Sequer recordo a última vez que publiquei um post focado em um único livro [foi libertador atinar que, para conversar sobre minhas leituras, não estou obrigada a escrever famigeradas resenhas], porém sinto que
O Pavilhão Dourado — meu primeiro contato com Yukio Mishima (tradução: Shintaro Hayashi) — solicita um singelo registro, um desafogar de sentimentos e de banais reflexões, que seja. Para quem procura uma baita
análise acertada®, peço perdão, pois não encontrará nada disso aqui.
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E se eu disser que li o livro sem saber que Mishima se inspirara em um evento real? Fiquei abestalhada quando a galera do Goodreads me contou que a premissa realmente aconteceu. Estava ciente de que a maioria das edificações históricas japonesas se perderam em incêndios (temos, hoje, meras reconstruções), mas que alguém tenha ateado fogo num daqueles templos foi novidade pra mim. E mais abestalhada fiquei ao me deparar com o comentário de uma leitora no qual se afirma que o protagonista é basicamente um incel. Caramba, durante a leitura isso jamais me passou pela cabeça. Então consigo sentir empatia por incel, agora? Ah, pronto, era o que faltava. Pior é que, recapitulando a leitura, encontro diversos elementos textuais que sustentam essa interpretação para a personagem (a narrativa é em primeira pessoa, cabe pontuar), por vezes até um tom reacionário no texto. Além disso, se tomarmos aspectos da biografia de Mishima como suporte acessório, suspeito que ficará ainda mais difícil invalidar em absoluto esse tipo de análise. A despeito disso, prosseguirei titubeante o registro do que me passou pela cabeça durante a leitura da obra.
Mizoguchi era um garoto feio, frágil, gago, tímido, retraído. É certo que, para qualquer jovem, isso representa um entrave árduo de transpor, no entanto algo em Mizoguchi me parece dificultar sobremaneira esse processo: o rapaz tinha uma sensibilidade estética extremamente aguçada — e teorizo que isso o distancia ~um pouquinho~ de um ordinário incel.
"Não exagero ao afirmar que o primeiro problema com que me defrontei na vida foi a questão da beleza."
(Narrador em off e leitor atento: — ele exagera.) Mizoguchi possuía a espantosa habilidade de enxergar beleza nas coisas, de sentir-se arrebatado por momentos diversos da vida, e é por intermédio desse olhar da personagem que a narrativa de Mishima induz o leitor a refletir acerca de experiências estéticas e da Beleza. Nesse contexto, contemplei coisas do tipo (platitudes, mas enfim):
🗾 A percepção e a resposta estética dependem de uma série de fatores difíceis de serem controlados e identificados. Uma mesma imagem pode despertar respostas diferentes em pessoas diferentes e, por vezes, uma mesma cena reconstruída em tempos distintos também pode produzir reações divergentes num só indivíduo. Ou ainda, uma mesma cena, num mesmo instante, tem potencial para evocar percepções antagônicas num único observador.
"Poderia a beleza ser assim feia?"
🗾 A experiência estética habitualmente relaciona-se a momentos efêmeros que, com frequência, materializam-se na forma de cenas, de enquadramentos. A propósito, durante leitura paralela, abri um sorriso quando Roland Barthes me assegurou que o arrebatamento amoroso ocorre justamente diante de uma cena, um quadro: "O amor à primeira vista é uma hipnose; estou apaixonado por uma imagem (...) amamos primeiro um quadro" (tradução: Hortênsia dos Santos). O pavilhão dourado em Quioto desafia em certa medida esse pressuposto, tratando-se de uma edificação humana que nos impõe uma beleza estática e eterna; aspecto que perturba intensamente Mizoguchi.
🗾 Claro, é preciso estar aberto e atento às experiências estéticas, sobretudo porque, conforme mencionado, a beleza costumeiramente reveste-se de efemeridade. "A perfeição está em toda parte se apenas nos dignarmos a reconhecê-la." — Kakuzo Okakura, O Livro do Chá (tradução: Leiko Gotoda).
Ao mesmo tempo, é pertinente atentar que abertura demais pode ser um problema; sensibilidade em excesso pode sobrecarregar o espírito, visto que o mundo (tomando emprestados os versos de Thom Yorke:) é too much, too bright, too powerful / o mundo é ~ descomedido, luminoso demais, poderoso demais. Hoje, no Instagram, li esta apropriada frase supostamente dita pelo pintor Claude Monet (grifo meu): "Todo dia descubro mais e mais coisas belas. É suficiente para enlouquecer uma pessoa." E gostaria de ressaltar em especial aquele "too bright/luminoso demais" emprestado de Yorke, dado o aceno que Mishima faz no livro ~àquela~ passagem chave em O Estrangeiro, de Albert Camus.
"(...) o Pavilhão é o único a preservar a forma e se apossar da Beleza, reduzindo todo o resto a pó. (...) Mas, enfim, o Mal seria possível?"
🗾 Quando li O Livro do Travesseiro, de Sei Shônagon, me impressionei bastante com o enorme peso e valor que Shônagon deposita na beleza dos diversos fenômenos e objetos que a rodeavam (naturais ou humanos), sua narrativa sempre extremamente atenta ao belo — nada escapa do crivo estético dela. Por causa disso, conjecturei que o impasse sentido por Mizoguchi pode também relacionar-se a um senso estético particular dos japoneses, em muito distante àquele ocidental. A obra Elogio da Sombra, de Junichiro Tanizaki, igualmente me direciona a essa hipótese, assim como o já citado Livro do Chá, de Kakuzo Okakura.
"Com sua ímpar capacidade de tudo transformar em poema, nossos antepassados (...) descobriram beleza nas sombras e, com o tempo, aprenderam a usar as sombras para favorecer o belo." — Junichiro Tanizaki, Em Louvor da Sombra (tradução: Leiko Gotoda).
"O longo isolamento do Japão do resto do mundo, tão propício à introspecção, foi altamente favorável ao desenvolvimento do "chaísmo". (...) Um estrangeiro pode sem dúvida se espantar com tanto estardalhaço por motivo aparentemente insignificante. (...) Vamos sonhar com o efêmero, e demoremo-nos um pouco mais na formosa tolice das coisas." — Kakuzo Okakura, O Livro do Chá (tradução: Leiko Gotoda).
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Quando passava da metade do livro, calhei de ouvir
uma entrevista de Carolina Vigna (historiadora da arte) ao podcast Página Cinco e fui fisgada por esta assertiva da entrevistada:
"Toda revolução é estética." Carolina Vigna explica que estética é o contrário de anestesia, ela é aquilo que nos move, portanto sempre que se passa por algo que exige ressignificação, isso é uma revolução estética. Todas as revoluções seriam estéticas, na medida em que impõem
revoluções de significado, de compreensão do mundo, de representação desse mundo.
Até aquele ponto da leitura de O Pavilhão Dourado, eu não tinha dado muita importância ao contexto histórico da narrativa de Mishima, porém a fala de Vigna me fez questionar se a resolução de incendiar o pavilhão teria um significado narrativo restrito a uma dimensão micro, individual. Decidi regressar à impactante passagem em que, decretado oficialmente o fim da guerra e a derrota do país, Mizoguchi sai em disparada e observa com desprezo, do alto de uma montanha escalada, a população da cidade de Quioto, com suas luzes acessas, prosseguindo suas vidas corriqueiras como se nada tivesse acontecido. Aqui, o que ele fala:
"Aí está o mundo!" eu pensei. "A guerra acabou. Sob essas luzes todas, pessoas se entregam a pensamentos maldosos. (...) Essa infinidade de luzes são todas elas perversas. Eu me conforto pensando assim. Que a perversidade existente em mim prolifere, multiplique-se infinitamente (...)"
Confabulei que talvez Mizoguchi sentisse que aquele momento impunha uma nova forma de compreender e representar o mundo. Quem sabe incendiar o pavilhão dourado, tradicional símbolo de um Japão agora perdedor e humilhado, representasse a revolução estética premente aos olhos de Mizoguchi. O país perdeu, toda a população foi vítima de violências atrozes, os americanos ocupavam o Japão e mandavam em tudo, e ainda assim aquele pavilhão seguia de pé, impondo sua tradicional beleza a todos, alienando-os da vida. Como e por quê? Pra quê?
"E no mundo assim transfigurado o Pavilhão é o único a preservar a forma e a se apossar da Beleza, reduzindo todo o resto a pó."
Pois, ao prosseguir a leitura, eis que esbarrei com um trecho que aparenta sustentar precisamente essa teoria, quer dizer, sustentar esse diálogo que firmei entre a fala de Carolina Vigna e o incêndio do pavilhão (grifos meus):
"Através desse ato, eu estarei impelindo o mundo onde o Pavilhão Dourado existe em direção a um outro onde o Pavilhão deixará de existir. O mundo certamente terá um novo sentido... (...) Conheci então a psicologia dos revolucionários. Esse policial e esse chefe de estação provincianos que conversavam alegremente ao redor das brasas vermelhas do braseiro de ferro nem sequer pressentiam a aproximação da grande transformação do mundo, da destruição de toda a escala de valores à qual de apegavam."
Essa leitura, é preciso reconhecer, bem combina com o pensamento e as ideias de Mishima. No mais, anoto que essa hipótese me faz aproximar Mishima a W. B. Sebald, pelo menos no que diz respeito à inquietação sentida por Sebald em face da apatia e indiferença com que o povo alemão respondeu a destruição e violência das quais foram vítimas, dando continuidade à vida também como se nada tivesse acontecido — são sentimentos compartilhados por Sebald no livro Guerra Aérea e Literatura.
Por outro lado, durante minha posterior leitura de O Livro do Chá, de Kakuzo Okakura, trombei com uma passagem do Sutra Lótus, na qual um pai chama seus filhos de uma casa em chamas para a segurança de um roji (aleia no jardim do aposento do chá). Okakura explica que a casa em chamas simboliza a penosa existência da ignorância e do apego a si próprio, de modo que o roji seria o local para abandonar as confusões do mundo. Visto por esse lado, o ato de Mizoguchi pode ser reduzido àquilo que mais provavelmente é: não uma revolução, mas uma estupidez cometida por um ególatra em estado de confusão, uma pessoa (como talvez dissesse Okakura) com chá demais (= "frívolos estetas que se manifestam ao sabor de emoções descontroladas").
Para esta discussão, vale igualmente registrar o trecho de O Pavilhão Dourado que trata do Décimo Quarto Caso do Mumonkan, o tema Nansen mata um gato, escolhido a dedo pelo Velho Mestre para a reflexão zen no dia da derrota oficial do Japão. Para resumir bastante: um gato lindo e fofo (a Beleza materializada) aparece do nada e provoca briga entre monges, pois todos o querem para si; então o monge Nansen decide resolver o problema matando o bicho; enquanto o sábio discípulo Choshu, após ouvir esse relato, descalça as sandálias, as coloca sobre a cabeça e deixa o templo. E aí? Afinal, mais vale cortar o Mal (= a Beleza) pela raiz (supostamente) como fez Nansen, queimar o pavilhão, como fez Mizoguchi ou, quando diante do caos do mundo, só nos resta pôr as sandálias sobre a cabeça e nos recolher?
Nas breves resenhas lidas no Goodreads, esbarrei com a afirmação de que o livro trata do Mal, algo que realmente pode ser corroborado a partir do próprio tema Nansen mata um gato (o Mal entrelaçado à Beleza). No entanto, em relação à temática do Mal, minha chave de leitura concentrou-se na proposição de que a exacerbada sensibilidade de Mizoguchi também o leva a enxergar a feiura e o mal do mundo, uma feiura que ele tenta a todo custo provar que existe dentro de si, pois traria lógica ao fato do mundo negar-lhe a beleza. Penso aqui naquela máxima "feio por fora, feio por dentro", além de corresponder a uma reação violenta à negativa de beleza recebida do mundo sempre que ele estendia a mão, uma resposta à rejeição de que ele se julgava vítima. (Putz, esse cara era mesmo um incel, né? rs)
"(...) reconhecia não possuir, com certeza, qualificações que me permitissem entrar na vida pelo lado luminoso. (...) me ensinara pela primeira vez a passagem obscura que me dava acesso à vida pelos fundos."
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"(...) arremedar na minha frente um monge gago entoando sutras com dificuldade, tropeçando nas palavras."
No início da narrativa, Mizoguchi ironiza essa imagem de um monge gago, destacando que a gagueira trancava a porta entre seu mundo interno e o externo; associando gagos à figura de um pássaro preso à viscosidade de um mundo interior. No entanto, considerando-se as reflexões que já registrei no blog acerca da gagueira (foi
neste post: "
sobre janelas, bicicletas e gagueiras"), achei a imagem do monge gago extremamente bela, para não dizer mesmo propícia à vida asceta. Ora, nada mais oportuno à figura de monge do que a gagueira, se considerarmos (conforme anotei naquela antiga postagem) que, quando a língua é tensionada a tal ponto em que a gagueira se inicia, significa que ela alcançou seus limites, passando a confrontar o silêncio. Persistindo com aquela alegoria de Mizoguchi, minha suposição é que o gago seria como o pássaro que se desgarrou de sua viscosidade interior para voar até os limites do mundo exterior, até a insondável fronteira de onde não se retorna igual. Naquele tema
Nansen mata um gato, eu apostaria que Nansen é um monge eloquente, enquanto Choshu provavelmente é gago. Em seu discurso, Mizoguchi discorre bastante a respeito da oposição entre Palavra e Ação, mas acaba por esquecer o (por vezes) precioso silêncio. Em resposta aos mistérios da vida, há diferença entre colocar as sandálias sobre a cabeça e gaguejar? E quer saber? Se um monge não for gago, creio que nem darei mais confiança, isso sim.
Ah, Mizoguchi também se diz "gago de sentimentos", porém nessa ele me pegou desprevenida. De supetão, é uma premissa desconcertante.
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Gostaria de registrar as notáveis passagens nas quais Mizoguchi examina e descreve os rostos das pessoas. Chamou-me muita atenção o quanto a personagem esmiúça faces humanas, bem como as leituras e descrições decorrentes desse exercício (a mãe e o mestre prior são alvos frequentes). A mais impactante (pra mim) aparece logo no começo do livro, quando ele descreve o rosto de Uiko, no momento em que ela rejeita o mundo, comparando-o ao rosto que surge no cepo de uma árvore recém-abatida, o cepo exposto repentinamente ao mundo que não é o seu e batido pelo sol e pelo vento como nunca deveria ter acontecido, um estranho rosto delineado pelos belos veios da madeira - um rosto que chegou a este mundo apenas para mostrar rejeição....
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Sendo uma tonta apaixonada pelo mar, a experiência estética descrita diante do "Mar do Japão" me tocou bastante. Em determinada passagem, Mizoguchi, então transtornado, viaja em busca do mar da infância, um mar visto por ele como a imagem especular de si próprio. Se lembrarmos o histórico japonês de tsunamis, fica fácil penetrar o ambíguo e contraditório lugar ocupado pelo mar na relação com os japoneses; lugar do qual Mizoguchi se apossa bem.
"(...) o mar encapelado, sempre irritadiço, o mar raivoso da costa interna do Japão. (...) um mar gasoso que cobria toda a região durante o inverno, um mar invisível, imperioso e dominador. (...) Sim, esse era o Mar do Japão! A fonte de toda a minha infelicidade e de todos os meus pensamentos sombrios. a fonte de toda a minha feiura, de todo o meu poder. As águas estavam agitadas."
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Por fim, preciso enaltecer e agradecer o excepcional trabalho do tradutor, Shintaro Hayashi (edição da Companhia das Letras). Sinto enorme gratidão por todos os tradutores, porém esta tradução me tocou de modo especial. Leio bastante literatura traduzida e não tenho por hábito lamuriar coisas do tipo
ai, como queria ler isso no original — simplesmente tomo a mão dos tradutores e salto sorridente no abismo —, contudo a escrita deste livro mexeu comigo a ponto de despertar enorme curiosidade para saber como a prosa de Mishima soa em japonês, sobretudo para aqueles que tem esse idioma como língua materna. Ignoro a razão [talvez porque a dramática morte do autor (por seppuku /degolamento) me conduza a um suposto período remoto e inacessível?], mas a realidade é que antecipei encontrar uma escrita dura e hermética, entretanto me deparei com um quase oposto. A prosa de Mishima (na intermediação de Hayashi) soa moderna, ágil e primorosa, entremeada por uma poesia sutil e elegante. As imagens construídas pelo texto, em especial, são surpreendentes (vide aquela do rosto. é algo que valorizo demais; e autores japoneses costumam ter talento nisso). Sendo honesta, a prosa de Mishima neste livro me remeteu inesperadamente àquela de clássicos modernos americanos/europeus do século XX (talvez venha daí minha reação peculiar a essa escrita), embora a temática e sua respectiva exploração, a meu ver, pouco se relacionam à perspectiva ocidental. Ou melhor: quanto aos temas, consigo perceber que o livro dialoga intrinsecamente à linhagem literária japonesa. (*Não que eu manje muito de literatura japonesa, veja bem.)
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P.S.: bicho, no fim das contas, acho que caí mesmo na lábia de um incel reacionário. Veja só do que as palavras são capazes. Um perigo. Humbert Humbert, neste momento, ri de minha presepada. Malditos, Humbert e Mizoguchi — porém ressalvo que Humbert escreve com propósito deliberado, enquanto Mizoguchi... ali é chá demais, demais.
"E, como ele, eu quis viver."
(pintura feita por mim - *guache)