08/01/2023

Of imagination all compact

Dia desses, enquanto eu desenhava, ouvi uma antiga e breve palestra proferida por Maria Rita Kehl sobre sua tese intitulada o bovarismo brasileiro. Em certo momento do evento, o mediador aproveita o gancho para engatar jocosamente a ideia de que Flaubert, em Bouvard e Pécuchet, também critica as figuras que ilusoriamente julgam-se grandes intelectuais da nação. [É, parece que temos esta: bovarismo intelectual — eles disseram, tenho nada a ver com isso.] Visto que a galera curte ridicularizar o coleguinha (na academia, então, vixe), o rumo do papo não espantou; no entanto meu lápis parou de percorrer o papel quando ouvi Kehl retrucar: "Mas, veja, eu não gosto de usar esse tema do bovarismo para acusar ninguém." Como nunca li a tese da autora, me admirei ao vê-la esforçar-se, por mais de uma vez durante o seminário, para desfazer a corriqueira chave de leitura que condena Emma Bovary — e, por analogia, indivíduos não ficcionais — simplesmente porque ela quis mais, quis ser uma outra; porque ela imaginou → desejou. Conforme pontuou Kehl, a presepada de Bovary nem é imaginar; é sobretudo desconhecer/não dominar o jogo social para concretizar suas fantasias (cabe ressaltar que, sendo mulher no século XIX, Emma já entrou no jogo em desvantagem). Enfim, dessa específica ponderação da psicanalista, quero transcrever os seguintes trechos:
"Imaginar é o primeiro passo para termos contato com nosso desejo, é quando ele surge na forma de fantasia, a qual pode até ser enganosa, mas não imaginar é muito pior, já teríamos a depressão... 
(...)
Se a gente não sonhar querer ser mais do que é, a gente se deprime. A questão do bovarismo é não saber manejar os mecanismos do mundo para chegar onde se quer.
(...)
O sentido da vida (que não é dado) é uma invenção que depende tanto da imaginação.... e daí não é uma coisa específica. (...) Numa sociedade em que nosso imaginário já vem de fora para dentro, a depressão aumenta. Deveria diminuir, já que se oferece o sentido o tempo todo, mas não é um sentido que o (próprio) sujeito encontra para responder suas questões. (...) Ao mesmo tempo que o indivíduo tem uma oferta enorme de fantasias que poderiam lhe dar sentido para a vida, ele não consegue engajar em nenhuma, pois não foram/são elaboração dele."
                  — Maria Rita Kehl, 3o Seminário do Programa de Pós-Graduação em Lit. Brasileira da USP 

Pois é; fiz todo esse floreio e sequer quero devanear sobre bovarismo ou Madame Bovary exatamente, mas sobre Imaginação. A transcrita fala de Kehl, quero dizer, sua específica perspectiva a respeito da imaginação, norteia grosso modo esta minha groselha.

💭 

Três livros lidos numa sequência fortuita me empurraram inicialmente para este precipício; todos com protagonistas que se agarram à imaginação porque (tomando as palavras de Maria Rita Kehl:) não imaginar seria muito pior. Listando as obras sucintamente:

(1) Jakob Von Gunten, de Robert Walser (tradução para o inglês: Christopher Middleton)

O jovem Jakob Von Gunten não fazia ideia do que o aguardava quando resolveu fugir de casa e bater à porta do Instituto Benjamenta, porém tão logo pôs os pés ali, ele soube que jamais escaparia da escola onde ninguém aprende nada, lugar que o transformaria num charmoso zero à esquerda. Ok, talvez não seja para tanto, pois Gunten se tornaria sim uma coisinha de algum valor: aprenderia a servir bem para servir sempre, tornando-se um homem paciente, subordinado e disciplinado. — (Para voltar às palavras de Kehl:) O sentido da vida já tinha sido imaginado para Gunten, a quem só restava assimilá-lo com a ajuda do Benjamenta. — Os irmãos Herr Benjamenta e Fraulein Lisa Benjamenta, responsáveis pela direção da escola, e o corpo docente (professores sonolentos, mortos ou aparentemente mortos, fossilizados) eram verdadeiras miragens do inescapável futuro dos garotos do instituto.

No início da narrativa, Gunten diz algo notável a respeito do aluno e amigo Schacht: "Ele sonha em tornar-se músico. Ele me diz que toca violino maravilhosamente, com a ajuda de sua imaginação, e eu acredito nele." Gunten acrescenta que os dois se contam histórias de vidas inventadas e que, quando o fazem, têm a sensação de que uma música começa a tocar e que o quarto estreito e escuro se expande, abrindo espaço para ruas, palácios, cidades, paisagens, vozes... Quer dizer, um refúgio possível parecia existir aos alunos na imaginação; elemento que se transfere para a forma narrativa da obra, dado que, por vezes, eu não sabia se estava com Gunten no Benjamenta ou se tínhamos partido para lutar ao lado de Napoleão ou mesmo acompanhar um funeral numa floresta mágica. O imaginário de Jakob era, de fato, mais empolgante que a realidade na qual ele vivia, realidade que rouba coisas e parece espalhar tristeza por prazer. Jakob Von Gunten, um fedelho cheio de deliciosas gracinhas e super melancólico... Que incrível narrador.

(2) The Prime of Miss Jean Brodie, de Muriel Spark

A senhorita Jean Brodie até pode estar no auge da vida, porém quem me interessa aqui é uma de suas alunas: Sandy Stranger, futura Irmã Helena da Transfiguração. Isso; o Instituto Benjamenta sai de cena para ceder lugar à Escola Marcia Blaine. [Bicho, qual o problema das escolas? É, teachers, leave the kids alone.] Exposta à insólita influência de uma pessoa tão peculiar quanto Jean Brodie, não surpreende que a imaginação de Sandy voasse alto a ponto de escrever fanfics de romances eróticos protagonizados pela tresloucada mentora. No entanto, essas fanfics sequer representam o ápice de Sandy, cujo talento imaginativo máximo transparece nos trechos em que ela maneja habitar simultaneamente duas realidades. Destaco estas formidáveis passagens:

- Brodie leva as alunas para assistirem a um espetáculo de balé, o que imediatamente aciona a engrenagem imaginativa de Sandy, que transforma-se numa talentosa bailarina Principal de uma grande companhia de dança, daí iniciando altos papos com a estrela do espetáculo a que assistiam e que, claro, despeja fervorosos elogios para Mary Sue Sandy;
- Sandy lê Jane Eyre e catapulta a si mesma para o posto de amante num romance tórrido com Mr. Rochester;
- Ah, sim, é preciso incluir a fanfic com pitadas sáficas na qual Sandy se envolve com uma mulher policial. 

Que Sandy tenha se tornado freira (e feito o que fez com Miss Brodie), é de uma sagacidade que talvez só a mente trevosa de Muriel Spark seria capaz de bolar. Sandy Stranger, nossa grande quixote adolescente.

(3) Journey by Moonlight, de Antal Szerb (tradução para o inglês: Len Rix)

O que acontece ao protagonista deste livro e que, a meu ver, o conecta às duas personagens previamente citadas é um tanto mais complexo. Mihály é um marmanjo de quase quarenta anos, portanto aquele destino pequeno-burguês reservado a Gunten e Sandy já berrava-lhe à porta, entretanto ele tenta escapar mesmo assim. Mihály larga a esposa durante a lua de mel na Itália e vai atrás de uma fantasia adolescente há muito encerrada, uma perseguição algo patética dos fantasmas da época de escola (yep, de novo ela). O que chama atenção no relato de Mihály é que o período adolescente narrado com ares nostálgicos caracteriza-se sobretudo por brincadeiras de encenação (literalmente) de histórias e de papéis muito mais excitantes do que a vidinha de trabalhador casado que o esperava. Esse passado adolescente inutilmente perseguido por Mihály é o do convívio com amigos que tinham um imaginário infinitamente superior ao dele. A cereja do bolo é que um desses amigos segue aquela mesma trilha de Sandy: torna-se monge na Itália. 

💭

A decisão de ler Simone Weil no momento em que eu persistia impregnada pelas histórias de Gunten/Sandy/Mihály revelou-se um baita equívoco, visto que a autora me deixou louca do juízo quando me disse que é preciso largar mão dessa besteira de imaginação. Mas, mas... Se aquelas personagens desapegarem da imaginação, o que lhes restará? Exato, só restará o vazio (ou a depressão, como falou Kehl), contudo este é precisamente o ponto de Weil nas anotações acerca de sua mística cristã, publicadas na obra Gravity and Grace (La pesanteur et la grâce / A Gravidade e a Graça - tradução para o inglês: Emma Crawford e Mario von der Ruhr). A premissa da autora é até bastante lógica: para ela, o sofrimento é o que permite à Graça nos alcançar, dessa maneira a busca por consolos deve ser rechaçada. Há consolo maior do que a imaginação, onde tudo é excitante, usualmente perfeito e sem contradições? Weil destaca que a imaginação é um obstáculo à Graça porque nos afasta da realidade presente, mediante construção de um passado (Mihály) e um futuro (Gunten, Sandy) ilusórios. Para Weil, em tudo não encoberto pela imaginação há a presença real de Deus. Além disso, outro ponto fundamental na mística de Weil é a demolição do Eu; portanto, se inexistir um sujeito para imaginar, talvez nem haja mesmo que se falar em imaginação. Até aí, "tudo bem", o contratempo foi entender onde fica a literatura no meio disso tudo, especialmente porque, ao contrário do que supus, Weil não lhe impõe uma objeção absoluta. Há um trecho explícito quanto à questão que reflete a influência platônica, no qual Weil menciona que a literatura é válida quando penetra a realidade mediante a arte, coisa que só gênios conseguem fazer. No entanto, continuo achando que as peças não se encaixam, ainda mais quando a literatura é tão intrinsecamente humana e repleta de Eu's.

Na ânsia por alguma conciliação com a tese de Weil, lembrei de supetão que o livro do Northrop Frye, A Imaginação Educada, estava aguardando leitura na estante, daí me pus a lê-lo. Pronto, esta sim foi uma decisão afortunada, pois Frye me apontou para o óbvio que sempre esteve bem diante de meu nariz: 

"Usamos a imaginação o tempo todo: ela participa das nossas conversas, da nossa vida prática (...) a imaginação é a própria base da nossa vida social." 
                       — Northrop Frye, A Imaginação Educada                                               (tradução: Adriel Teixeira, Bruno Geraidine, Cristiano Gomes)

Quer dizer, me dei conta de que, claro, era preciso dar um passo para trás e recordar que a construção de toda nossa existência depende da imaginação, inclusive a dita e suposta realidade. Não me contive e ousei questionar: ora, então Weil não se valeu de sua própria imaginação para escrever as anotações de A Gravidade e a Graça? A pergunta não subentende que as teses de Weil são necessariamente delírios sem sentido, mas que ironicamente partiram daquilo que ela, em tese, recrimina. Inclusive, no ensaio intitulado Simone Weil (coletânea Contra a Interpretação), Susan Sontag a inclui entre os escritores que vêm para oferecer um alargamento da imaginação (em oposição aos que contribuem para uma verdade, aliás). Afinal, acho que consigo apreender melhor esse ponto do pensamento de Weil, caso o combine àquele de Freye, chegando ao consenso particular de que ao menos a imaginação mal treinada, que embaça a realidade, merece um rechaço assertivo. (Este, o vacilo de Emma Bovary, por sinal.)

💭

Engraçado, agora, perceber que minha insistente defesa da imaginação neste post acidentalmente sugere que o faço por ser uma exímia imaginadora, alguém com uma capacidade imaginativa prodígio. Puxa, quem me dera, pois meu atual problema é justamente não conseguir imaginar mais nada. Bom, se Weil estiver certa, significa que a Graça logo me encontrará. Xi, mas assim virará consolo. É, praticar as ideias de Weil não seria moleza.

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