19/06/2023

O Pavilhão Dourado - Yukio Mishima

Sequer recordo a última vez que publiquei um post focado em um único livro [foi libertador atinar que, para conversar sobre minhas leituras, não estou obrigada a escrever famigeradas resenhas], porém sinto que O Pavilhão Dourado — meu primeiro contato com Yukio Mishima (tradução: Shintaro Hayashi) — solicita um singelo registro, um  desafogar de sentimentos e de banais reflexões, que seja. Para quem procura uma baita análise acertada®, peço perdão, pois não encontrará nada disso aqui. 

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E se eu disser que li o livro sem saber que Mishima se inspirara em um evento real? Fiquei abestalhada quando a galera do Goodreads me contou que a premissa realmente aconteceu. Estava ciente de que a maioria das edificações históricas japonesas se perderam em incêndios (temos, hoje, meras reconstruções), mas que alguém tenha ateado fogo num daqueles templos foi novidade pra mim. E mais abestalhada fiquei ao me deparar com o comentário de uma leitora no qual se afirma que o protagonista é basicamente um incel. Caramba, durante a leitura isso jamais me passou pela cabeça. Então consigo sentir empatia por incel, agora? Ah, pronto, era o que faltava. Pior é que, recapitulando a leitura, encontro diversos elementos textuais que sustentam essa interpretação para a personagem (a narrativa é em primeira pessoa, cabe pontuar), por vezes até um tom reacionário no texto. Além disso, se tomarmos aspectos da biografia de Mishima como suporte acessório, suspeito que ficará ainda mais difícil invalidar em absoluto esse tipo de análise. A despeito disso, prosseguirei titubeante o registro do que me passou pela cabeça durante a leitura da obra.

Mizoguchi era um garoto feio, frágil, gago, tímido, retraído. É certo que, para qualquer jovem, isso representa um entrave árduo de transpor, no entanto algo em Mizoguchi me parece dificultar sobremaneira esse processo: o rapaz tinha uma sensibilidade estética extremamente aguçada — e teorizo que isso o distancia ~um pouquinho~ de um ordinário incel. 
"Não exagero ao afirmar que o primeiro problema com que me defrontei na vida foi a questão da beleza."
(Narrador em off e leitor atento: — ele exagera.) Mizoguchi possuía a espantosa habilidade de enxergar beleza nas coisas, de sentir-se arrebatado por momentos diversos da vida, e é por intermédio desse olhar da personagem que a narrativa de Mishima induz o leitor a refletir acerca de experiências estéticas e da Beleza. Nesse contexto, contemplei coisas do tipo (platitudes, mas enfim):

🗾 A percepção e a resposta estética dependem de uma série de fatores difíceis de serem controlados e identificados. Uma mesma imagem pode despertar respostas diferentes em pessoas diferentes e, por vezes, uma mesma cena reconstruída em tempos distintos também pode produzir reações divergentes num só indivíduo. Ou ainda, uma mesma cena, num mesmo instante, tem potencial para evocar percepções antagônicas num único observador.
"Poderia a beleza ser assim feia?"
🗾 A experiência estética habitualmente relaciona-se a momentos efêmeros que, com frequência, materializam-se na forma de cenas, de enquadramentos. A propósito, durante leitura paralela, abri um sorriso quando Roland Barthes me assegurou que o arrebatamento amoroso ocorre justamente diante de uma cena, um quadro: "O amor à primeira vista é uma hipnose; estou apaixonado por uma imagem (...) amamos primeiro um quadro" (tradução: Hortênsia dos Santos). O pavilhão dourado em Quioto desafia em certa medida esse pressuposto, tratando-se de uma edificação humana que nos impõe uma beleza estática e eterna; aspecto que perturba intensamente Mizoguchi.

🗾 Claro, é preciso estar aberto e atento às experiências estéticas, sobretudo porque, conforme mencionado, a beleza costumeiramente reveste-se de efemeridade. "A perfeição está em toda parte se apenas nos dignarmos a reconhecê-la." — Kakuzo Okakura, O Livro do Chá (tradução: Leiko Gotoda).

Ao mesmo tempo, é pertinente atentar que abertura demais pode ser um problema; sensibilidade em excesso pode sobrecarregar o espírito, visto que o mundo (tomando emprestados os versos de Thom Yorke:) é too much, too bright, too powerful / o mundo é ~ descomedido, luminoso demais, poderoso demais. Hoje, no Instagram, li esta apropriada frase supostamente dita pelo pintor Claude Monet (grifo meu):  "Todo dia descubro mais e mais coisas belas. É suficiente para enlouquecer uma pessoa." E gostaria de ressaltar em especial aquele "too bright/luminoso demais"  emprestado de Yorke, dado o aceno que Mishima faz no livro ~àquela~ passagem chave em O Estrangeiro, de Albert Camus.
"(...) o Pavilhão é o único a preservar a forma e se apossar da Beleza, reduzindo  todo o resto a pó. (...) Mas, enfim, o Mal seria possível?"
🗾 Quando li O Livro do Travesseiro, de Sei Shônagon, me impressionei bastante com o enorme peso e valor que Shônagon deposita na beleza dos diversos fenômenos e objetos que a rodeavam (naturais ou humanos), sua narrativa sempre extremamente atenta ao belo — nada escapa do crivo estético dela. Por causa disso, conjecturei que o impasse sentido por Mizoguchi pode também relacionar-se a um senso estético particular dos japoneses, em muito distante àquele ocidental. A obra Elogio da Sombra, de Junichiro Tanizaki, igualmente me direciona a essa hipótese, assim como o já citado Livro do Chá, de Kakuzo Okakura. 
"Com sua ímpar capacidade de tudo transformar em poema, nossos antepassados (...) descobriram beleza nas sombras e, com o tempo, aprenderam a usar as sombras para favorecer o belo."    — Junichiro Tanizaki, Em Louvor da Sombra (tradução: Leiko Gotoda).  
"O longo isolamento do Japão do resto do mundo, tão propício à introspecção, foi altamente favorável ao desenvolvimento do "chaísmo". (...) Um estrangeiro pode sem dúvida se espantar com tanto estardalhaço por motivo aparentemente insignificante. (...) Vamos sonhar com o efêmero, e demoremo-nos um pouco mais na formosa tolice das coisas."     — Kakuzo Okakura, O Livro do Chá (tradução: Leiko Gotoda).
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Quando passava da metade do livro, calhei de ouvir uma entrevista de Carolina Vigna (historiadora da arte) ao podcast Página Cinco e fui fisgada por esta assertiva da entrevistada: "Toda revolução é estética." Carolina Vigna explica que estética é o contrário de anestesia, ela é aquilo que nos move, portanto sempre que se passa por algo que exige ressignificação, isso é uma revolução estética. Todas as revoluções seriam estéticas, na medida em que impõem revoluções de significado, de compreensão do mundo, de representação desse mundo. 

Até aquele ponto da leitura de O Pavilhão Dourado, eu não tinha dado muita importância ao contexto histórico da narrativa de Mishima, porém a fala de Vigna me fez questionar se a resolução de incendiar o pavilhão teria um significado narrativo restrito a uma dimensão micro, individual. Decidi regressar à impactante passagem em que, decretado oficialmente o fim da guerra e a derrota do país, Mizoguchi sai em disparada e observa com desprezo, do alto de uma montanha escalada, a população da cidade de Quioto, com suas luzes acessas, prosseguindo suas vidas corriqueiras como se nada tivesse acontecido. Aqui, o que ele fala:
"Aí está o mundo!" eu pensei. "A guerra acabou. Sob essas luzes todas, pessoas se entregam a pensamentos maldosos. (...) Essa infinidade de luzes são todas elas perversas. Eu me conforto pensando assim. Que a perversidade existente em mim prolifere, multiplique-se infinitamente (...)" 
Confabulei que talvez Mizoguchi sentisse que aquele momento impunha uma nova forma de compreender e representar o mundo. Quem sabe incendiar o pavilhão dourado, tradicional símbolo de um Japão agora perdedor e humilhado, representasse a revolução estética premente aos olhos de Mizoguchi. O país perdeu, toda a população foi vítima de violências atrozes, os americanos ocupavam o Japão e mandavam em tudo, e ainda assim aquele pavilhão seguia de pé, impondo sua tradicional beleza a todos, alienando-os da vida. Como e por quê?  Pra quê?
"E no mundo assim transfigurado o Pavilhão é o único a preservar a forma e a se apossar da Beleza, reduzindo todo o resto a pó."
Pois, ao prosseguir a leitura, eis que esbarrei com um trecho que aparenta sustentar precisamente essa teoria, quer dizer, sustentar esse diálogo que firmei entre a fala de Carolina Vigna e o incêndio do pavilhão (grifos meus):
"Através desse ato, eu estarei impelindo o mundo onde o Pavilhão Dourado existe em direção a um outro onde o Pavilhão deixará de existir. O mundo certamente terá um novo sentido... (...) Conheci então a psicologia dos revolucionários. Esse policial e esse chefe de estação provincianos que conversavam alegremente ao redor das brasas vermelhas do braseiro de ferro nem sequer pressentiam a aproximação da grande transformação do mundo, da destruição de toda a escala de valores à qual de apegavam."
Essa leitura, é preciso reconhecer, bem combina com o pensamento e as ideias de Mishima. No mais, anoto que essa hipótese me faz aproximar Mishima a W. B. Sebald, pelo menos no que diz respeito à inquietação sentida por Sebald em face da apatia e indiferença com que o povo alemão respondeu a destruição e violência das quais foram vítimas, dando continuidade à vida também como se nada tivesse acontecido — são sentimentos compartilhados por Sebald no livro Guerra Aérea e Literatura.

Por outro lado, durante minha posterior leitura de O Livro do Chá, de Kakuzo Okakura, trombei com uma passagem do Sutra Lótus, na qual um pai chama seus filhos de uma casa em chamas para a segurança de um roji (aleia no jardim do aposento do chá). Okakura explica que a casa em chamas simboliza a penosa existência da ignorância e do apego a si próprio, de modo que o roji seria o local para abandonar as confusões do mundo. Visto por esse lado, o ato de Mizoguchi pode ser reduzido àquilo que mais provavelmente é: não uma revolução, mas uma estupidez cometida por um ególatra em estado de confusão, uma pessoa (como talvez dissesse Okakura) com chá demais (= "frívolos estetas que se manifestam ao sabor de emoções descontroladas").

Para esta discussão, vale igualmente registrar o trecho de O Pavilhão Dourado que trata do Décimo Quarto Caso do Mumonkan, o tema Nansen mata um gato, escolhido a dedo pelo Velho Mestre para a reflexão zen no dia da derrota oficial do Japão. Para resumir bastante: um gato lindo e fofo (a Beleza materializada) aparece do nada e provoca briga entre monges, pois todos o querem para si; então o monge Nansen decide resolver o problema matando o bicho; enquanto o sábio discípulo Choshu, após ouvir esse relato, descalça as sandálias, as coloca sobre a cabeça e deixa o templo. E aí? Afinal, mais vale cortar o Mal (= a Beleza) pela raiz (supostamente) como fez Nansen, queimar o pavilhão, como fez Mizoguchi ou, quando diante do caos do mundo, só nos resta pôr as sandálias sobre a cabeça e nos recolher? 

Nas breves resenhas lidas no Goodreads, esbarrei com a afirmação de que o livro trata do Mal, algo que realmente pode ser corroborado a partir do próprio tema Nansen mata um gato (o Mal entrelaçado à Beleza)No entanto, em relação à temática do Mal, minha chave de leitura concentrou-se na proposição de que a exacerbada sensibilidade de Mizoguchi também o leva a enxergar a feiura e o mal do mundo, uma feiura que ele tenta a todo custo provar que existe dentro de si, pois traria lógica ao fato do mundo negar-lhe a beleza. Penso aqui naquela máxima "feio por fora, feio por dentro", além de corresponder a uma reação violenta à negativa de beleza recebida do mundo sempre que ele estendia a mão, uma resposta à rejeição de que ele se julgava vítima. (Putz, esse cara era mesmo um incel, né? rs)
"(...) reconhecia não possuir, com certeza, qualificações que me permitissem entrar na vida pelo lado luminoso. (...) me ensinara pela primeira vez a passagem obscura que me dava acesso à vida pelos fundos."

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"(...) arremedar na minha frente um monge gago entoando sutras com dificuldade, tropeçando nas palavras."
No início da narrativa, Mizoguchi ironiza essa imagem de um monge gago, destacando que a gagueira trancava a porta entre seu mundo interno e o externo; associando gagos à figura de um pássaro preso à viscosidade de um mundo interior. No entanto, considerando-se as reflexões que já registrei no blog acerca da gagueira (foi neste post: "sobre janelas, bicicletas e gagueiras"), achei a imagem do monge gago extremamente bela, para não dizer mesmo propícia à vida asceta. Ora, nada mais oportuno à figura de monge do que a gagueira, se considerarmos (conforme anotei naquela antiga postagem) que, quando a língua é tensionada a tal ponto em que a gagueira se inicia, significa que ela alcançou seus limites, passando a confrontar o silêncio. Persistindo com aquela alegoria de Mizoguchi, minha suposição é que o gago seria como o pássaro que se desgarrou de sua viscosidade interior para voar até os limites do mundo exterior, até a insondável fronteira de onde não se retorna igual. Naquele tema Nansen mata um gato, eu apostaria que Nansen é um monge eloquente, enquanto Choshu provavelmente é gago. Em seu discurso, Mizoguchi discorre bastante a respeito da oposição entre  Palavra e Ação, mas acaba por esquecer o (por vezes) precioso silêncio. Em resposta aos mistérios da vida, há diferença entre colocar as sandálias sobre a cabeça e gaguejar?  E quer saber? Se um monge não for gago, creio que nem darei mais confiança, isso sim.

Ah, Mizoguchi também se diz "gago de sentimentos", porém nessa ele me pegou desprevenida. De supetão, é uma premissa desconcertante.

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Gostaria de registrar as notáveis passagens nas quais Mizoguchi examina e descreve os rostos das pessoas. Chamou-me muita atenção o quanto a personagem esmiúça faces humanas, bem como as leituras e descrições decorrentes desse exercício (a mãe e o mestre prior são alvos frequentes). A mais impactante (pra mim) aparece logo no começo do livro, quando ele descreve o rosto de Uiko, no momento em que ela rejeita o mundo, comparando-o ao rosto que surge no cepo de uma árvore recém-abatida, o cepo exposto repentinamente ao mundo que não é o seu e batido pelo sol e pelo vento como nunca deveria ter acontecido, um estranho rosto delineado pelos belos veios da madeira - um rosto que chegou a este mundo apenas para mostrar rejeição.... 

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Sendo uma tonta apaixonada pelo mar, a experiência estética descrita diante do "Mar do Japão" me tocou bastante. Em determinada passagem, Mizoguchi, então transtornado, viaja em busca do mar da infância, um mar visto por ele como a imagem especular de si próprio. Se lembrarmos o histórico japonês de tsunamis, fica fácil penetrar o ambíguo e contraditório lugar ocupado pelo mar na relação com os japoneses; lugar do qual Mizoguchi se apossa bem. 
"(...) o mar encapelado, sempre irritadiço, o mar raivoso da costa interna do Japão. (...) um mar gasoso que cobria toda a região durante o inverno, um mar invisível, imperioso e dominador. (...) Sim, esse era o Mar do Japão! A fonte de toda a minha infelicidade e de todos os meus pensamentos sombrios. a fonte de toda a minha feiura, de todo o meu poder. As águas estavam agitadas."
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Por fim, preciso enaltecer e agradecer o excepcional trabalho do tradutor, Shintaro Hayashi (edição da Companhia das Letras). Sinto enorme gratidão por todos os tradutores, porém esta tradução me tocou de modo especial. Leio bastante literatura traduzida e não tenho por hábito lamuriar coisas do tipo ai, como queria ler isso no original — simplesmente tomo a mão dos tradutores e salto sorridente no abismo —, contudo a escrita deste livro mexeu comigo a ponto de despertar enorme curiosidade para saber como a prosa de Mishima soa em japonês, sobretudo para aqueles que tem esse idioma como língua materna. Ignoro a razão [talvez porque a dramática morte do autor (por seppuku /degolamento) me conduza a um suposto período remoto e inacessível?], mas a realidade é que antecipei encontrar uma escrita dura e hermética, entretanto me deparei com um quase oposto. A prosa de Mishima (na intermediação de Hayashi) soa moderna, ágil e primorosa, entremeada por uma poesia sutil e elegante. As imagens construídas pelo texto, em especial, são surpreendentes (vide aquela do rosto. é algo que valorizo demais; e autores japoneses costumam ter talento nisso). Sendo honesta, a prosa de Mishima neste livro me remeteu inesperadamente àquela de clássicos modernos americanos/europeus do século XX (talvez venha daí minha reação peculiar a essa escrita), embora a temática e sua respectiva exploração, a meu ver, pouco se relacionam à perspectiva ocidental. Ou melhor: quanto aos temas, consigo perceber que o livro dialoga intrinsecamente à linhagem literária japonesa. (*Não que eu manje muito de literatura japonesa, veja bem.)

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P.S.: bicho, no fim das contas, acho que caí mesmo na lábia de um incel reacionário. Veja só do que as palavras são capazes. Um perigo. Humbert Humbert, neste momento, ri de minha presepada. Malditos, Humbert e Mizoguchi — porém ressalvo que Humbert escreve com propósito deliberado, enquanto Mizoguchi... ali é chá demais, demais.

"E, como ele, eu quis viver."
(pintura feita por mim - *guache)

04/06/2023

[alinhavo x off-topic] Tea leaves thwart those who court catastrophe


                                                                                                  (— Sylvia Plath, Ennui)

Eu sei, eu sei, ninguém aguenta mais análises acertadas a respeito de Succession — por sinal, especulo que o atual caminho para uma série de sucesso seja precisamente este: abastecer a internet de muito pano para manga (argh:) conteúdo —, porém quero registrar só uma ou duas coisinhas.

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Visto que o pôster de estreia foi esse aí, colado à esquerda, é um tanto vexatório que tão somente nesta última temporada eu tenha atinado para os quadros que ocupam os espaços por onde circulam as personagens. Pior: a queda de minhas fichas sequer ocorreu naquele momento possivelmente mais emblemático, no qual Willa escapa do ensaio do próprio casamento e é perseguida pelos olhares fantasmagóricos nos dois retratos de Andy Warhol. [Reparar, é lógico que reparei; porém o fiz com o pensamento puta merda, eu bem queria um desses no corredor aqui de casa. Encontrei este interessante texto sobre essa passagem: How “Succession” Used Art to Foreshadow Its Most Shocking Twist Yet.]

Na verdade, este sim foi o instante responsável por fisgar meu olhar para o fundo do enquadramento:
Para começar (e encerrar? rs) a conversa, basta meramente observar essa curadoria e compará-la àquele quadro no pôster da série — de Peter Paul Rubens; Caça ao tigre e leão. Não é insana a discrepância entre os respectivos conteúdos expressivos? Visto que a paisagem às costas de Roman atende demais meus desejos estéticos, não surpreende nada que meu olhar tenha sido hipnotizado por essa curadoria de quadros. Com a ajuda da tiktoker (!) @meelzonart, identifiquei três deles:




- à esquerda: ? - a tiktoker tem dúvida, mas aposta num Giacometti, porém eu não achei. Cacei ontem um tempão, cogitei um Dürer, porém não tive sorte. Bem, parece ser um estudo a carvão de nu feminino (*sabe de quem é? mande aí)

Os quadros que espreitam Roman nessa cena são, com efeito, "meros" estudos/ desenhos/rascunhos, portanto representam algo que, teoricamente, ainda pode evoluir para uma outra coisa; quer dizer, as possibilidades permanecem abertas, pois aquelas são tentativas. Os materiais — aquarela, carvão, grafite —, por sua vez, conferem leveza e delicadeza, visto que são translúcidos e sem muito peso, carecendo do vigor e sensualidade da tinta (em especial daquela a óleo). E o aparente predomínio de linhas, com formas e volumes pouco definidos, sugere uma aura poética e serena. Quando esbarrei com essa galeria na retaguarda de Roman, imediatamente retornou-me o texto no qual  Fayga Ostrower comenta uma ilustração do chinês Chao Yuan, no precioso livro Universos da Arte (leitura em curso e que tanto me ajudou neste post). Peço licença para tomar emprestadas algumas palavras da autora, a fim de melhor expor o que essa paisagem na qual Roman é inserido me evoca: "(...) o típico espaço linear, frágil e translúcido (...) numa visão contemplativa da vida. A grave ternura desses desenhos, seu silêncio e sua contenção."

Pois é, será que, no fim das contas, Roman é um introspectivo sensível à poesia e à contemplação, aberto para novas possibilidades que nada tenham a ver com o legado paterno?! (Não ria, a pergunta é séria, poxa.) Deixo a insinuação suspensa no ar. Anoto, contudo, que o momento em que ele não consegue pronunciar-se durante o velório do pai me quebrou por completo, porque as palavras dele, aos prantos — ~ "Meu pai está mesmo dentro daquele caixão? Não podemos tirá-lo de lá? —, refletem exatamente o que me consumiu após o enterro de minha avó. Eu tentava dormir, mas minha cabeça teimava em gritar que minha avó tinha sido trancada dentro de um caixão e enfiada dentro de um buraco; e como assim a deixaríamos ali? Meu corpo se coçava para saltar da cama e tirá-la dali. É por essa (e muitas outras) que Hilda Hilst manjava mesmo dos rolês, tão sábia ao escrever, na obra A Obscena Senhora D:
"(...) um homem, apenas o sexo saudável, um que não amolece diante do sangue, do cheiro, que vê vida e morte tudo natural, naa tuu rall, tudo é muito natural, morrer ó morrer faz parte da vida, mocinha, que bobagem, óóóóóhhh"

                                                                                   — Hilda Hilst, A Obscena Senhora D 

Isso aí; Hilda, natural é o caralho! O problema é que o posto deixado por Logan pedia um homem que não amolecesse do jeito que Roman amoleceu, um homem que achasse tudo muito natural, e não um homem que corre para mãe diante do sangue e do cheiro, que tem medo de tubarões e que se angustia, com sentimentos de dúvida e culpa, ao demitir funcionários. 

Admito; eu meio que comprei a sugestão de uma enviesada redenção (?) para o Roman. Veja, não digo que ele virou um santo apenas porque chorou com a morte do papai, no entanto, dentre os três irmãos, ele é o que mais avançou no tal processo que chamamos toscamente de ~autoconhecimento~ (ou o que quer que seja isso). O que tento dizer é que os três são tontos incompetentes, contudo:

- A Shiv é a pior, pois é a tonta que 1. não sabe que é tonta e 2. se acha muito esperta. Essa sequer começou a descida;

- O Ken, em seu íntimo, sabe que é um tonto, porém ainda tem esperanças de que pode provar para si e para o pai que é um espertão à altura de liderar uma megacorporação americana. Ele está a meio caminho da descida — na cena final, está decidindo se retoma a subida ou se desce de uma vez;

- O Roman, nesta última temporada, finaliza a descida: abraça a consciência plena de que é um tonto desprovido das habilidades — sobretudo emocionais — necessárias para liderar o império.


Agora, regressarei ao vídeo da tiktoker @meelzonart, pois, para além do que já discorri, há outro ponto que me faz divergir um pouco da análise compartilhada por ela (*ressalto que, quando ela publicou o vídeo, a quarta temporada ainda seria exibida) [Link 1 aqui; Link 2 aqui.]. Eis, em resumo, o que @meelzonart fala (tradução livre):
"(...) vemos o tema do homem e da paisagem, sobretudo no que refere-se a conquistas. (...) (Gauguin) era um homem colonialista, que explorou e objetificou muitas mulheres quando esteve no Taiti. A premissa de fruta exótica e terra em Renoir trabalha a ideia de conquistar um império. (...) Quero chamar atenção para o quadro de Daumier. Van Gogh o viu e comentou sobre ele numa de suas cartas ao irmão Theo. Ele escreveu: "Deve ser bom pensar e sentir assim, e superar e ignorar uma multidão de coisas." A ideia de ter tanto dinheiro, tanto privilégio a ponto de não ter de se preocupar com nada exceto ser mais rico que o pai. (...) Vistas independentes e em conjunto, essas obras contribuem para a narrativa de que Roman quer ser escolhido como o conquistador supremo."
Achei o olhar dela algo simplista e redutor  — mas, como ressaltei, ela ainda não tinha visto a quarta temporada (não sei se a opinião dela mudou). Além disso, tive a sensação de que ela usa a série como premissa de leitura dos quadros (de outro modo, parece forçar uma interpretação dos quadros que se encaixe na trama de Succession); enquanto o movimento de leitura correto, a meu ver, seria primeiro ler as obras por si mesmas, depois partir para a leitura isolada da série, e só então cruzar as respectivas expressões artísticas. No mais, pontuo duas questões:

1. Por causa da forma com que ela cita o comentário de Van Gogh sobre o quadro de Daumier, um tanto fora de contexto, resta a sensação de que Van Gogh estava debochando de um dito privilégio daqueles que podem se dar o luxo de não se preocupar com coisas mundanas. Bem, é quase o oposto disso. 

No momento, estou lendo justamente uma coletânea das cartas de Van Gogh e, na hora em que a tiktoker mencionou o comentário, dei um salto, pois foi um trecho significativo que grifei. Na realidade, é um ponto em que Van Gogh compartilha com Théo reflexões acerca da escolha entre pintar figuras humanas ou paisagens. O pintor confessa cada vez mais acreditar que o maior valor estaria em retratar pessoas (como ele de fato fez - trabalhadores humildes do campo, mineiros, tecelões...). É nesse contexto que ele recorre ao sketch em aquarela de Daumier (uma ilustração para Balzac!), fazendo referência mais à mente do próprio Daumier (e não um deboche da imagem), um pintor que o inspirava ao deixar de se ater a pradarias e nuvens, a fim de focar naquilo que realmente importa: sim, pintar um velho "qualquer" a ler sob castanheiras (para quem tem a edição da L&PM: página 90). Quer dizer, Van Gogh, em certa medida, defende que foquemos no que dá o que pensar, e no que diz respeito de uma maneira mais pessoal ao homem enquanto homem (tradução: Pierre Ruprecht).

2. Por outro lado, a tiktoker tem plena razão ao afirmar que o precioso tempo que a privilegiada turma de Succession tem é despendido apenas na perseguição por mais dinheiro. Mas esse é o paradoxo, não? Digo, pensar no que dá o que pensar, como propõe Van Gogh, é bem difícil. Dois livros povoam minha cabeça quando reflito sobre tais questões. Em Jakob Von Gunten, de Robert Walser; há uma passagem na qual Jakob comenta que esse lance de ficar à toa, tal qual o velho na ilustração de Daumier, pode trazer consigo a dor da existência. Jakob defende que ficar sem fazer nada e mesmo assim preservar o sentido da existência exige muita energia de uma pessoa. Para a personagem, quem permanece ocupado com alguma tarefa usufruiria paradoxalmente de uma vida mansa, em comparação. Na sequência, para complementar, lembro que o narrador de Nancy Mitford, no livro The Pursuit of Love — essencialmente uma obra que retrata riquinhos ingleses de 1940's, uma quase autoficção dos Mitford — denuncia que aqueles ricos (extrapolo por minha conta: virtualmente todos os ricos) nunca adquiriram o hábito da concentração, portanto não toleram o tédio. Tempestades e dificuldades? Tranquilo, só jogar e eles matariam no peito. Contudo, dia após dia de uma existência ordinária era, para eles, uma tortura entediante. A narrativa de Mitford aponta para a chave: eles, os ricos, não tinham a disciplina mental (a tal energia referida por Jakob) para tolerar o tédio, para não fazer nada. Posto isto, como esperar que os Roy usem o enorme tempo de que dispõem para sentar sob castanheiras? Para ficar a olhar o mar, não é, Kendall? Se importar com belas vistas de janelões, não é, Lukas? Achar que algo acontece em NY, não é, Lukas? 

A maioria dessas narrativas sobre ricos, tão na moda atualmente, são, em larga escala, estudos sobre o tédio. Sylvia Plath, creio, concordaria comigo. Quem sabe a predisposição de Roman seja outra?

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Para encerrar, um breve comentário relacionado ao último quadro, aquele que envolve Shiv em seu momento apoteótico (?):
Também com a ajuda da @meelzonart, descobri que esse quadro foi concebido pela artista Elizabeth Castagna e intitula-se This. Bom, de novo me oponho à análise de @meelzonart ("Shiv ultimately looks out for herself and her child" - link para o vídeo dela aqui: X), e focarei em minha leitura, a qual sustenta-se numa fortuita casualidade literária.

Meu ponto de partida foi esta ominosa escolha de palavras feita pela secretária ainda dentro do avião, ao lado do corpo do chefe:
Ou seja, o cara morreu, então é hora de juntar os ossos. Ok. Logo em seguida, retomei a leitura da coletânea Extração da Pedra da Loucura, de Alejandra Pizarnik e, já no finalzinho, esbarrei com estes versos:

(...) - falo do irremediável,
peço o irremediável -, o corpo desatado e os ossos
espalhados no silêncio da neve traidora. (...)

— Alejandra Pizarnik; Noite compartilhada na lembrança de uma fuga (Tradução: Davis Diniz)

Pronto, agora basta parear o quadro da sala de votação e o quadro na sala em que Shiv revela sua decisão ao irmão, e fica fácil deduzir aonde cheguei:
Não, Shiv não permitiria a patacoada de juntar os ossos de Logan. Dessa maneira, vale reconhecer que dois coelhos se vão com a cajadada única de Shiv: 

- o pai estava morto, e ela garante que assim ele permaneceria — aniquila-se a bobajada de que Logan (seu legado) seguiria vivo mediante a sucessão por um de seus filhos; 

- em conversa com Roman era apenas uma piada, no entanto Shiv de fato assassina o irmão, espalhando os ossos de Kendall no silêncio da neve traidora