20/08/2023

日本海

A Grande Onda de Kanagawa - Hokusai

Em Fragmentos de um Discurso Amoroso, Roland Barthes escreve que a pessoa apaixonada recebe tudo que é novo e incômodo não como fato, mas como signo que é preciso interpretar. Certo; então assumo que mais uma vez bancarei a tola apaixonada, pois afirmarei que o Mar do Japão está me chamando. Quer dizer, ao menos é assim que interpreto as recorrências marítimas japonesas em meu percurso. Nesta postagem, porém, evitarei o modo apaixonada hard, pois não acrescentarei outras interpretações, não elaborarei significados. Por enquanto, me sinto compelida a somente anotar o convite que recebo, numa espécie de preparação para um encontro que, se a vida permitir, ocorrerá — em outras palavras, as quais Barthes talvez acrescentasse: tentarei me permitir o gozo.

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A primeira vez que pensei conscientemente acerca do mar japonês foi durante a final de surf das Olimpíadas de 2020, a qual ocorrera na praia Tsurigasaki, em Ichinomiya, prefeitura de Chiba (costa leste do Japão, oceano pacífico). Não, é lógico que não entendo bulhufas de surf, mas eu estava de bobeira e havia um brasileiro no páreo, Ítalo Ferreira, daí acabei assistindo. Antes de devanear qualquer coisa, recapitulemos a transmissão da disputa:

Conforme adiantei, não manjo nada de surf, porém foi fácil perceber que aquele mar não estava pra surfista. Era um mar muito, muito mexido, agitado, irritadiço, meio amarronzado, com ondas inconsistentes e mal formadas. Posso estar errada, contudo os comentários do vídeo sustentam minha leitura. Some-se a isso aquele tempo nublado e a areia acinzentada e pronto: fiquei hipnotizada. A primeira impressão, admito, foi a de uma feiura repulsiva, no entanto a imagem rapidamente girou 180 graus diante de meus olhos, e me peguei tomada por uma beleza paralisante. Senti medo daquele mar, porém um medo tão intenso quanto a vontade de nele mergulhar para nunca mais voltar. [*Cabe confessar que me lembrou demais o mar enfezado e feioso de Fortaleza — onde cresci —, o que talvez tenha contribuído para minha forte reação.] Como sou lerda, demorei a atinar que aquele mar, na companhia daquele céu e daquela areia, era a imagem da sombra à qual louva Junichiro Tanizaki. As peculiares cores nos enquadramentos dessa final de surf refletem aquelas dos aposentos japoneses, do tokonoma, da laca, da comida, do chá, do tom da pele/olhos/cabelos daquele povo. 

A propósito, meses depois acabei assistindo a um filme japonês lindo que inclui a temática do surf, chamado O mar mais silencioso daquele verão - Ano natsu, ichiban shizukana umi (1991), de Takeshi Kitano. O "silencioso" do título alude em especial ao protagonista, um rapaz surdo-mudo, mas curiosamente acho que o adjetivo descreve bem o mar que vi no filme, um mar em tudo antagônico àquele de Ichinomiya (infelizmente não lembro nem encontrei o local exato da filmagem). O mar apresentado pela obra de Kitano é super calminho, oferecendo ao aprendiz de surfista apenas umas marolinhas desengonçadas e sem ânimo. A julgar pelo desfecho da obra, no entanto, cheguei à conclusão de que jamais podemos subestimar o mar, nem mesmo um mar silencioso daquele. [E desejo explicitar: essa reflexão também vale para o protagonista — e para qualquer ser humano, não?].
O mar mais silencioso daquele verão (1991)
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Avalio que a experiência durante as Olimpíadas de 2020 me ajudou a melhor entender o trecho próximo ao final de O Pavilhão Dourado, de Yukio Mishima, no qual Mizoguchi anseia desesperadamente rever o mar; momento em que o protagonista se encontra num turbilhão de emoções, desnorteado quanto ao que pensar e fazer. Mizoguchi viaja em busca do mar da infância e fica frustrado quando se depara com a intervenção americana no espaço que lhe era tão familiar, o que toma por uma vil e inútil tentativa estrangeira de domar o mar japonês. A personagem decide prosseguir a busca mais adiante, até que finalmente se encontra com o que julga ser o verdadeiro Mar do Japão: "(...) o mar encapelado, sempre irritadiço, o mar raivoso da costa interna do Japão. (...) um mar (...) imperioso e dominador. (...) Sim, esse era o Mar do Japão! A fonte de toda a minha infelicidade e de todos os meus pensamentos sombrios. A fonte de toda a minha feiura, (...) As águas estavam agitadas." (Tradução: Shintaro Hayashi) Ou seja, o mar e personagem enquanto imagens especulares, profunda conexão. E no aperto, a ele se recorre. Embora essa descrição concebida pela personagem se adeque perfeitamente àquelas cenas das olimpíadas, o mar sobre o qual escreveu Mishima corresponde, na verdade, àquele da costa oeste japonesa, na baía de Maizuro, perto de Quioto.

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É curioso que Mishima e Kitano tenham usado o mar japonês como reflexo da paisagem interna de suas protagonistas, sobretudo quando as respectivas imagens assumem extrema oposição. No entanto, a leitura cuidadosa dessas obras facilmente apreende que tanto o delicado silêncio quanto a raiva agitada integram esse mesmo mar (e personagens). Um livro que, a meu ver, destaca muito bem essa ambiguidade é  Naufrágios, de Akira Yoshimura. 

No primeiro volume dos Diários de E. Renzi, Piglia registra que, se ele lembra das circunstâncias em que estava com um livro, é prova de que a obra foi decisiva. Transcrevi essa precisa assertiva porque me recordo vivamente do início da leitura de Naufrágios. Eu estava deitada sonolenta na cama, pronta para dormir, todas as luzes apagadas exceto pela luz débil do abajur, e mal pude acreditar no belo quadro que as palavras de Akira Yoshimura (via tradução de Sylvio Deutsch) começaram a pintar em minha frente: costa rochosa contra a qual as ondas do mar quebram com força, faixa de areia estreita, tempo chuvoso, cortejo fúnebre, Japão. Embora eu seja avessa a superlativos, sou forçada a garantir que esse é um dos livros com as mais belas descrições que já li. (Obrigada, tradutor.) A história se passa durante o período medieval japonês, retratando a vida dos habitantes de um vilarejo praiano, que lutavam contra a fome. As minúcias da rotina daquelas pessoas, primorosamente narradas por Yoshimura, demonstram bem a personalidade dúbia do mar, a ambiguidade com que esse enorme volume d'água trata aqueles que decidem viver próximo a ele. A onda que afaga e traz oferendas (ainda que por vias tortas - O-fune-sama), é a mesma que noutra hora é fonte de privação e calamidades. As descrições sobre os perrengues da pesca, atividade ardilosa, foram pra mim um grande destaque, sobretudo a pesca de saurys. 

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Richard Parry, num dos breves artigos inclusos no livro The Passenger - Japão, me fez lembrar o último momento de máxima raiva e violência expressos por esse mar que ora me intriga: o Tsunami de 11 de março de 2011. Segundo o autor, após a incomensurável tragédia seguiu-se uma série de aparições de fantasmas das pessoas que se afogaram no tsunami, inclusive casos de possessão. O país foi tomado por um "enxame de fantasmas". Aqui, vale lembrar o valor à ancestralidade presente na cultura japonesa e a relação distinta que eles têm com a morte, a qual lhes representa quase uma variante e não uma negação da vida. Retornando ao livro de Yoshimura, há uma passagem onde se diz que, com a morte, o espírito parte para um lugar distante nos mares, retornando à vida da aldeia após um tempo. Ou seja, na vila de Naufrágios, a morte é apenas um período de sono profundo, portanto as lápides dos túmulos são posicionadas de frente para o mar, a fim de guiar os espíritos no momento de despertar e retornar. Para além disso, esta fala de Ayane, moça cujo pai falecera vítima do tsunami, também expõe outro lado relevante acerca do fenômeno: "Quando pessoas veem fantasmas, estão contando uma história, uma história que foi interrompida. Elas sonham com fantasmas porque então a história continua ou chega a um desfecho. Se isso lhes traz conforto, é uma coisa boa." (tradução: Érika Vieira) Chamou-me particular atenção a fala do sacerdote budista Kaneta, segundo a qual as histórias fantasmagóricas posteriores à tragédia sempre têm uma conexão com a água. Por exemplo, Parry comenta que, numa comunidade de refugiados de Onagawa, uma antiga vizinha falecida sempre aparecia na sala de estar das casas, a almofada em que se sentava ficando ensopada de água do mar. 

Dado aquele trecho de O Pavilhão Dourado, fiquei pensando sobre o que Mishima acharia das muralhas de contenção de tsunami que o Japão construiu ao longo do litoral. De minha parte, não consigo evitar a pergunta: é possível conter esse mar?

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Para encerrar, incluo a leitura de The Waiting Years (女坂 - tradução: John Bester), livro que me fez ter certeza de que o mar do Japão me convoca à sua presença. Dando asas à imaginação, confabulei que possivelmente a escritora Fumiko Enchi leu As Irmãs Makioka, do Tanizaki, e teria refletido consigo mesma qualquer coisa do tipo: legal esse livro, gostei tanto que escreverei a minha versão, uma que aborde outro tipo de sororidade e de realidade vividas pelas mulheres japonesas. Para dar uma melhor ideia do que quero dizer, descreverei brevemente o pontapé inicial da narrativa: final do período Meiji (colo na minha memória e estimativas), homem de 39 anos manda a esposa para Tóquio, acompanhada da filha do casal, encarregada de comprar e trazer pra casa uma amante de quinze anos. A patifaria não encerra aí, é ler para crer. O livro é espetacular — em especial a surpreendente serenidade e delicadeza da narrativa, em contrapartida à vida fatídica das mulheres da história — e não teria espaço neste específico post, não fosse o surpreendente recado final que a esposa, então convalescente, manda para o marido: "Diga a ele que despeje meu corpo no mar. Despeje-o..." [*Vale recordar que, em Naufrágios, é dito que a vila só lançava ao mar os corpos de suicidas.] Segundo o narrador de Enchi, esse recado golpeou o marido com a força plena das emoções que a esposa esforçou-se em reprimir durante os últimos quarenta anos, choque suficiente para dividir o ego do homem em dois. 

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Afinal, que mar é esse, Japão? Quando ele quebra na praia, também é bonito feito o nosso? Parece que sim, ainda que de uma maneira particular. E quando quer ser feio, aparentemente ele não mede esforços para atingir a máxima feiura, não é? Mar silencioso e delicado, tão generoso, no entanto arredio, raivoso e sombrio; infelizmente propenso a momentos de fúria avassaladora. Vida e Morte. É isso, Japão? Sinto-me tocada a ponto de dividir com vocês uma música favorita, um lugar bem juntinho ao mar. Adoraria receber, em troca, uma música japonesa que cante o mar daí. Aguardarei o encontro. 
**ATUALIZAÇÃO EM 21/09/2023: PQP!; acabo de descobrir que a banda japonesa Kikagaku Moyo fez uma excelente versão (2022) para essa música do Erasmo! AAAAAHHHHAAAAAHH!!! E eles mantiveram o título em português! AAAAHHH! Meu deus do céu, estou sem palavras (talvez chorando um pouquinho). E não é que o encontro, então, ocorreu?! Puxa, não conhecia a banda, mas salvei para explorar sua discografia. Então, para a linda versão japonesa de Meu Mar, é só apertar o play: [*crédito da informação: Barcinski]

18/07/2023

Oh you can get lonely, and animals help with that

Num exercício de impertinência, resolvi publicar este post em resposta não solicitada à newsletter Outra Cozinha, da autora Carla Soares; especificamente à edição intitulada Bestiário (link aqui). Nessa carta de 11/06/2023, Carla escreve sobre os bichos que lhe aparecem na chácara onde mora, registrando as lembranças dessas relações em pequenos trechos de diário. O texto, como habitual da escritora, é uma preciosidade e, após lê-lo, senti comichão para escrever brevemente sobre os bichinhos com os quais cruzo durante os passeios que faço pelo parque do bairro. Naquele que é um de meus posts favoritos deste blog — What do guinea pigs do?! (link aqui) —, compartilhei reflexões relacionadas à observação de animais; portanto esta postagem também dá continuidade àquela conversa. No breve comentário escrito por Wisława Szymborska a respeito do livro Book of Mysteries, de Thomas de Jean, acredito haver uma boa explicação do porquê eu [e Szimborska, e possivelmente Carla, e os autores citados em meu primeiro post e aquelas que citarei a seguir] me perco observando animais. Szymborska diz que Book of Mysteries é um compilado daqueles mistérios que, de tão recorrentes, talvez já tenham virado meras banalidades: manifestações fantasmagóricas, pessoas abduzidas à lua, visitas alienígenas, monstro do lago Ness, ovnis. A poeta polonesa, no entanto, esclarece que seu enfado com o livro não significa que ela seja uma racional cabeça-dura incapaz de conceber a possibilidade de coisas estranhas ocorrendo no mundo; mas exatamente o contrário, uma vez que Szymborska não crê na ideia de uma Terra ordinária. Para a autora, uma árvore crescendo com folhas farfalhantes é enigma suficiente. Quanto a mistérios, portanto, assim ela finaliza o texto (tradução Polonês → Inglês: Clare Cavanagh; Inglês → Português: minha):

"Outros podem requerer temperos mais pungentes, como, por exemplo, o sapo de Liverpool que supostamente rastejou para fora de um bloco de granito quebrado e sobreviveu por várias horas. Um sapo na grama já está bom para mim."


Szymborska tem razão, pois os animais com quem convivo no parque apresentam-me mais mistérios do que jamais serei capaz de desvendar. Contudo, em vez de me apoquentar com isso, deixo que a paz me invada, enquanto me abismo nas charadas que lançam.

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Antes de prosseguir com minhas próprias lembranças, gostaria de anotar dois outros livros que Bestiário me trouxe de volta à memória. Carla começa a newsletter nos contando sobre seis gatos da região que gradativamente começaram a visitá-la e que, aos poucos, foram se aconchegando; destacando-se aqueles que ela nomeia Caju e Cajá (ótimos nomes, por sinal). Nunca convivi com gatos, portanto o pouco que sei a respeito deles provém das muitas horas gastas vendo vídeos, fotos e gifs de gatinhos na internet. Do que aprendi, o que mais me fascina é a doçura com que os donos narram as diferentes personalidades de cada um de seus gatos; relatos sempre repletos de detalhes suficientes para que minha imaginação construa toda uma concreta e palpável subjetividade. A maneira com que Carla descreve as diferenças dos jeitinhos de Caju e Cajá me lembrou um dos textos mais marcantes do livro The Summer Book, de Tove Jansson (autora dos Moomins). Numa pequena ilha escandinava, moram Sophia e sua avó e, tal qual ocorrera com Carla, um gato ainda filhote se aproxima da casa das duas e vai ficando. Sophia morre de amores pelo gato — a quem chama Moppy —, porém, para sua tristeza, o felino não lhe dá a menor bola. O diálogo da criança com a avó é de uma ternura esmagadora (tradução Sueco → Inglês: Thomas Teal; Inglês → Português: minha):

"— É engraçada essa coisa de amor. Quanto mais a gente ama, menos somos amados de volta.
— É verdade. E o que fazer?
— A gente segue amando — diz Sophia com ar ameaçador — A gente ama cada vez mais e mais intensamente." A avó suspira e nada diz. 

Contudo, quando Moppy cresce e começa a caçar pela ilha, frequentemente trazendo presentinhos ensanguentados pra dentro de casa, Sophia fica furiosa e passa a desprezá-lo. A criança não entende por que Moppy mata pássaros - tão agradáveis e bonzinhos -, em vez de ratos - tão repugnantes; chegando a desejar que o gato nunca tivesse nascido. Daí, um barco ancora na ilha e os amigos tripulantes se queixam de que o gato que adotaram para caçar ratos simplesmente não caça nada. Ou seja, faz-se a oportuna troca e finalmente Sophia tem para si um gatinho meloso, que sempre dorme e ronrona satisfeito no colo. Fim da história? Na verdade não, pois a menina rapidamente se enfastia diante da personalidade morosa do novo gato. O diálogo final com a avó é outro primor:

"— Eu quero Moppy de volta!
— Mas você sabe como será.
— Vai ser horrível - diz Sophia com ar austero -, mas é Moppy que amo."

🐱

Um livro que, a meu ver, alinha-se bastante à proposta do texto de Carla (e à desta postagem, espero) é o Pilgrim at Tinker Creek. Nessa obra, Annie Dillard quase aparenta falar da suposta floresta encantada referida inicialmente no texto de Carla, mas a realidade é que Dillard mal dá um passo para além de sua residência urbana, tão somente relatando de forma impressionante — olhar super atento, uma escrita elaborada e poética — os encontros que estabelece com os bichos de um pequeno córrego em Virgínia, nos Estados Unidos. Quer dizer, de fato a premissa de Szymborska procede, pois basta olhar pro lado com um pouquinho de atenção, para perceber que a chácara de Carla no interior do Brasil (MG?), o córrego americano de Dillard e meu pequeno parque em Brasília oferecem mistérios suficientes para transformá-los, sim, em verdadeiras florestas encantadas. Conforme diz Dillard, estamos cercados por um espetáculo atrás do outro, no entanto é somente um show por cliente e, se piscar, perdeu. (Inclusive, Dillard é parcialmente culpada por eu ter comprado uma câmera fotográfica.) As histórias que Carla conta sobre os insetos que cruzam seu caminho foram o que provavelmente me catapultou de volta ao texto de Dillard, pois Pilgrim at Tinker Creek é repleto de histórias acerca desses animais; algumas bem assustadoras — aqui, falo no sentido  "puta merda, a existência pode ser uma coisa muito, muito maluca". Para ilustrar este post, escolho o singelo causo das aranhas, pois a reflexão compartilhada por Dillard — simples, mas tão provocadora — mexeu bastante comigo (tradução minha):

 "Deixo as aranhas correrem livres pela casa. Calculo que um predador que espera sobreviver de quaisquer pequenas criaturas que possa encontrar num espaço de 0,1 m², no canto do banheiro onde a banheira alcança o piso, precisa de meu apoio."

Em retrospecto, suponho que eu não deveria ter jogado pela janela a pequena lagartixa que apareceu no banheiro de casa dia desses. Pensando bem, o texto de Dillard não mexeu tanto comigo? Em minha defesa, ~teoricamente~ não a matei, logo...


🐱

Certo, agora relatarei meus breves encontros. Incluirei uma foto e/ou vídeo para todos os animais mencionados — para provar, pois, do contrário, suspeitarão que falo de um zoológico, e não de um minúsculo parque de BSB —, contudo são todas realmente de péssima qualidade, visto que foram feitas com um celular pebinha que carrego na rua, tendo sempre de ser ligeira o suficiente para tirá-lo da pochete e capturar as cenas. Além disso, os animais do parque se comportam como o Moppy: são todos da mesma cor do espaço que habitam.  Ao observá-los, espero que também eu adquira as cores do parque. 

🐾 CARCARÁ
Soará estapafúrdio, mas confesso que comecei a me interessar por carcarás depois que esbarrei na aparição desse pássaro no livro Os Miseráveis, de Victor Hugo. Eu sei, não faz nenhum sentido a ave ser citada nessa obra, porém garanto que ela aparece, e minha antiga anotação de leitura está na mão para atestar:
"O Brasil aparece no livro! Quero dizer, mais ou menos: Victor Hugo cita um grupo de saltimbancos que possuíam "(...) um desses temíveis abutres do Brasil que o nosso Museu Real não conseguiu adquirir senão depois de 1845 (...) os naturalistas chamam-no, creio eu, de Caracara polyborus (..)" 
Assim, foi pela superação dessa improbabilidade que Victor Hugo me ajudou a voltar os olhos para esse magnífico animal. O encontro registrado por minha foto foi especial, porque, além de ser um casal (nunca antes o tinha visto em dupla), os dois pareciam me acompanhar — eu sei, eu sei, estou bancando a maluca que se julga a encantadora de carcarás, mas o que posso fazer, se eles me seguiram?! Supus que me acompanharam porque, embora eu me distanciasse dos dois, eu me aproximasse de um possível ninho, entretanto no dia seguinte não localizei nada, logo ficarei com a satisfatória versão Daniela, a encantadora de carcarás.
🐾 MACACO SAGUI
Tem sim um sagui nessa foto, e a quem encontrar, Deus proverá. Veja bem, esses bichinhos são muito desconfiados e lépidos, então é difícil fotografá-los. Na primeira vez que o vi, fiquei apreensiva, pois, burra que sou, achei que só havia sagui na Mata Atlântica. Em outras palavras, não sabia como ele sobreviveria num minúsculo parque seco de Brasília. Fiquei mesmo me perguntando se deveria carregar uma banana para alimentar o pobre macaquinho. Pois enquanto persistia na ignorância  [*há espécies habitantes do cerrado brasileiro*], me vi certo dia chorando enquanto caminhava (quem não chora em parque não sabe o que está perdendo), quando dois saguis atravessaram do nada meu percurso, logo à frente. Eu sei, eu sei; agora engato a versão Daniela, a encantadora de saguis, porém, naquela ocasião, tive a certeza de que eles cruzaram de supetão meu caminho para me dizer: Daniela, eu estou bem, tenho até um amiguinho, está vendo? Então, se eu consigo me virar nesse parque seco, você também consegue. Deixa de choro, e boa sorte. Se panz, eles agora aparecem para checar se parei de chorar — e pra ver se eu não trouxe uma bananinha.
 
🐾 CORUJA BURAQUEIRA
 
Essas corujinhas são a coisa mais linda, e as vejo com bastante frequência. Meu encontro favorito com uma delas ocorreu à noite. Eu a avistei pousada numa árvore baixa e, encantada por vê-la tão perto, não me contentei e fui me aproximando. No entanto, quanto mais eu me aproximava, mais a danada girava o pescoço, virando a cara pro outro lado. De imediato, saquei a mensagem e dei meus passos para trás, ao que ela rapidamente voltou-se pra mim, então permitindo que a observasse em toda sua majestade. É sempre uma lembrança pertinente: o show (palavra adotada por Dillard) é nos termos deles, e não nos nossos.

🐾 MARITACA

Mais as escuto do que as vejo — pense num pássaro barulhento —, porém vê-las é sempre um deleite que me deixa muito feliz. Gosto do fato de que estão sempre em dupla [este post está me fazendo perceber que a mensagem que recebo é o número 2, hein], e pude identificar que, quando se alimentam, uma delas fica de tocaia, enquanto a outra vira de ponta-cabeça para beliscar uma frutinha ou, conforme ilustrado por minha foto, invadir um vespeiro (acho? rs). Tive a sorte de ver isso duas vezes e mal pude acreditar na audácia da ave. É lógico que o ninho estava ocupado, pois havia inúmeros insetos voando ao redor. (~comidinha~)


🐾  QUERO-QUERO
Esses eu apelidei de Drama Queens, pois é um tremendo bicho estressado. Se eu ficar mais de três segundos olhando pra eles, param qualquer coisa que estejam fazendo (coitados, só fazem uma coisa: procurar comida), me encaram de soslaio, começam a berrar escandalosamente e se afastam o quanto antes. Justamente por isso costumam me abrir um sorriso e, de minha parte, tento não estressá-los. Simpáticos, gosto um bocado deles. E olha só, outra cena de duplinha. Juro que só percebi agora. Na hora de apostar, é dois na cabeça. Haveria alguma outra mensagem nisso?


🐾 CANÁRIO

Puxa vida, esses passarinhos são incrivelmente fofos. Não andam em duplas, mas costumeiramente em largos bandos, e identifiquei que a hora mais propícia de vê-los, desse jeito no chão, se alimentando e revoando todos juntos quando passamos (tão bonito), é em torno das 15:30h-16h — ah!, creio que é a hora em que os cupins alados voam, né? O intenso laranja no topo da cabeça, em contraste com o amarelo vibrante, me mata demais.

🐾 LIBÉLULA
O parque é empestado de libélulas. Nunca liguei para esse inseto, porém Dillard me fez virar os olhos para ele, pois é outro que sofre nesta vida maledetta, enganado por superfícies brilhosas que fazem as vezes de espelho d'água (é tudo ilusão nesta merda, amiguinhos). Primeiro, me deparei com essa libélula pousada no galho; depois, tive a sorte de ver o instante exato em que uma delas dava as voltas no preciso galho, para nele pousar graciosamente. Desde então, chamo esse galho especial de Aeroporto das Libélulas.

🐾 TUCANOS

Fui agraciada uma única vez por essa formidável imagem (momento em que atinei o quanto aquele parque é especial), porém foi suficiente para me deixar maravilhada. Era fim de tarde, e o belo tucano parecia estar encantado pela beleza do sol se pondo no céu de Brasília, perdido em seus próprios pensamentos, tão sereno e contemplativo.

🐾 CAPIVARA

O que eu poderia dizer sobre capivaras que já não se tenha dito? Quando cruzo com elas, sou lembrada de que estresse nenhum nessa vida vale a pena. É bater os olhos, e pensar: taí uma figura que sabe viver. Nessa foto, certa está a danadinha que sequer levanta a bunda do chão para comer — novamente, Deus proverá, a quem localizar a esperta a quem me refiro.

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Pronto, esses são alguns de meus colegas de passeio. Fiquei triste por não ter nenhuma foto de um joão-de-barro, os quais estão por toda parte do parque (e suas casinhas bem erguidas e arquitetadas). Poxa, só porque são tantos, são menos especiais? Eu sou mesmo idiota. Faltaram também os pica-paus (estonteantes, mas algo difíceis de ver e captar), e aguardo ansiosa a chegada dos tesourinhas. É, suspeito que esta história não acaba aqui, sobretudo porque, conforme disse Sophia, a gente persiste amando mais e mais.

Por fim, não posso encerrar sem agradecer à Carla Soares pela inspiração para este post e por me mostrar que esse tipo de registro merece ser feito. Novamente, segue o link para a newsletter Outra Cozinha: clique aqui.

19/06/2023

O Pavilhão Dourado - Yukio Mishima

Sequer recordo a última vez que publiquei um post focado em um único livro [foi libertador atinar que, para conversar sobre minhas leituras, não estou obrigada a escrever famigeradas resenhas], porém sinto que O Pavilhão Dourado — meu primeiro contato com Yukio Mishima (tradução: Shintaro Hayashi) — solicita um singelo registro, um  desafogar de sentimentos e de banais reflexões, que seja. Para quem procura uma baita análise acertada®, peço perdão, pois não encontrará nada disso aqui. 

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E se eu disser que li o livro sem saber que Mishima se inspirara em um evento real? Fiquei abestalhada quando a galera do Goodreads me contou que a premissa realmente aconteceu. Estava ciente de que a maioria das edificações históricas japonesas se perderam em incêndios (temos, hoje, meras reconstruções), mas que alguém tenha ateado fogo num daqueles templos foi novidade pra mim. E mais abestalhada fiquei ao me deparar com o comentário de uma leitora no qual se afirma que o protagonista é basicamente um incel. Caramba, durante a leitura isso jamais me passou pela cabeça. Então consigo sentir empatia por incel, agora? Ah, pronto, era o que faltava. Pior é que, recapitulando a leitura, encontro diversos elementos textuais que sustentam essa interpretação para a personagem (a narrativa é em primeira pessoa, cabe pontuar), por vezes até um tom reacionário no texto. Além disso, se tomarmos aspectos da biografia de Mishima como suporte acessório, suspeito que ficará ainda mais difícil invalidar em absoluto esse tipo de análise. A despeito disso, prosseguirei titubeante o registro do que me passou pela cabeça durante a leitura da obra.

Mizoguchi era um garoto feio, frágil, gago, tímido, retraído. É certo que, para qualquer jovem, isso representa um entrave árduo de transpor, no entanto algo em Mizoguchi me parece dificultar sobremaneira esse processo: o rapaz tinha uma sensibilidade estética extremamente aguçada — e teorizo que isso o distancia ~um pouquinho~ de um ordinário incel. 
"Não exagero ao afirmar que o primeiro problema com que me defrontei na vida foi a questão da beleza."
(Narrador em off e leitor atento: — ele exagera.) Mizoguchi possuía a espantosa habilidade de enxergar beleza nas coisas, de sentir-se arrebatado por momentos diversos da vida, e é por intermédio desse olhar da personagem que a narrativa de Mishima induz o leitor a refletir acerca de experiências estéticas e da Beleza. Nesse contexto, contemplei coisas do tipo (platitudes, mas enfim):

🗾 A percepção e a resposta estética dependem de uma série de fatores difíceis de serem controlados e identificados. Uma mesma imagem pode despertar respostas diferentes em pessoas diferentes e, por vezes, uma mesma cena reconstruída em tempos distintos também pode produzir reações divergentes num só indivíduo. Ou ainda, uma mesma cena, num mesmo instante, tem potencial para evocar percepções antagônicas num único observador.
"Poderia a beleza ser assim feia?"
🗾 A experiência estética habitualmente relaciona-se a momentos efêmeros que, com frequência, materializam-se na forma de cenas, de enquadramentos. A propósito, durante leitura paralela, abri um sorriso quando Roland Barthes me assegurou que o arrebatamento amoroso ocorre justamente diante de uma cena, um quadro: "O amor à primeira vista é uma hipnose; estou apaixonado por uma imagem (...) amamos primeiro um quadro" (tradução: Hortênsia dos Santos). O pavilhão dourado em Quioto desafia em certa medida esse pressuposto, tratando-se de uma edificação humana que nos impõe uma beleza estática e eterna; aspecto que perturba intensamente Mizoguchi.

🗾 Claro, é preciso estar aberto e atento às experiências estéticas, sobretudo porque, conforme mencionado, a beleza costumeiramente reveste-se de efemeridade. "A perfeição está em toda parte se apenas nos dignarmos a reconhecê-la." — Kakuzo Okakura, O Livro do Chá (tradução: Leiko Gotoda).

Ao mesmo tempo, é pertinente atentar que abertura demais pode ser um problema; sensibilidade em excesso pode sobrecarregar o espírito, visto que o mundo (tomando emprestados os versos de Thom Yorke:) é too much, too bright, too powerful / o mundo é ~ descomedido, luminoso demais, poderoso demais. Hoje, no Instagram, li esta apropriada frase supostamente dita pelo pintor Claude Monet (grifo meu):  "Todo dia descubro mais e mais coisas belas. É suficiente para enlouquecer uma pessoa." E gostaria de ressaltar em especial aquele "too bright/luminoso demais"  emprestado de Yorke, dado o aceno que Mishima faz no livro ~àquela~ passagem chave em O Estrangeiro, de Albert Camus.
"(...) o Pavilhão é o único a preservar a forma e se apossar da Beleza, reduzindo  todo o resto a pó. (...) Mas, enfim, o Mal seria possível?"
🗾 Quando li O Livro do Travesseiro, de Sei Shônagon, me impressionei bastante com o enorme peso e valor que Shônagon deposita na beleza dos diversos fenômenos e objetos que a rodeavam (naturais ou humanos), sua narrativa sempre extremamente atenta ao belo — nada escapa do crivo estético dela. Por causa disso, conjecturei que o impasse sentido por Mizoguchi pode também relacionar-se a um senso estético particular dos japoneses, em muito distante àquele ocidental. A obra Elogio da Sombra, de Junichiro Tanizaki, igualmente me direciona a essa hipótese, assim como o já citado Livro do Chá, de Kakuzo Okakura. 
"Com sua ímpar capacidade de tudo transformar em poema, nossos antepassados (...) descobriram beleza nas sombras e, com o tempo, aprenderam a usar as sombras para favorecer o belo."    — Junichiro Tanizaki, Em Louvor da Sombra (tradução: Leiko Gotoda).  
"O longo isolamento do Japão do resto do mundo, tão propício à introspecção, foi altamente favorável ao desenvolvimento do "chaísmo". (...) Um estrangeiro pode sem dúvida se espantar com tanto estardalhaço por motivo aparentemente insignificante. (...) Vamos sonhar com o efêmero, e demoremo-nos um pouco mais na formosa tolice das coisas."     — Kakuzo Okakura, O Livro do Chá (tradução: Leiko Gotoda).
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Quando passava da metade do livro, calhei de ouvir uma entrevista de Carolina Vigna (historiadora da arte) ao podcast Página Cinco e fui fisgada por esta assertiva da entrevistada: "Toda revolução é estética." Carolina Vigna explica que estética é o contrário de anestesia, ela é aquilo que nos move, portanto sempre que se passa por algo que exige ressignificação, isso é uma revolução estética. Todas as revoluções seriam estéticas, na medida em que impõem revoluções de significado, de compreensão do mundo, de representação desse mundo. 

Até aquele ponto da leitura de O Pavilhão Dourado, eu não tinha dado muita importância ao contexto histórico da narrativa de Mishima, porém a fala de Vigna me fez questionar se a resolução de incendiar o pavilhão teria um significado narrativo restrito a uma dimensão micro, individual. Decidi regressar à impactante passagem em que, decretado oficialmente o fim da guerra e a derrota do país, Mizoguchi sai em disparada e observa com desprezo, do alto de uma montanha escalada, a população da cidade de Quioto, com suas luzes acessas, prosseguindo suas vidas corriqueiras como se nada tivesse acontecido. Aqui, o que ele fala:
"Aí está o mundo!" eu pensei. "A guerra acabou. Sob essas luzes todas, pessoas se entregam a pensamentos maldosos. (...) Essa infinidade de luzes são todas elas perversas. Eu me conforto pensando assim. Que a perversidade existente em mim prolifere, multiplique-se infinitamente (...)" 
Confabulei que talvez Mizoguchi sentisse que aquele momento impunha uma nova forma de compreender e representar o mundo. Quem sabe incendiar o pavilhão dourado, tradicional símbolo de um Japão agora perdedor e humilhado, representasse a revolução estética premente aos olhos de Mizoguchi. O país perdeu, toda a população foi vítima de violências atrozes, os americanos ocupavam o Japão e mandavam em tudo, e ainda assim aquele pavilhão seguia de pé, impondo sua tradicional beleza a todos, alienando-os da vida. Como e por quê?  Pra quê?
"E no mundo assim transfigurado o Pavilhão é o único a preservar a forma e a se apossar da Beleza, reduzindo todo o resto a pó."
Pois, ao prosseguir a leitura, eis que esbarrei com um trecho que aparenta sustentar precisamente essa teoria, quer dizer, sustentar esse diálogo que firmei entre a fala de Carolina Vigna e o incêndio do pavilhão (grifos meus):
"Através desse ato, eu estarei impelindo o mundo onde o Pavilhão Dourado existe em direção a um outro onde o Pavilhão deixará de existir. O mundo certamente terá um novo sentido... (...) Conheci então a psicologia dos revolucionários. Esse policial e esse chefe de estação provincianos que conversavam alegremente ao redor das brasas vermelhas do braseiro de ferro nem sequer pressentiam a aproximação da grande transformação do mundo, da destruição de toda a escala de valores à qual de apegavam."
Essa leitura, é preciso reconhecer, bem combina com o pensamento e as ideias de Mishima. No mais, anoto que essa hipótese me faz aproximar Mishima a W. B. Sebald, pelo menos no que diz respeito à inquietação sentida por Sebald em face da apatia e indiferença com que o povo alemão respondeu a destruição e violência das quais foram vítimas, dando continuidade à vida também como se nada tivesse acontecido — são sentimentos compartilhados por Sebald no livro Guerra Aérea e Literatura.

Por outro lado, durante minha posterior leitura de O Livro do Chá, de Kakuzo Okakura, trombei com uma passagem do Sutra Lótus, na qual um pai chama seus filhos de uma casa em chamas para a segurança de um roji (aleia no jardim do aposento do chá). Okakura explica que a casa em chamas simboliza a penosa existência da ignorância e do apego a si próprio, de modo que o roji seria o local para abandonar as confusões do mundo. Visto por esse lado, o ato de Mizoguchi pode ser reduzido àquilo que mais provavelmente é: não uma revolução, mas uma estupidez cometida por um ególatra em estado de confusão, uma pessoa (como talvez dissesse Okakura) com chá demais (= "frívolos estetas que se manifestam ao sabor de emoções descontroladas").

Para esta discussão, vale igualmente registrar o trecho de O Pavilhão Dourado que trata do Décimo Quarto Caso do Mumonkan, o tema Nansen mata um gato, escolhido a dedo pelo Velho Mestre para a reflexão zen no dia da derrota oficial do Japão. Para resumir bastante: um gato lindo e fofo (a Beleza materializada) aparece do nada e provoca briga entre monges, pois todos o querem para si; então o monge Nansen decide resolver o problema matando o bicho; enquanto o sábio discípulo Choshu, após ouvir esse relato, descalça as sandálias, as coloca sobre a cabeça e deixa o templo. E aí? Afinal, mais vale cortar o Mal (= a Beleza) pela raiz (supostamente) como fez Nansen, queimar o pavilhão, como fez Mizoguchi ou, quando diante do caos do mundo, só nos resta pôr as sandálias sobre a cabeça e nos recolher? 

Nas breves resenhas lidas no Goodreads, esbarrei com a afirmação de que o livro trata do Mal, algo que realmente pode ser corroborado a partir do próprio tema Nansen mata um gato (o Mal entrelaçado à Beleza)No entanto, em relação à temática do Mal, minha chave de leitura concentrou-se na proposição de que a exacerbada sensibilidade de Mizoguchi também o leva a enxergar a feiura e o mal do mundo, uma feiura que ele tenta a todo custo provar que existe dentro de si, pois traria lógica ao fato do mundo negar-lhe a beleza. Penso aqui naquela máxima "feio por fora, feio por dentro", além de corresponder a uma reação violenta à negativa de beleza recebida do mundo sempre que ele estendia a mão, uma resposta à rejeição de que ele se julgava vítima. (Putz, esse cara era mesmo um incel, né? rs)
"(...) reconhecia não possuir, com certeza, qualificações que me permitissem entrar na vida pelo lado luminoso. (...) me ensinara pela primeira vez a passagem obscura que me dava acesso à vida pelos fundos."

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"(...) arremedar na minha frente um monge gago entoando sutras com dificuldade, tropeçando nas palavras."
No início da narrativa, Mizoguchi ironiza essa imagem de um monge gago, destacando que a gagueira trancava a porta entre seu mundo interno e o externo; associando gagos à figura de um pássaro preso à viscosidade de um mundo interior. No entanto, considerando-se as reflexões que já registrei no blog acerca da gagueira (foi neste post: "sobre janelas, bicicletas e gagueiras"), achei a imagem do monge gago extremamente bela, para não dizer mesmo propícia à vida asceta. Ora, nada mais oportuno à figura de monge do que a gagueira, se considerarmos (conforme anotei naquela antiga postagem) que, quando a língua é tensionada a tal ponto em que a gagueira se inicia, significa que ela alcançou seus limites, passando a confrontar o silêncio. Persistindo com aquela alegoria de Mizoguchi, minha suposição é que o gago seria como o pássaro que se desgarrou de sua viscosidade interior para voar até os limites do mundo exterior, até a insondável fronteira de onde não se retorna igual. Naquele tema Nansen mata um gato, eu apostaria que Nansen é um monge eloquente, enquanto Choshu provavelmente é gago. Em seu discurso, Mizoguchi discorre bastante a respeito da oposição entre  Palavra e Ação, mas acaba por esquecer o (por vezes) precioso silêncio. Em resposta aos mistérios da vida, há diferença entre colocar as sandálias sobre a cabeça e gaguejar?  E quer saber? Se um monge não for gago, creio que nem darei mais confiança, isso sim.

Ah, Mizoguchi também se diz "gago de sentimentos", porém nessa ele me pegou desprevenida. De supetão, é uma premissa desconcertante.

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Gostaria de registrar as notáveis passagens nas quais Mizoguchi examina e descreve os rostos das pessoas. Chamou-me muita atenção o quanto a personagem esmiúça faces humanas, bem como as leituras e descrições decorrentes desse exercício (a mãe e o mestre prior são alvos frequentes). A mais impactante (pra mim) aparece logo no começo do livro, quando ele descreve o rosto de Uiko, no momento em que ela rejeita o mundo, comparando-o ao rosto que surge no cepo de uma árvore recém-abatida, o cepo exposto repentinamente ao mundo que não é o seu e batido pelo sol e pelo vento como nunca deveria ter acontecido, um estranho rosto delineado pelos belos veios da madeira - um rosto que chegou a este mundo apenas para mostrar rejeição.... 

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Sendo uma tonta apaixonada pelo mar, a experiência estética descrita diante do "Mar do Japão" me tocou bastante. Em determinada passagem, Mizoguchi, então transtornado, viaja em busca do mar da infância, um mar visto por ele como a imagem especular de si próprio. Se lembrarmos o histórico japonês de tsunamis, fica fácil penetrar o ambíguo e contraditório lugar ocupado pelo mar na relação com os japoneses; lugar do qual Mizoguchi se apossa bem. 
"(...) o mar encapelado, sempre irritadiço, o mar raivoso da costa interna do Japão. (...) um mar gasoso que cobria toda a região durante o inverno, um mar invisível, imperioso e dominador. (...) Sim, esse era o Mar do Japão! A fonte de toda a minha infelicidade e de todos os meus pensamentos sombrios. a fonte de toda a minha feiura, de todo o meu poder. As águas estavam agitadas."
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Por fim, preciso enaltecer e agradecer o excepcional trabalho do tradutor, Shintaro Hayashi (edição da Companhia das Letras). Sinto enorme gratidão por todos os tradutores, porém esta tradução me tocou de modo especial. Leio bastante literatura traduzida e não tenho por hábito lamuriar coisas do tipo ai, como queria ler isso no original — simplesmente tomo a mão dos tradutores e salto sorridente no abismo —, contudo a escrita deste livro mexeu comigo a ponto de despertar enorme curiosidade para saber como a prosa de Mishima soa em japonês, sobretudo para aqueles que tem esse idioma como língua materna. Ignoro a razão [talvez porque a dramática morte do autor (por seppuku /degolamento) me conduza a um suposto período remoto e inacessível?], mas a realidade é que antecipei encontrar uma escrita dura e hermética, entretanto me deparei com um quase oposto. A prosa de Mishima (na intermediação de Hayashi) soa moderna, ágil e primorosa, entremeada por uma poesia sutil e elegante. As imagens construídas pelo texto, em especial, são surpreendentes (vide aquela do rosto. é algo que valorizo demais; e autores japoneses costumam ter talento nisso). Sendo honesta, a prosa de Mishima neste livro me remeteu inesperadamente àquela de clássicos modernos americanos/europeus do século XX (talvez venha daí minha reação peculiar a essa escrita), embora a temática e sua respectiva exploração, a meu ver, pouco se relacionam à perspectiva ocidental. Ou melhor: quanto aos temas, consigo perceber que o livro dialoga intrinsecamente à linhagem literária japonesa. (*Não que eu manje muito de literatura japonesa, veja bem.)

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P.S.: bicho, no fim das contas, acho que caí mesmo na lábia de um incel reacionário. Veja só do que as palavras são capazes. Um perigo. Humbert Humbert, neste momento, ri de minha presepada. Malditos, Humbert e Mizoguchi — porém ressalvo que Humbert escreve com propósito deliberado, enquanto Mizoguchi... ali é chá demais, demais.

"E, como ele, eu quis viver."
(pintura feita por mim - *guache)

04/06/2023

[alinhavo x off-topic] Tea leaves thwart those who court catastrophe


                                                                                                  (— Sylvia Plath, Ennui)

Eu sei, eu sei, ninguém aguenta mais análises acertadas a respeito de Succession — por sinal, especulo que o atual caminho para uma série de sucesso seja precisamente este: abastecer a internet de muito pano para manga (argh:) conteúdo —, porém quero registrar só uma ou duas coisinhas.

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Visto que o pôster de estreia foi esse aí, colado à esquerda, é um tanto vexatório que tão somente nesta última temporada eu tenha atinado para os quadros que ocupam os espaços por onde circulam as personagens. Pior: a queda de minhas fichas sequer ocorreu naquele momento possivelmente mais emblemático, no qual Willa escapa do ensaio do próprio casamento e é perseguida pelos olhares fantasmagóricos nos dois retratos de Andy Warhol. [Reparar, é lógico que reparei; porém o fiz com o pensamento puta merda, eu bem queria um desses no corredor aqui de casa. Encontrei este interessante texto sobre essa passagem: How “Succession” Used Art to Foreshadow Its Most Shocking Twist Yet.]

Na verdade, este sim foi o instante responsável por fisgar meu olhar para o fundo do enquadramento:
Para começar (e encerrar? rs) a conversa, basta meramente observar essa curadoria e compará-la àquele quadro no pôster da série — de Peter Paul Rubens; Caça ao tigre e leão. Não é insana a discrepância entre os respectivos conteúdos expressivos? Visto que a paisagem às costas de Roman atende demais meus desejos estéticos, não surpreende nada que meu olhar tenha sido hipnotizado por essa curadoria de quadros. Com a ajuda da tiktoker (!) @meelzonart, identifiquei três deles:




- à esquerda: ? - a tiktoker tem dúvida, mas aposta num Giacometti, porém eu não achei. Cacei ontem um tempão, cogitei um Dürer, porém não tive sorte. Bem, parece ser um estudo a carvão de nu feminino (*sabe de quem é? mande aí)

Os quadros que espreitam Roman nessa cena são, com efeito, "meros" estudos/ desenhos/rascunhos, portanto representam algo que, teoricamente, ainda pode evoluir para uma outra coisa; quer dizer, as possibilidades permanecem abertas, pois aquelas são tentativas. Os materiais — aquarela, carvão, grafite —, por sua vez, conferem leveza e delicadeza, visto que são translúcidos e sem muito peso, carecendo do vigor e sensualidade da tinta (em especial daquela a óleo). E o aparente predomínio de linhas, com formas e volumes pouco definidos, sugere uma aura poética e serena. Quando esbarrei com essa galeria na retaguarda de Roman, imediatamente retornou-me o texto no qual  Fayga Ostrower comenta uma ilustração do chinês Chao Yuan, no precioso livro Universos da Arte (leitura em curso e que tanto me ajudou neste post). Peço licença para tomar emprestadas algumas palavras da autora, a fim de melhor expor o que essa paisagem na qual Roman é inserido me evoca: "(...) o típico espaço linear, frágil e translúcido (...) numa visão contemplativa da vida. A grave ternura desses desenhos, seu silêncio e sua contenção."

Pois é, será que, no fim das contas, Roman é um introspectivo sensível à poesia e à contemplação, aberto para novas possibilidades que nada tenham a ver com o legado paterno?! (Não ria, a pergunta é séria, poxa.) Deixo a insinuação suspensa no ar. Anoto, contudo, que o momento em que ele não consegue pronunciar-se durante o velório do pai me quebrou por completo, porque as palavras dele, aos prantos — ~ "Meu pai está mesmo dentro daquele caixão? Não podemos tirá-lo de lá? —, refletem exatamente o que me consumiu após o enterro de minha avó. Eu tentava dormir, mas minha cabeça teimava em gritar que minha avó tinha sido trancada dentro de um caixão e enfiada dentro de um buraco; e como assim a deixaríamos ali? Meu corpo se coçava para saltar da cama e tirá-la dali. É por essa (e muitas outras) que Hilda Hilst manjava mesmo dos rolês, tão sábia ao escrever, na obra A Obscena Senhora D:
"(...) um homem, apenas o sexo saudável, um que não amolece diante do sangue, do cheiro, que vê vida e morte tudo natural, naa tuu rall, tudo é muito natural, morrer ó morrer faz parte da vida, mocinha, que bobagem, óóóóóhhh"

                                                                                   — Hilda Hilst, A Obscena Senhora D 

Isso aí; Hilda, natural é o caralho! O problema é que o posto deixado por Logan pedia um homem que não amolecesse do jeito que Roman amoleceu, um homem que achasse tudo muito natural, e não um homem que corre para mãe diante do sangue e do cheiro, que tem medo de tubarões e que se angustia, com sentimentos de dúvida e culpa, ao demitir funcionários. 

Admito; eu meio que comprei a sugestão de uma enviesada redenção (?) para o Roman. Veja, não digo que ele virou um santo apenas porque chorou com a morte do papai, no entanto, dentre os três irmãos, ele é o que mais avançou no tal processo que chamamos toscamente de ~autoconhecimento~ (ou o que quer que seja isso). O que tento dizer é que os três são tontos incompetentes, contudo:

- A Shiv é a pior, pois é a tonta que 1. não sabe que é tonta e 2. se acha muito esperta. Essa sequer começou a descida;

- O Ken, em seu íntimo, sabe que é um tonto, porém ainda tem esperanças de que pode provar para si e para o pai que é um espertão à altura de liderar uma megacorporação americana. Ele está a meio caminho da descida — na cena final, está decidindo se retoma a subida ou se desce de uma vez;

- O Roman, nesta última temporada, finaliza a descida: abraça a consciência plena de que é um tonto desprovido das habilidades — sobretudo emocionais — necessárias para liderar o império.


Agora, regressarei ao vídeo da tiktoker @meelzonart, pois, para além do que já discorri, há outro ponto que me faz divergir um pouco da análise compartilhada por ela (*ressalto que, quando ela publicou o vídeo, a quarta temporada ainda seria exibida) [Link 1 aqui; Link 2 aqui.]. Eis, em resumo, o que @meelzonart fala (tradução livre):
"(...) vemos o tema do homem e da paisagem, sobretudo no que refere-se a conquistas. (...) (Gauguin) era um homem colonialista, que explorou e objetificou muitas mulheres quando esteve no Taiti. A premissa de fruta exótica e terra em Renoir trabalha a ideia de conquistar um império. (...) Quero chamar atenção para o quadro de Daumier. Van Gogh o viu e comentou sobre ele numa de suas cartas ao irmão Theo. Ele escreveu: "Deve ser bom pensar e sentir assim, e superar e ignorar uma multidão de coisas." A ideia de ter tanto dinheiro, tanto privilégio a ponto de não ter de se preocupar com nada exceto ser mais rico que o pai. (...) Vistas independentes e em conjunto, essas obras contribuem para a narrativa de que Roman quer ser escolhido como o conquistador supremo."
Achei o olhar dela algo simplista e redutor  — mas, como ressaltei, ela ainda não tinha visto a quarta temporada (não sei se a opinião dela mudou). Além disso, tive a sensação de que ela usa a série como premissa de leitura dos quadros (de outro modo, parece forçar uma interpretação dos quadros que se encaixe na trama de Succession); enquanto o movimento de leitura correto, a meu ver, seria primeiro ler as obras por si mesmas, depois partir para a leitura isolada da série, e só então cruzar as respectivas expressões artísticas. No mais, pontuo duas questões:

1. Por causa da forma com que ela cita o comentário de Van Gogh sobre o quadro de Daumier, um tanto fora de contexto, resta a sensação de que Van Gogh estava debochando de um dito privilégio daqueles que podem se dar o luxo de não se preocupar com coisas mundanas. Bem, é quase o oposto disso. 

No momento, estou lendo justamente uma coletânea das cartas de Van Gogh e, na hora em que a tiktoker mencionou o comentário, dei um salto, pois foi um trecho significativo que grifei. Na realidade, é um ponto em que Van Gogh compartilha com Théo reflexões acerca da escolha entre pintar figuras humanas ou paisagens. O pintor confessa cada vez mais acreditar que o maior valor estaria em retratar pessoas (como ele de fato fez - trabalhadores humildes do campo, mineiros, tecelões...). É nesse contexto que ele recorre ao sketch em aquarela de Daumier (uma ilustração para Balzac!), fazendo referência mais à mente do próprio Daumier (e não um deboche da imagem), um pintor que o inspirava ao deixar de se ater a pradarias e nuvens, a fim de focar naquilo que realmente importa: sim, pintar um velho "qualquer" a ler sob castanheiras (para quem tem a edição da L&PM: página 90). Quer dizer, Van Gogh, em certa medida, defende que foquemos no que dá o que pensar, e no que diz respeito de uma maneira mais pessoal ao homem enquanto homem (tradução: Pierre Ruprecht).

2. Por outro lado, a tiktoker tem plena razão ao afirmar que o precioso tempo que a privilegiada turma de Succession tem é despendido apenas na perseguição por mais dinheiro. Mas esse é o paradoxo, não? Digo, pensar no que dá o que pensar, como propõe Van Gogh, é bem difícil. Dois livros povoam minha cabeça quando reflito sobre tais questões. Em Jakob Von Gunten, de Robert Walser; há uma passagem na qual Jakob comenta que esse lance de ficar à toa, tal qual o velho na ilustração de Daumier, pode trazer consigo a dor da existência. Jakob defende que ficar sem fazer nada e mesmo assim preservar o sentido da existência exige muita energia de uma pessoa. Para a personagem, quem permanece ocupado com alguma tarefa usufruiria paradoxalmente de uma vida mansa, em comparação. Na sequência, para complementar, lembro que o narrador de Nancy Mitford, no livro The Pursuit of Love — essencialmente uma obra que retrata riquinhos ingleses de 1940's, uma quase autoficção dos Mitford — denuncia que aqueles ricos (extrapolo por minha conta: virtualmente todos os ricos) nunca adquiriram o hábito da concentração, portanto não toleram o tédio. Tempestades e dificuldades? Tranquilo, só jogar e eles matariam no peito. Contudo, dia após dia de uma existência ordinária era, para eles, uma tortura entediante. A narrativa de Mitford aponta para a chave: eles, os ricos, não tinham a disciplina mental (a tal energia referida por Jakob) para tolerar o tédio, para não fazer nada. Posto isto, como esperar que os Roy usem o enorme tempo de que dispõem para sentar sob castanheiras? Para ficar a olhar o mar, não é, Kendall? Se importar com belas vistas de janelões, não é, Lukas? Achar que algo acontece em NY, não é, Lukas? 

A maioria dessas narrativas sobre ricos, tão na moda atualmente, são, em larga escala, estudos sobre o tédio. Sylvia Plath, creio, concordaria comigo. Quem sabe a predisposição de Roman seja outra?

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Para encerrar, um breve comentário relacionado ao último quadro, aquele que envolve Shiv em seu momento apoteótico (?):
Também com a ajuda da @meelzonart, descobri que esse quadro foi concebido pela artista Elizabeth Castagna e intitula-se This. Bom, de novo me oponho à análise de @meelzonart ("Shiv ultimately looks out for herself and her child" - link para o vídeo dela aqui: X), e focarei em minha leitura, a qual sustenta-se numa fortuita casualidade literária.

Meu ponto de partida foi esta ominosa escolha de palavras feita pela secretária ainda dentro do avião, ao lado do corpo do chefe:
Ou seja, o cara morreu, então é hora de juntar os ossos. Ok. Logo em seguida, retomei a leitura da coletânea Extração da Pedra da Loucura, de Alejandra Pizarnik e, já no finalzinho, esbarrei com estes versos:

(...) - falo do irremediável,
peço o irremediável -, o corpo desatado e os ossos
espalhados no silêncio da neve traidora. (...)

— Alejandra Pizarnik; Noite compartilhada na lembrança de uma fuga (Tradução: Davis Diniz)

Pronto, agora basta parear o quadro da sala de votação e o quadro na sala em que Shiv revela sua decisão ao irmão, e fica fácil deduzir aonde cheguei:
Não, Shiv não permitiria a patacoada de juntar os ossos de Logan. Dessa maneira, vale reconhecer que dois coelhos se vão com a cajadada única de Shiv: 

- o pai estava morto, e ela garante que assim ele permaneceria — aniquila-se a bobajada de que Logan (seu legado) seguiria vivo mediante a sucessão por um de seus filhos; 

- em conversa com Roman era apenas uma piada, no entanto Shiv de fato assassina o irmão, espalhando os ossos de Kendall no silêncio da neve traidora

28/04/2023

Doris Lessing X Série Coreana Porque esta é a Minha Primeira Vida

Uma conversa em vídeo sobre dois contos da autora Doris Lessing, em paralelo à série de TV coreana Porque esta é a minha primeira vida (2017), escrita pela roteirista Yoon Nan-joong. Para acompanhar, incluí os processos de pinturas/desenho inspirados pela série.

Os contos da Lessing são:
- To Room Nineteen / O Quarto 19;
- An Old Woman and her Cat / Uma Velha e o seu Gato (início no vídeo: 22:34).

* Episódio do Podcast Méxi-ap sobre a série: LINK AQUI


* [P.S.: crédito da inspiração para o formato deste vídeo pertence ao programa Pintando com John (HBO  - John Lurie), pois adorei a proposta de vê-lo pintar, enquanto o escuto papear.]


*O resultado final da pinturinha:

26/02/2023

[autoficções #4] And I draw a line to your heart today

[*Filme: Um dia, um gato/ When the cat comes/The Cassandra Cat; Vojtěch Jasný (1963)]

Não tenho lido nada [iniciar ano com leitura sem graça dá nisso], não tenho desenhado/pintado e minha saúde já esteve melhor, porém bateu tremenda vontade de conversar. Além do mais, alguém precisa alimentar o banco de dados das I.A.'s de Texto & Imagem, confere? Post singelo, trazendo alguns desenhos/pinturas do ano passado, os quais ajudarão a puxar assunto, misturados a breves entradas diarinho, combinado? Bora lá.

💬 Eis que o tcheco Um dia, um gato/ When the cat comes, de Vojtěch Jasný, deu as caras na MUBI, e finalmente pude vê-lo — a espera valeu, gostei. Já joguei uma cena/frase excelente do filme no topo deste post, mas também preciso guardar a passagem na qual as crianças começam a pintar como imaginam (sem que o professor peça, ressalto) o gato da história que escutam; um gatinho especial que cobre os olhos com óculos escuros, a fim de não revelar as verdadeiras cores das pessoas. Caramba, lindo demais. 👇



💬 A autora japonesa Sayaka Murata concedeu uma ótima entrevista ao Louisiana Channel [link: Writer Sayaka Murata 村田沙耶香 | Louisiana Channel], e registro aqui o fascinante processo criativo compartilhado pela autora. Murata explica que, para criar suas histórias, ela desenha suas protagonistas num caderno, construindo um pequeno aquário de personagens. Colo esse achado na postagem porque ele incidentalmente se conecta belamente à elaboração criativa das crianças no filme de Jasný: elas escutam a história falada, transferindo-a em desenho no papel; enquanto Murata, por sua vez, desenha a história no papel, para então transformá-la em história escrita. Claro que não estou chorando, que ridículo seria.
"Quando escrevo romances, uso cadernos. Eu rascunho a personagem no caderno — não apenas seu rosto, mas também sua altura e roupas, para saber de onde ela vê o mundo, o lugar onde ela cresceu e viveu durante a infância. Quando termino a protagonista, desenho as personagens que a rodeiam. Enquanto as desenho e as nomeio desse modo, elas automaticamente começam a conversar entre si; daí eu escrevo as cenas. É como se eu estivesse construindo um aquário (...) onde coloco minhas personagens. (...) Em seguida, começo a mudar o mundo onde estão. Quando faço coisas diferentes, todos no aquário começam a se mover, então a história naturalmente se revela; momento em que escrevo o que observo.         
— Sayaka Murata.
P.S.: Terráqueos já está na fila para leitura em 2023, portanto Murata poderá visitar mais uma vez o blog. O Querida Konbini já rendeu post: aqui.


💬 Não lembro de que forma começou ou por que deixei acontecer, porém confesso que estou circulando por dois becos de elevada periculosidade do You Tube: os nichos das entusiastas de caneta-tinteiro e as de fotografia. Exato; necessito encontrar forças para não sucumbir, caso queira evitar irreparável e certa derrocada financeira. Quanto às canetas-tinteiros (por ora, possuo somente uma modesta Kaküno), acredito que será fácil resistir, pois me parece um hobby algo peculiar [galera da papelaria na internet se parece assustadoramente com fã de marcas (destaco algumas recorrências observadas: Superior Labor, Hobonichi, Kaweco, Sailor, TWSBI...); rolam uns papos bem bizarros, acho. Até a caligrafia da galera se torna igual; doideira], mas quanto à fotografia, receio de que não haverá remédio. Nos próximos dias, pretendo decidir e fechar a compra de uma câmera e set de lentes; a ver. Será algo de entrada e de baixo orçamento — e desejem-me sorte, pois pretendo me aventurar no AliExpress. [*Atualizando em 03/03: claro que deu ruim ao tentar comprar lá; pelo menos a merda ocorreu logo na saída. Por que insisto no erro, jesus?]  Assim, além de desenhos e pinturas ruins, possivelmente também trarei fotos de qualidade duvidosa para o blog, em futuro incerto. Yay! Anoto uns objetos de estudo que me inspiram neste projetinho de fotos: aquelas pequenas flores de mato para as quais ninguém liga, os cãezinhos e capivaras do parque, passarinhos e insetos. 


💬 Por falar #1 em fotografia e MUBI, trago esta minha pintura da cena de um filme que vi por lá (guache + aquarela):

Madeira e Água (2021), de Jonas Bak, narra a história de uma alemã viúva e aposentada que viaja à Hong Kong, durante os protestos de 2019, para visitar o filho. Adorei a delicadeza do filme; os momentos de silêncio e solidão da personagem, bem como a relação estabelecida com a paisagem por onde ela circula, me tocaram bastante. Esta pintura me ajudou a consolidar uma lição importante, explico-a rapidinho: quando comecei a desenhar/pintar e esbarrei na câmera fotográfica, paralisei porque "como diabos se desenha uma câmera fotográfica?", contudo logo me lembrei de que "calma, sem estresse; basta desenhar as formas, sombras e luzes que enxergo, e a imagem há de se materializar." E não é que se materializou legal?

E pinço um momento logo no início do filme, quando a personagem vê-se obrigada a passar a primeira noite no país num quarto de albergue. Uma jovem no beliche puxa conversa com essa senhora turista, contando-lhe as perícias de sua viagem que se encerrava naquela noite, quando então pausa e emenda tão gentil: "— Desculpe, esta é minha história. A sua está apenas começando." Quer dizer, até aqui, meu post pensa em: desenhar histórias, fotografar histórias, contar histórias, ouvir histórias, escrever histórias, viver histórias.


💬 Por falar #2 em caneta-tinteiro e MUBI, ano passado pintei uma cena do filme A Ilha de Bergman (2021), de Mia Hansen-Løve (aquarela):
 
Não consigo descrever o quanto gostei desse filme (a primeira metade, ressalvo), entretanto afirmo que, ao final, eu só queria saber de embarcar para uma ilha sueca carregando cadernos, livros e canetas-tinteiros debaixo do braço, e por lá passear de bicicleta e nadar com águas-vivas. Puxa, adoro essa diretora — ah, e a atriz, Vicky Krieps! Por sinal, devo finalizar um retrato dela que desenhei no fim do ano passado, quase pronto. 

[P.S.: é, não nego que mulheres contemplativas, olhando para o espaço (janelas!!), é um apreciado tema.]

*
[ATUALIZAÇÃO 26/03/23:] Pronto, desenho da Krieps finalizado (*grafite; lápis de cor). 

***
Pera, impensável falar de águas-vivas e ilhas suecas, sem trazer de volta um de meus poemas favoritos, do sueco Tomas Tranströmer (que poeta subestimado por estas bandas brasileiras, pessoal; por quê? / *tradução: Marcia Schuback):
*
[ATUALIZAÇÃO 26/03/23:] Como casa com o tema, colarei esta pintura que também finalizei agora, usando como referência a imagem de um mini vídeo publicado no Instagram pelo artista Scott Campbell [era a visita da filha dele (creio) ao Aquário Nacional de Baltimore.] (*guache)
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E que coincidência!: vejo que uma artista de São Francisco, que comecei a acompanhar faz pouco tempo no You Tube (Christina Kent), acaba de postar um breve vídeo no qual pinta in loco a ilha de Alcatraz. Putz, é totalmente meu tipo de rolê, queria demais. Ilhas são realmente paisagens especiais, não tem jeito. Felizmente, já tive oportunidade de visitar a ilha de Alcatraz e fiquei absolutamente encantada com o lugar, o que me desconcertou um pouco, dado seu peso histórico. No entanto, o livro Slouching Towards Bethlehem Rastejando até Belém, de Joan Didion, inclui um texto que me apaziguou os sentimentos, pois Didion assegura que, por mais que ela própria tente imaginar aquele espaço como a prisão que um dia foi, não consegue desgostar dali. Trago trechinho do que ela escreveu, anotado com carinho num de meus cadernos:

 

"It is not an unpleasant place to be, out there on Alcatraz with only the flowers and the wind and a bell busy moaning and the tide surging through the Golden Gate (...) I liked it out there, a ruin devoid of human vanities, clean of human illusions, (...) I came back because I had promises to keep, but maybe it was because nobody asked me to stay."  — Joan Didion. 


Ok, talvez uma visita à ilha de Fårö seja muito complicada (será? caro, com toda certeza seria), enquanto uma revisita à Alcatraz seja mais factível? Por enquanto, retornemos via foto:
(*apaixonada pela gaivota lá atrás, inspecionando o que eu aprontava com malabarismos, para me fotografar sem ajuda.)


💬 Voltarei à MUBI [juro que este post não é patrocinado, mas, hey, fico à disposição da plataforma] para fixar no blog outra bela passagem de filme envolvendo desenhos. Na obra Il Buco (2021), de Michelangelo Frammartino, nada acontece, a paisagem é absurdamente linda e o silêncio prevalece (ou seja, lógico que amei). Acompanhamos a expedição do Grupo Espeleológico do Piemonte, ocorrida em agosto de 1961, o qual se dirigiu ao sul da Itália (Calábria) para explorar a caverna do Abismo Bifurto, então desconhecida. Em paralelo aos trabalhos da equipe, há cenas de um aldeão que pastoreia a região (ator? suspeito de que seja um local escalado pelo diretor), um senhor com uma mirada super intensa (sério, ele está fantástico em cena). Daí, dentre os membros do grupo, há um cartógrafo que, à medida que a exploração avança, desenha o mapa da caverna. As cenas nas quais o pesquisador trabalha no mapa, usando nanquim e bico de pena, paralelamente ao que vemos ocorrer com o aldeão e à própria paisagem italiana, é lindo, lindo, lindo. Depois desse, Frammartino é outro diretor que entrou no peito, sem dúvidas, pois também aprecio o Le Quattro Volte (2010).

Inclusive, que parceria espetacular, não? Cavernas e Ilhas. Sim, colocarei esses elementos no meu hipotético aquário criativo — ao lado das canetas-tinteiros, máquinas fotográficas, frascos de tinta, águas-vivas e gatinhos de óculos escuros. Está ficando bonito.

(ah, este fundo cego... o percurso na caverna: everything was beautiful, and nothing hurt.)


💬 Para não dizer que não estou lendo nada, vale comentar brevemente que leio (aos pouquinhos, com calma) a coletânea de cartas que Van Gogh escreveu ao irmão Théo (dívida antiga minha). Estou radiante por me deparar com comentários tão ricos, generosos e honestos de Van Gogh acerca de seu processo criativo e de sua própria formação artística — que material valioso são estas cartas; e o quanto desmistifica a ideia de genialidade mágica. Reservarei impressões mais detalhadas para um possível post futuro (há tanto por falar), contudo, dado que minha pintura anterior do A Ilha de Bergman foi feita com aquarela, é imperioso destacar o quanto me satisfez ver Van Gogh corroborar que aquarela é coisa do diabo ("A aquarela é algo diabólico." - tradução: Pierre Ruprecht). Puta material desgraçado sim. Tenho curtido bem mais o guache e já investi numas tintas de cores primárias da Royal Talens (porém os vidrinhos são tão lindos, que persisto com pena de usar; daí continuo brincando com o baratinho HIMI).

"(...) a aquarela exige uma grande habilidade e uma grande rapidez no trabalho. Deve-se trabalhar no material meio úmido para obter harmonia, e não há muito tempo para pensar. Trata-se, portanto, não de trabalhar fragmentadamente, e sim de esboçar quase de um só golpe só (...)"       

                                                                                 — Van Gogh.

 


💬 Outro filme que invadiu minhas pinturas do ano passado foi Holy Motors (2012), do Carax (guache):

Visto que os filmes prévios do Carax aos quais assisti não me deixaram extasiada, me surpreendi um bocado com o quanto amei esse filme. Dane-se, tascarei um perfeito — poxa, tem tudo que valorizo: boas atuações, silêncios, é engraçado e triste na medida (piada discreta com assunto tabu? sou a favor; melancolia infinita? principalmente), é sem pé nem cabeça e ao mesmo tempo possui todo o sentido para instigar reflexões complexas; e tudo isso sem se levar a sério. No meu dicionário, é perfeito mesmo. Inclusive, percebi que o grande equívoco de Carax no filme Annette (2021) foi não ter escalado Denis Lavant para o papel do protagonista (perdão aí, Adam Driver).  AH! Não posso deixar de comentar: vi graças à plataforma Cine Sesc Digital; tremenda iniciativa massa.

Para encerrar estes devaneios, escolho transcrever a resposta da personagem de Lavant à pergunta acerca do motivo que a faz prosseguir fazendo o que faz. Trago a frase porque, em parte, ela ajuda a justificar minha dedicação a este humilde e inconsequente blog em pleno 2023, ano em que apenas robôs de I.A. e de indexação leem coisas na internet. [Suponho, a propósito, que seja a mesma razão por que Carax prossegue fazendo seus filmes. E que bom.]
"— O que me motiva desde o início: a beleza do gesto."
(guache - minha pinturinha de 2022 que mais curti. This is the way, I guess)