Ah, por que voltei? Hum... Talvez uma leitura deste ano tenha contribuído para a decisão. Marcelo, o narrador protagonista do livro Bartleby e companhia, de Enrique Vila-Matas, durante seu rastreio de bartlebys, acabou por me lançar a pergunta:
"— E a senhora, por que não escreve?As mulheres, às vezes, são de uma lógica arrasadora. Olhou-me, surpresa com a pergunta, sorriu e me disse:— O senhor está brincando comigo. E então diga-me: por que eu deveria escrever?"
To write or not to write, that is the question. (Na Internet de 2022, então, nem se fala.) Marcelo, soltarei por uns instantes a mão de meu querido Bartleby e retomarei a jornada da blogueira do sim. Yes, I'd rather not to write (groselhas). [*até o dia em que eu prefira não.]
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Na tentativa de me adaptar ao Instagram (devido à falta do blog), postei por lá um alinhavo, em vídeo curto, entre estes dois livros: Os Tais Caquinhos, de Natércia Pontes e o Autobiography of Red (Autobiografia do Vermelho), de Anne Carson. Num exercício de aquecimento para a volta do blog, incluo uma versão em texto logo abaixo. No entanto, dadas as condições do meu pobre pescoço, antecipo a possibilidade de, a partir de agora, recorrer com maior frequência ao formato de vídeos no blog. A ver.
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"(...) Pedro Garfias (...) um homem que podia passar uma infinidade de tempo sem escrever uma única linha, porque procurava um adjetivo. Quando Buñuel o via, perguntava-lhe;
— Já encontrou aquele adjetivo?
— Não, continuo procurando - respondia Pedro Garfias, afastando-se pensativo.
(...)
A vida é horrorosa, disse a mim mesmo. Imediatamente, porém, pensei que aquilo já não mudava nada e que era melhor não perder tempo procurando adjetivos para a vida."
— Enrique Vila-Matas; Bartleby e companhia. (Tradutoras: Maria Araújo/Josely Baptista)
Quando resenhistas falam/escrevem a respeito de Os tais caquinhos, de Natércia Pontes, é recorrente relatarem que o livro trata da vida de adolescentes que, durante a Fortaleza da década de 90, vivem num apartamento sujo, fedido, entulhado de lixo, repleto de baratas, sem comida. Bem menos recorrente nas resenhas — pra não dizer quase inexistente — é a preciosa informação de que a autora escolhe que a forma de sua narrativa reflita o espaço caótico e entulhado no qual as personagens vivem. Ou seja, assim como as personagens, o leitor também habitará um texto sujo e amontoado. Para efetivar essa decisão estilística, a autora lança mão de alguns recursos narrativos, dentre os quais surgem os diversos capítulos curtos que, empilhados no sumário, parecem esboçar a imagem dos caquinhos do título, algo que também relaciona-se à fragmentação em que se encontram as personagens do livro. Em resenha na revista 451, Iara Machado Ribeiro comenta esse aspecto formal do texto, chamando atenção ainda ao uso sistemático da conjunção "e": "Com blocos de texto sem parágrafo, iniciados sempre por inusitados títulos, e o uso sistemático da conjunção “e”, o enredo e a forma do texto se encontram nessa estética do amontoamento, a obsessiva conservação das coisas que formam uma vida." Neste meu post, no entanto, desejo me deter num específico artifício de escrita eleito pela autora: o excesso de adjetivação. Natércia Pontes escreve um texto repleto de adjetivos, outra ferramenta na construção de uma forma que espelhe uma vida em escombros. Quase todos os substantivos estão colados a um adjetivo; por sinal, o mais comum são dois adjetivos para cada. Consegui localizar uma resenha que aborda esse específico procedimento, escrita por Julie Fank, para o Plural Curitiba: "A adjetivação kitsch entalhada nas descrições quase faz, vez ou outra, a história escorregar, mas, notadamente, forma e conteúdo se dissolvem na decadência encapsulada de uma família em pedaços. É como se cada descrição nos propusesse um reconhecimento do caco estirado no chão, somente nomeável a partir da análise da arcada dentária." Por mais que eu compreenda a escolha estilística da autora — em teoria, pertinente e interessante —, é forçoso admitir que não consegui dar conta de tantos adjetivos, sendo "vômito verde e luminescente" o ponto de máxima irritação em que me dei por vencida e abandonei a leitura. É curioso, pois, ao admitir minha dificuldade em ler esse texto, é como se eu desabafasse às personagens: sinto por vocês, mas terei de abandoná-las, uma vez que não consigo viver nesse espaço caótico e sujo.
Passado certo tempo, tive uma epifania que me trouxe de volta à memória o que Anne Carson escreve a respeito de Stesichoros, logo no início do livro Autobiography of Red (Autobiografia do Vermelho), o qual li este ano, pouco antes de Os tais caquinhos. Stesichoros foi um poeta da antiguidade clássica grega que se destacou justamente por fazer adjetivos. Ao apresentá-lo, Carson nos convida a pensar por um instante acerca de adjetivos. O que seriam adjetivos? Nas palavras da canadense, nomes nomeiam o mundo, verbos ativam os nomes, contudo adjetivos vêm de outro lugar. Em grego, a palavra significa "colocado em cima" — olha os cacos de Natércia Pontes, seus diversos e curtos capítulos empilhados na obra — importado, estrangeiro; e, em princípio, parecem tratar-se de acréscimos inofensivos. No entanto, esses pequenos mecanismos importados são responsáveis por conectar todas as coisas do mundo a um lugar de particularidade. Os adjetivos são as travas do ser. ("They are the latches of being") Ao retrabalhar os adjetivos em sua épica, Stesichoros começou a desfazer as travas, de modo a permitir que todas as coisas do mundo passassem a flutuar livres; livres para todas as diferentes possibilidades de ser.
Ao rememorar esta passagem do livro de Anne Carson, voltei a refletir, atônita, sobre a obra de Natércia Pontes; percebendo que a proliferação de adjetivos dialoga não apenas com os cacos e a sujeira, mas também com o tempo e espaço daquele livro. Possivelmente apenas aqueles que viveram a adolescência na Fortaleza da década de 90 compreendam, porém eu vivi esse tempo/espaço e, quando penso nele, a imagem e sensação que me tomam é precisamente a de uma vida presa numa particularidade. Ali, naquele meio, não era possível flutuar para agarrar qualquer uma das inúmeras possibilidades diferentes de ser. Na Fortaleza da década de 90, uma amarra bastante firme segurava os adolescentes — a Daniela adolescente, que seja — a um único jeito de ser. É claro que cada experiência é diferente; no entanto, pelo menos até o ponto em que li Os tais caquinhos, sinto-me segura em afirmar que as personagens do livro, a protagonista em especial, sentiam-se presas a uma única forma de ser, soterradas pelos caquinhos da vida. Embora irritantes, o quanto então cresceram pra mim os tais adjetivinhos da narrativa de Natércia Pontes... Se duvidar, é outra razão por que não consegui terminar o livro: não quero (não posso) voltar àquele modo de ser, àquele tempo e espaço, ainda que apenas via literatura. Prefiro fazer como a personagem de Vila-Matas, incluída na epígrafe do post: não perderei tempo procurando adjetivos para minha vida. Flutuar! é a ordem do dia.