31/07/2022

[alinhavando] Think of me as a train goes by


Sabe o meme do Compadre Washington? Eita; verdade, preciso especificar, pois o compadre já rendeu vários. Eu me refiro àquela imagem em que ele aparece sentado numa poltrona de ônibus, observando contemplativo pela janela, enquanto escuta música (suponho) pelos fones de ouvido. Faz tempo desde que a piadinha estreou na internet, porém me recordo bem do abatimento que senti, tão logo tomei ciência de sua existência. Dado que a premissa parte da palermice oculta em certos contextos humanos, até cabe aplaudir aqueles que primeiro identificaram o potencial da coisa, entretanto não consigo conter o desabafo lamurioso: — poxa, galera, mas precisava mesmo?  Enquanto pesquisava detalhes da real circunstância na qual se encontrava Compadre Washington (não obtive sucesso), o Google me mostrou este tweet de 2015, escrito por @AndrRbro: "Tava escrevendo no ônibus e me senti o Compadre Washington nessa foto."  Exato, AndrRbro! Quero dizer, esse meme tornou impossível (ou quase) mergulhar no particular e especial estado contemplativo — quiçá meditativo — que ocorre durante viagens de ônibus, sem que se escute, ao longe, as risadas de um twitteiro desalmado. Como alcançar, agora, a imprescindível perda de autoconsciência durante esses percursos? 

Bom, pois eu seguiria sentada e chorosa no meu canto, não tivessem dois livros coreanos me devolvido a poesia desses momentos. Bae Su-ah, em Noite e Dia Desconhecidos (2013) e Jang Eun-jin, em No One Writes Back (2008), usam em suas narrativas o mesmíssimo movimento: embarcar, sem destino, num ônibus trem; ou seja, simplesmente embarcar. A Coreia, por suas dimensões exíguas, favorece demais esse exercício, porque, em apenas duas horas — via trem de alta velocidade —, é possível cruzar o país de ponta a ponta (!). Duas horas, no entanto, pode ser pouco tempo para essa sublime modalidade de deslocamento, portanto ambas autoras recorrem especificamente aos mugunghwas 
(무궁화), que são os trens mais lentos (150km/h), antigos e baratos da malha ferroviária coreana. Eles costumam ter mais paradas, circulando por cidades não atendidas pelos trens modernos e velozes. Segundo pesquisei, por cerca de R$ 117,00, compra-se uma passagem para tais trens, num percurso partindo de Seul (norte) até chegar, após 05h53min, em Busan (sul, de frente ao mar). A graça da literatura reside bastante em imaginar o que se lê, reconheço; mas abrir o You Tube e percorrer virtualmente os caminhos de uma história lida é muito legal, assim colo aqui o vídeo a que assisti sobre uma viagem num mugunghwa


Aproveito para registrar novo queixume: por que diabos um enorme país feito o Brasil não tem uma boa e extensa rede ferroviária? Sequer trens de alta velocidade, entre Rio-SP, nós temos. Imagino que seja mais uma das idiotices importadas dos americanos. Ou seria a velha questão orçamentaria? Enfim, na falta de trens, sigamos o exemplo de Compadre Washington: façamos de ônibus, o extasiado rolê. Inclusive, quando usava o twitter, lembro de um tweet no qual um paulista compartilhava seu desejo de pegar um ônibus circular da madrugada apenas para rodar por São Paulo, absorto nas imagens da cidade sonolenta (ou nem tanto). Então, sim, creio que nós, brasileiros, damos nosso jeito. Ainda cabe, porém, chorar nossa escassez de trens, pois, conforme escreveu Adam O'Riordan num artigo do Guardian: "poets take trains / poetas andam de trens" — e não de ônibus, saco; mas, se só tem tu... Tomarei emprestadas algumas das palavras de O'Riordan (em tradução livre), a fim de melhor explicar aquilo sobre o que escrevo neste post e que as autoras coreanas estão abordando em seus livros. [*Acrescento que esta postagem é praticamente uma continuação/anexo do meu texto sobre janelas]:
"Trens permitem que nos movamos por lugares e conversas sem sermos percebidos; (...) Eles nos possibilitam estar no mundo, mas sem tomar parte nele. (...) em trens, ao menos perceptivamente, tomamos emprestado um movimento e omnipotência usualmente reservados a semideuses ou cineastas de filmes de baixo orçamento. Somos presenteados com enquadramentos predefinidos, atalhos, close-ups; nosso repertório visual expande (...)"

                                 — Adam O'Riordan, Why poets take trains (The Guardian, 2008)

Muitas interpretações e reflexões podem ser feitas a partir da premissa que ora discuto, mas a frase que destaquei no texto de O'Riordan guarda aquilo que mais me fascina nesse lance de embarcar sem destino em veículos providos de uma janela para o exterior: a oportunidade de estar num espaço conexo, separado do mundo; o não-lugar. Também gosto de pensar na sensação de pausa no tempo, aquela falsa impressão de que são os outros que se movem (e vivem), enquanto nós usufruímos de um intervalo no jogo, para tomar fôlego e recompor.

Embora Bae Su-ah e Jang Eun-jin tenham usado, conforme citei, esse mesmo recurso narrativo das viagens de trem sem destino, há notáveis diferenças de contexto. Em Noite e Dia Desconhecidos, fui apresentada a Volpi, um poeta estrangeiro que viaja à Coreia para escrever sua nova obra. Para surpresa de Ayami, a coreana que trabalha como guia para o poeta, bibliotecas e cafés não são espaços propícios para a escrita de Volpi. Não; nosso poeta pede que os dois embarquem numa viagem de trem que os permita passar a noite sobre os trilhos, ao que Ayami sugere o mugunghwa (e que admirável paralelo firmado com aquele tweet de AndrRbro e o texto de O'Riordan). O processo da escrita de Volpi ajuda a entender a predileção do poeta pelo espaço ferroviário (grifos meus):
"Mas eu tenho que anotar imediatamente o que me vem à cabeça. Porque as coisas vêm como filmes ou imagens, e não organizadas em orações. Se não for no momento exato, elas simplesmente evaporam. E quando isso acontece, não consigo enquadrá-las em linguagem. Tudo que eu escrevo não passa de esboço, não é a pintura final. Não me importo com o lugar. Esqueça bibliotecas ou cafés. Detesto bibliotecas ou cafés, até quando não estou escrevendo."

                                            — Bae su-ah, Noite e Dia Desconhecidos (Tradução: Hyo Jeong Sung) 

A narrativa de Bae Su-ah não se esquiva de reconhecer a inexistência de glamour no mugungwha — em concordância com o vídeo que anexei, por sinal —, visto que o poeta comenta nunca na vida ter visto  tanta gente junta, causando-lhe a sensação de que teria estourado uma guerra e todos os coreanos tentavam fugir. O comentário da personagem aponta para uma super lotação desses trens, o que, de certo modo, denuncia que a maioria da população coreana não teria dinheiro para pagar as linhas mais rápidas e caras. Ou, pelo menos, que a maioria apela para o sacrifício do trem pebinha, para economizar grana. Ou ainda: seriam os coreanos fervorosos praticantes do "simplesmente embarcar"?!

O contexto narrativo presente no livro de Jang Eun-jin, por sua vez, envolve sentimentos agridoces, sem relação direta com poetas ou escrita. Em No One Writes Back (tradutor coreano-inglês: Jung Yewon), Jihun viaja a esmo pela Coreia com uma mochila nas costas, na companhia de um cachorro cego. Em certo momento de suas andanças, ele esbarra com uma estação ferroviária e decide embarcar num mugunghwa, explicando que trens sempre o fazem lembrar-se do irmão. Ele conta que, quando criança, o irmão, do nada, pôs o chapéu, colocou um livro no bolso e virou, perguntando-lhe: "quer vir comigo? Acabarei me matando se continuar desse jeito." Assustado pelas palavras do irmão, Jihun decide acompanhá-lo, e os dois fogem de casa, embarcando numa viagem de trem sem destino em mente. Durante o trajeto, o irmão lhe diz: Jihun, faça o que você quiser da sua vida. Entende? Não deve haver mais que uma criatura estranha numa família." Jihun afirma que, naquele instante, compreendeu que, graças ao irmão, ele pôde seguir vivendo do seu jeito. Os dois acabam retornando para casa, e o irmão tira a nota mais alta no vestibular; desse modo demonstrando que, durante a viagem, decidiu (conformou-se?) correr atrás do sucesso como a maioria das pessoas do mundo. Ah, e a preciosa cereja do bolo: "(...) nunca mais leu romances (...)." Quer dizer, o irmão de Jihun tomou um trem para movimentar-se numa pausa do jogo, e assim decidir que estratégia seguir. (Se acertou/errou, eu não saberia dizer.) No mais, como curiosidade, incluo o que Jang Eun-jin diz a respeito de coreanos em trens (real? ficcional?): todos os passageiros batem palmas ao final da passagem por um túnel.

Após tais leituras, portanto, resolvo aconselhar a mim mesma: 
   — Daniela, prossiga com suas viagens de trem ônibus, olhando contemplativa pela janela, pois esses piadistas de internet não manjam nada.

[Atualização em 02/08/22:] Estava organizando minhas pastas, quando reencontrei este vídeo gravado em 01/2020: eu toda contente num vagão do metrô de BSB que, em plena tarde de um dia útil da semana, estava vazio. Na falta de bons trens, o metrô daqui até pode quebrar um galho, com seus janelões generosos (mas só nos trechos não subterrâneos, claro). 

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