, a arte do contorno — , pois quando a poesia ainda não se separou da música e esta continua apoiando-se na dança; quando são 'impuras' todas as manifestações artísticas, também ao desenho vemos associar-se uma série de elementos alheios ao contorno que, falando aos sentidos, anulam o caráter abstrato do traçado (...). Abracei demais essa ideia de manifestação artística impura (é contorno, é poesia, é música, é dança, é instrumento de magia religiosa... é tudo!), o que explica muito aquilo que sentimos ao contemplar as imagens dos desenhos no documentário de Herzog.

(2) Gilda de Mello faz questão de pontuar a distância entre o desenho primitivo e o desenho infantil (dado que percepções rasas tendem a aproximá-los). Ao mesmo tempo, porém, ela aponta uma magnífica semelhança (grifo meu): 
"(...) uma finalidade utilitária, mágica ou intelectual. maneira de apreender o mundo e sobre ele agir, grafia da percepção, (...) visa sempre menos uma imagem que um saber, como diria Sartre. Onde o vocabulário é precário e a palavra ainda não se empenhou na descoberta do mundo, é através do contorno que o primitivo ou a criança apalpam a realidade, exploram o objeto, exploram o objeto, chegam à noção abstrata das coisas. (...) Assim o desenho estará preenchendo a sua verdadeira função, que é, segundo as belas palavras de Alain, "fixar o homem e parar o curso do tempo"." 


🎨 Por falar em desenho infantil, anotarei um diálogo simples e surpreendente que encontrei no lindo livro Meu Nome é Asher Lev, de Chaim Potok; o qual li no fim do ano passado, na tentativa de continuar vivendo a narrativa do querido Akiva, personagem da série israelense Shitsel. (Esse livro provavelmente retornará noutros momentos ao blog — ou não.)


"Olhando para um dos meus desenhos, disse-me ele certa vez: — Asher, você não tem coisa melhor em que usar seu tempo? Seu avô não teria gostado de vê-lo esbanjar tanto tempo com tolice.
 
— Papai, mas isto é um desenho.
— Eu sei que é um desenho.
— Mas, papai, um desenho não é uma tolice.
Ele me olhou surpreso, sem dizer uma palavra. Naquela época eu tinha quase cinco anos de idade."
      — Chaim Potok, Meu Nome é Asher Lev
                  (Tradução: Attílio Cancian) 

🎨 Fechando ciclicamente, volto aos retratos, fixando o vídeo em que Berger pinta um retrato de Tilda Swinton, o qual só vi recentemente — é trecho do documentário The Seasons in Quincy: Four Portraits of John Berger, o qual ainda não consegui assistir. Além da técnica mais fluida, adorei o anteparo de madeira (novidade pra mim) que Berger usa para fixar o papel — deve funcionar melhor que a fita crepe. E tão, tão bonita a mirada de Swinton para Berger...  — Não tem jeito, o olhar de um retratado para o pintor que o retrata é sempre uma imagem muito potente. Trata-se de um momento que mistura tantas coisas: vulnerabilidade, generosidade, curiosidade, intimidade, comunhão, erotismo, amor... Sempre me pega, razão porque precisei fixar aquele sequência do filme do Carax. 

Ah, e a participação especial do livro de Victor Serge? Se está no catálogo da NYRB e foi lido por Berger, eu boto fé; mandei pra fila (Título: Unforgiving Years). 

"We, who draw, do so not only to make something observed visible to others, but also to accompany something invisible to its incalculable destination."

                                                                                                                        

...

Ok; alguns de meus desenhos ruins deste ano, que me deixam feliz. [E agora que meu pescoço pediu arrego, meu querido hobby resta encerrado, infelizmente. (..) Calma, sigamos com o tratamento, né? *suspiro*]:

[*referência do desenho: cena do filme Bande de Filles, de Céline Sciamma // aquarela.]


[referência do desenho: cena do filme La Grande Bellezza, de Paolo Sorrentino // aquarela]


[referência do desenho: foto publicada pela conta Ig @dzulfikri72; fotógrafo Dzulfikri // lápis de cor.]


[*referência do desenho: foto postada pela conta do Instagram @nomibis; Fabienne Nomibis // guache.]

[*referência do desenho: imagem compartilhada por Taemin (태민), com sua gatinha Kkoong (꿍) 🖤 // grafite + lápis de cor. /// Poxa, o desenho original ficou tão mais bonitinho... A qualidade é bem melhor no Instagram: aqui. O Blogger não ajuda; e não sei digitalizar direito grafite e lápis de cor, o scanner sempre deturpando demais a imagem.]


[*referência do desenho: ... 😬 foto meme da internet? não localizei o crédito específico da foto usada // aquarela + lápis de cor.]
[*referência do desenho: foto da Rihanna durante a gravidez, em 2022 // aquarela.]

[referência do desenho: fotos publicadas pela conta Instagram @2ah.in // aquarela.]


[*referência do desenho: foto de Maggie Cheung, por Wing Shya, para a revista i-D 2004 // guache.]


[referência do desenho: imagem do clipe para a música Vai Quebrando (Desce que Desce), do Heavy Baile; com a dançarina Celly IDD. // lápis de cor.]

...

Uns desenhos mais velhinhos, os quais trago de volta porque se perderam quando desativei o blog ano passado — e porque gosto muito deles:

[*referência do desenho: cena da série documental Tiny World - Apple TV // lápis de cor.]

[*referência do desenho: cena do filme Ratcatcher (1999), de Lynne Ramsay // aquarela.]

[*referência do desenho: puxa, perdi; mas era uma foto de senhoras no mar morto // aquarela.]

[*referência do desenho: foto da Malala no Graduation Day, 2020 // aquarela.] 

[*referência do desenho: Carreta Furacão! rs // aquarela.]

That old convenience store, those tired faces and those haunted eyes

Durante a ronda por dramas coreanos à qual me dediquei ano passado, diversas foram as obras malogradas, dentre as quais consta Loucos um pelo Outro. Embora eu não tenha sido capaz de sequer finalizar o primeiro episódio, houve uma passagem específica da série que me tocou bastante. Falo da sequência em que o protagonista, um policial afastado do trabalho em decorrência de transtorno explosivo intermitente, janta lámen industrializado (tipo cup noodles®) harmonizado com uma garrafa de coca-cola, numa loja de conveniência. Ah, e sozinho. Bicho, conjecturei que aquela possivelmente seria uma das cenas mais deprimentes já concebidas pela dramaturgia coreana. Enquanto tentava entender a razão de meu desassossego diante daquilo, imagino ter sido abençoada por uma feliz epifania: mas, ora, se não é praticamente uma versão do quadro Automat, de Edward Hopper?! Entretanto elementos mal explicados persistiam, sobretudo porque — conforme Alain de Botton também reconhece num artigo para o site do Tate Museum—, os quadros de Hopper não me despertam tristeza/melancolia, ao passo que a imagem coreana me pôs num estado de franco desamparo. Naquele mesmo texto, Botton assinala pontos a respeito de Automat que me auxiliarão a delimitar divergências entre o quadro de Hopper e o de Loucos um pelo outro (*tradução livre por minha conta):

(1) Botton: "A mulher aparenta estar autoconsciente e ligeiramente amedrontada, mal acostumada em estar sozinha num espaço público. Algo parece ter dado errado."
Exato! O quadro coreano, em contrapartida, é tomado por uma normalidade acachapante. Aquele homem aparenta estar super bem acostumado à solidão, e aquela parece ser apenas mais uma das várias noites monótonas de sua vida banal.

(2) Botton: "Ela involuntariamente convida o observador a imaginar histórias para ela, histórias de traição ou perda."
E o policial coreano? Para que perder tempo imaginando alguma história para aquele homem, quando a situação sugere ser a mesma velha história mundana de tantos? (Vixe, acho que estou pegando pesado com o cara.)

(3) Botton: "A despeito da austeridade dos móveis, o espaço em si não aparenta desolação".
Poxa, essa é a descrição oposta de uma loja de conveniência! — na minha opinião, veja bem. Móveis sem personalidade, mesas rodeadas por prateleiras entupidas de quinquilharias, e o horror supremo: a nauseabunda luz branca fluorescente. Botton também ressalta o espaço bastante iluminado de Automat, mas defendo que estamos lidando com luzes distintas. Sinto que a luz noturna de Hopper preserva o calor da marcante luz solar presente em suas imagens diurnas, estando assim muito distante da frieza com que a luz branca afoga aquele que faz uma refeição numa loja de conveniência. [A propósito, que conceito, comer dentro de um quadrangular aquário branco.]

(4) Botton: "Outros podem estar sozinhos naquele espaço, homens e mulheres bebendo café sozinhos, igualmente perdidos em pensamentos, igualmente distanciados da sociedade."
Aí que está: o telespectador sabe que o policial é a única pessoa (excluindo-se a funcionária) a habitar aquele recinto. E ele não está bebendo um café fresco preparado com grãos de qualidade. Ele é um adulto se entupindo de miojo e refrigerante. "Distanciado da sociedade", ele com certeza está; neste ponto temos realmente um encontro entre as imagens de Hopper e a do drama coreano. 

(5) Botton: "Hopper nos convida a sentir empatia pela mulher em seu isolamento".
Embora eu não possa falar por todos os telespectadores, afirmo que aquela foi a cena que me afugentou em definitivo da série, a gota d'água. E, dado que me esforço em praticar a máxima honestidade (razoável) neste blog, nem esconderei que pode ter ocorrido comigo o mesmo que a Freud e seu reflexo no vidro do trem — o tal sobressalto provocado pelo estranho familiar. 

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Quando já tinha me esquecido desses pensamentos, eis que um livro coreano me empurrou novamente para dentro de uma loja de conveniência. E o desconcerto, meus amigos, nem conto. Ou melhor, conto sim (na tentativa de entender).

No adorável** No One Writes Back [(~Ninguém escreve de volta), tradução coreano → inglês: Jung Yewon], a autora Jang Eun-jin me apresentou a Jihun, um rapaz que abandonou tudo para viajar pelo país apenas com uma mochila nas costas, um livro, um tocador de mp3 (a obra é de 2013) e um cachorro cego. Em suas andanças pela Coreia, Jihun mostra-se aberto a conhecer pessoas e, quando retornava aos diferentes motéis onde passava as noites, sentia prazer em escrever cartas para alguma delas. Pois imaginem meu susto quando o viajante me contou a história do Número 56 (Jihun preferia números a nomes), o homem em situação de rua que, numa loja de conveniência, disparou-lhe a pergunta: "Quando uma loja de conveniência mais se parece com uma loja conveniente?" Jihun, um tanto surpreso pela inesperada pergunta, responde que é quando ela convenientemente atende às suas necessidades prementes (imaginação passou longe, tadinho). Após recuperar-se do espanto de ter sua pergunta respondida pela primeira vez, Número 56 diz que Jihun está errado, pois uma loja de conveniência mais se parece com uma loja conveniente quando comemos cup noodles. Nem preciso dizer o quão abismada fiquei, preciso? Enfim, Número 56 seguiu explicando suas ideias a Jihun (e pra mim):
"Sem cup noodles, uma loja de conveniência nada mais é do que um cadáver. Não é fantástico? Você paga pelo cup noodles, eles nos dão água quente e uma cadeira de graça; e ainda nos permitem jogar fora o lixo depois que terminamos de comer. Não entendo as pessoas que comem cup noodles em casa. Isso vai contra o motivo do cup noodles existir. Às vezes desejo que as lojas de conveniência vendessem apenas cup noodles. Eu como cup noodles quase todo dia. Eles são baratos, fáceis de preparar e gostosos."

                                —  Jang Eun-jin, No one writes back (아무도 편지하지 않다)

Ainda mais surpreendente é a complementação de 56, segundo a qual a grande variedade de sabores de miojo é outra grande vantagem, pois quando opções lhe são oferecidas, ele não se sente humilhado. Olha, quando li essa passagem, o piso sob meus pés desapareceu e eu retornei flutuando àquelas reflexões propiciadas pela cena de Loucos um pelo Outro, atordoada e sem mais saber o que pensar. O Jihun, por sua vez, me contou que, depois do encontro com o Número 56, nunca mais comeu cup noodles nos motéis, me garantindo que miojo é muito mais saboroso quando degustado numa loja de conveniência, aquecendo-nos por dentro. Talvez Jihun esteja certo, digo, é provável que minha forte reação negativa à cena do k-drama resulte do simples fato de eu nunca ter comido cup noodles numa loja de conveniência. 

Como se isso tudo não bastasse, a narrativa de Eun-jin ainda tem a manha de incluir Edward Hopper na conversa. Um dos motéis pelos quais Jihun passa tem quartos temáticos de pintores, sendo-lhe reservado o quarto de Hopper, porque teria sido o artista que entende como viajantes se sentem. Enquanto observa as pinturas de Hopper nas paredes do quarto do motel, Jihun se dá conta de que Hopper pintou cidades reais. Não importava quantas pessoas cruzassem o caminho de Jihun na viagem; ele sempre enxergava uma mesma pessoa, aquele indivíduo com a mesma postura e expressão de rosto, que sempre olha em direção oposta: através da janela, para um livro, para uma xícara de café ou a si mesmo. Naquela viagem, Jihun se deu conta de que a verdadeira solidão ocorre quando estamos acompanhados. 

** = então agora sou a leitora que diz que um livro é adorável... Meu deus, a idade está me transformando num monstro. 
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Após toda esta minha conversa fiada, talvez fique difícil acreditar que decidi ler o livro de Sayaka Murata com a inocência de que ele não me faria regressar às benditas lojas de conveniência, mas asseguro que assim foi. Os comentários de leitores com os quais eu havia esbarrado a respeito de Convenience Store Woman / Querida Konbini  [コンビニ人間 (Konbini ningen)]  me induziram a antecipar uma narrativa que meramente abordaria o direito, digamos, de uma mulher resolve viver toda uma vida como funcionária de loja de conveniência e, puxa vida, ser plenamente feliz. Lida a obra, desabafo: que baita brisa errada. Na verdade, Sayaka Murata desenvolve uma narrativa bem mais complexa do que isso, a tal ponto que até agora (semanas após finalização da leitura), nem sei ao certo o que a autora pretendeu dizer com essa história —  por sinal, diria que aí está o maior mérito da obra, que é do tipo cada leitor que pense o que quiser. Bom, só sei que gostei, e muito. Ah, e sim, a autora japonesa teve a proeza de me conduzir por corredores de lojas de conveniência inexplorados por mim. [*Uma ressalva: li a tradução para o inglês, feita por Ginny Takemori, cujos trechos traduzirei livremente aqui.]

Para começar, achei engraçado me deparar com um breve diálogo que oferece mais uma resposta àquela pergunta do Número 56:
"(...) estaremos abertos 24 horas, sete dias da semana, ano após ano. Por favor, venha e compre aqui à sua conveniência. 
"Uau, vocês abrem à noite também? E cedo pela manhã?"
"Sim", eu respondi.
"Mas que conveniente!"
Embora Keiko Furukura (a protagonista) confirme aquele meu prévio comentário sobre a normalidade opressora dessas lojas, a personagem igualmente me alerta que esse raciocínio é provavelmente mais intricado do que eu presumira. Veja, de fato a personagem me afirma que a loja de conveniência é um ambiente forçadamente normalizado no qual qualquer matéria estranha é eliminada ou imediatamente corrigida, mas simultaneamente ela assevera que só conseguia ser uma pessoa ordinária e normal enquanto trabalhava na loja — fora dali, Furukura me diz que é uma aberração inútil rejeitada pela sociedade. Ou seja, a menos que eu esteja doida (opa, como não?), o discurso da personagem deixa subentendido que lojas de conveniências nada mais são do que um microcosmo da sociedade, com uma diferença crucial: ali, há um manual; as regras são explícitas, claras e simples, fáceis de serem seguidas até mesmo por uma pessoa "esquisita" feito Furukura. A propósito, suponho que essas mesmas reflexões da protagonista também acabam propondo uma explicação à sensação de acolhimento e aconchego sentida pelo Número 56, um homem em situação de rua. Por tudo isso, acho que me flagrei numa situação à la "o ovo ou a galinha": foi a cena na loja de conveniência que me deixou deprimida ou eu já estava deprimida sem nem perceber? Esse salto nos meus desvarios fez sentido?
"O mundo normal não tem espaço para exceções e sempre elimina calmamente os objetos estranhos. Então é por isso que preciso ser curada. A menos que eu me cure, as pessoas normais me expurgarão. 
(...)
Quando abro a porta, a caixa vivamente iluminada me espera—um mundo confiável, normal, que segue girando. Eu tenho fé no mundo dentro da caixa preenchida de luz."
Prosseguindo com o exercício de honestidade, reconheço que a carapuça do preconceito com a qual a narrativa veste a personagem Shiraha (e vários funcionários da loja, curiosamente) possa me servir. Tal qual Shiraha, é plausível que minha aversão àquela cena de Loucos um pelo outro decorra da habitual associação de lojas de conveniência a pessoas fracassadas, os tais objetos estranhos citados por Keiko e rejeitados pela sociedade. Inclusive, uma aversão intensificada pela plena ciência de que eu própria engrosso a massa de losers do mundo. Quer dizer, trata-se realmente do spoiler que dei no início do post: a experiência do estranho familiar.

Por fim, é mandatório inserir o miojo nesses desvarios, pois ele é peça chave do pathos da cena coreana. Bem, Keiko Furukura compartilha que a conexão dela com a loja de conveniência era tamanha, que todas suas refeições consistiam em comidas lá vendidas, razão porque ela acreditava que seu corpo, uma vez constituído pela comida da loja, a tornava parte integrante da loja de conveniência tanto quanto a máquina de café e as prateleiras de revistas. (*Tenso*) Posto isto; calculo então que Número 56 está certo ao defender que o cup noodles é o que torna conveniente a loja de conveniência; afinal o cup noodles é parte integrante da loja; em outras palavras, são indissociáveis. [*Certo; confesso: a garrafa de coca-cola é o que representa, na realidade, minha piéce-de resistance na cena, visto que sou uma inveterada viciada na maldita bebida.] 

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Naquele artigo do Tate, Alain de Botton teoriza que restaurantes de beira de estrada, cafeterias noturnas, lobbies de hotéis [acrescentarei: e lojas de conveniência?] serviriam de espaços onde podemos diluir a sensação de isolamento e redescobrir um particular sentimento de comunidade — para Kieko Furukura, a loja funciona exatamente dessa maneira, por mais paradoxal que soe. Segundo o autor francês, seria mais fácil dar vazão à tristeza nesses ambientes desprovidos da sensação de lar — com suas luzes intensas e móveis estéreis —, os quais assumiriam a função de santuários àqueles que falharam em encontrar um lugar para si no mundo ordinário. É, talvez eu deva mesmo seguir o conselho do Número 56 e parar de comer meu miojo com coca-cola em casa.

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***O pior? Isto nem foi um #publipost.