(— Sylvia Plath, Ennui)
a respeito de Succession — por sinal, especulo que o atual caminho para uma série de sucesso seja precisamente este: abastecer a internet de muito pano para
) conteúdo —, porém quero registrar só uma ou duas coisinhas.
💰
Visto que o pôster de estreia foi esse aí, colado à esquerda, é um tanto vexatório que tão somente nesta última temporada eu tenha atinado para os quadros que ocupam os espaços por onde circulam as personagens. Pior: a queda de minhas fichas sequer ocorreu naquele momento possivelmente mais emblemático, no qual Willa escapa do ensaio do próprio casamento e é perseguida pelos olhares fantasmagóricos nos dois retratos de Andy Warhol. [Reparar, é lógico que reparei; porém o fiz com o pensamento puta merda, eu bem queria um desses no corredor aqui de casa. Encontrei este interessante texto sobre essa passagem: How “Succession” Used Art to Foreshadow Its Most Shocking Twist Yet.]
Na verdade, este sim foi o instante responsável por fisgar meu olhar para o fundo do enquadramento:
Para começar (e encerrar? rs) a conversa, basta meramente observar essa curadoria e compará-la àquele quadro no pôster da série — de Peter Paul Rubens;
Caça ao tigre e leão. Não é insana a discrepância entre os respectivos conteúdos expressivos? Visto que a paisagem às costas de Roman atende demais meus desejos estéticos, não surpreende nada que meu olhar tenha sido hipnotizado por essa curadoria de quadros. Com a ajuda da tiktoker (!)
@meelzonart, identifiquei três deles:
- à esquerda: ? - a tiktoker tem dúvida, mas aposta num Giacometti, porém eu não achei. Cacei ontem um tempão, cogitei um Dürer, porém não tive sorte. Bem, parece ser um estudo a carvão de nu feminino (*sabe de quem é? mande aí)
Os quadros que espreitam Roman nessa cena são, com efeito, "meros" estudos/ desenhos/rascunhos, portanto representam algo que, teoricamente, ainda pode evoluir para uma outra coisa; quer dizer, as possibilidades permanecem abertas, pois aquelas são tentativas. Os materiais — aquarela, carvão, grafite —, por sua vez, conferem leveza e delicadeza, visto que são translúcidos e sem muito peso, carecendo do vigor e sensualidade da tinta (em especial daquela a óleo). E o aparente predomínio de linhas, com formas e volumes pouco definidos, sugere uma aura poética e serena. Quando esbarrei com essa galeria na retaguarda de Roman, imediatamente retornou-me o texto no qual Fayga Ostrower comenta uma ilustração do chinês Chao Yuan, no precioso livro
Universos da Arte (leitura em curso e que tanto me ajudou neste post). Peço licença para tomar emprestadas algumas palavras da autora, a fim de melhor expor o que essa paisagem na qual Roman é inserido me evoca:
"(...) o típico espaço linear, frágil e translúcido (...) numa visão contemplativa da vida. A grave ternura desses desenhos, seu silêncio e sua contenção."
Pois é, será que, no fim das contas, Roman é um introspectivo sensível à poesia e à contemplação, aberto para novas possibilidades que nada tenham a ver com o legado paterno?! (Não ria, a pergunta é séria, poxa.) Deixo a insinuação suspensa no ar. Anoto, contudo, que o momento em que ele não consegue pronunciar-se durante o velório do pai me quebrou por completo, porque as palavras dele, aos prantos — ~ "Meu pai está mesmo dentro daquele caixão? Não podemos tirá-lo de lá? —, refletem exatamente o que me consumiu após o enterro de minha avó. Eu tentava dormir, mas minha cabeça teimava em gritar que minha avó tinha sido trancada dentro de um caixão e enfiada dentro de um buraco; e como assim a deixaríamos ali? Meu corpo se coçava para saltar da cama e tirá-la dali. É por essa (e muitas outras) que Hilda Hilst manjava mesmo dos rolês, tão sábia ao escrever, na obra A Obscena Senhora D:
"(...) um homem, apenas o sexo saudável, um que não amolece diante do sangue, do cheiro, que vê vida e morte tudo natural, naa tuu rall, tudo é muito natural, morrer ó morrer faz parte da vida, mocinha, que bobagem, óóóóóhhh"
— Hilda Hilst, A Obscena Senhora D
Isso aí; Hilda, natural é o caralho! O problema é que o posto deixado por Logan pedia um homem que não
amolecesse do jeito que Roman amoleceu, um homem que
achasse tudo muito natural, e não um homem que corre para mãe
diante do sangue e do cheiro, que tem medo de tubarões e que se angustia, com sentimentos de dúvida e culpa, ao demitir funcionários.
Admito; eu meio que comprei a sugestão de uma enviesada redenção (?) para o Roman. Veja, não digo que ele virou um santo apenas porque chorou com a morte do papai, no entanto, dentre os três irmãos, ele é o que mais avançou no tal processo que chamamos toscamente de ~autoconhecimento~ (ou o que quer que seja isso). O que tento dizer é que os três são tontos incompetentes, contudo:
- A Shiv é a pior, pois é a tonta que 1. não sabe que é tonta e 2. se acha muito esperta. Essa sequer começou a descida;
- O Ken, em seu íntimo, sabe que é um tonto, porém ainda tem esperanças de que pode provar para si e para o pai que é um espertão à altura de liderar uma megacorporação americana. Ele está a meio caminho da descida — na cena final, está decidindo se retoma a subida ou se desce de uma vez;
- O Roman, nesta última temporada, finaliza a descida: abraça a consciência plena de que é um tonto desprovido das habilidades — sobretudo emocionais — necessárias para liderar o império.
Agora, regressarei ao vídeo da tiktoker
@meelzonart, pois, para além do que já discorri, há outro ponto que me faz divergir um pouco da análise compartilhada por ela (*ressalto que, quando ela publicou o vídeo, a quarta temporada ainda seria exibida) [
Link 1 aqui;
Link 2 aqui.]. Eis, em resumo, o que
@meelzonart fala (tradução livre):
"(...) vemos o tema do homem e da paisagem, sobretudo no que refere-se a conquistas. (...) (Gauguin) era um homem colonialista, que explorou e objetificou muitas mulheres quando esteve no Taiti. A premissa de fruta exótica e terra em Renoir trabalha a ideia de conquistar um império. (...) Quero chamar atenção para o quadro de Daumier. Van Gogh o viu e comentou sobre ele numa de suas cartas ao irmão Theo. Ele escreveu: "Deve ser bom pensar e sentir assim, e superar e ignorar uma multidão de coisas." A ideia de ter tanto dinheiro, tanto privilégio a ponto de não ter de se preocupar com nada exceto ser mais rico que o pai. (...) Vistas independentes e em conjunto, essas obras contribuem para a narrativa de que Roman quer ser escolhido como o conquistador supremo."
Achei o olhar dela algo simplista e redutor — mas, como ressaltei, ela ainda não tinha visto a quarta temporada (não sei se a opinião dela mudou). Além disso, tive a sensação de que ela usa a série como premissa de leitura dos quadros (de outro modo, parece forçar uma interpretação dos quadros que se encaixe na trama de Succession); enquanto o movimento de leitura correto, a meu ver, seria primeiro ler as obras por si mesmas, depois partir para a leitura isolada da série, e só então cruzar as respectivas expressões artísticas. No mais, pontuo duas questões:
1. Por causa da forma com que ela cita o comentário de Van Gogh sobre o quadro de Daumier, um tanto fora de contexto, resta a sensação de que Van Gogh estava debochando de um dito privilégio daqueles que podem se dar o luxo de não se preocupar com coisas mundanas. Bem, é quase o oposto disso.
No momento, estou lendo justamente uma coletânea das cartas de Van Gogh e, na hora em que a tiktoker mencionou o comentário, dei um salto, pois foi um trecho significativo que grifei. Na realidade, é um ponto em que Van Gogh compartilha com Théo reflexões acerca da escolha entre pintar figuras humanas ou paisagens. O pintor confessa cada vez mais acreditar que o maior valor estaria em retratar pessoas (como ele de fato fez - trabalhadores humildes do campo, mineiros, tecelões...). É nesse contexto que ele recorre ao sketch em aquarela de Daumier (uma ilustração para Balzac!), fazendo referência mais à mente do próprio Daumier (e não um deboche da imagem), um pintor que o inspirava ao deixar de se ater a pradarias e nuvens, a fim de focar naquilo que realmente importa: sim, pintar um velho "qualquer" a ler sob castanheiras (para quem tem a edição da L&PM: página 90). Quer dizer, Van Gogh, em certa medida, defende que foquemos no que dá o que pensar, e no que diz respeito de uma maneira mais pessoal ao homem enquanto homem (tradução: Pierre Ruprecht).
2. Por outro lado, a tiktoker tem plena razão ao afirmar que o precioso tempo que a privilegiada turma de Succession tem é despendido apenas na perseguição por mais dinheiro. Mas esse é o paradoxo, não? Digo, pensar no que dá o que pensar, como propõe Van Gogh, é bem difícil. Dois livros povoam minha cabeça quando reflito sobre tais questões. Em Jakob Von Gunten, de Robert Walser; há uma passagem na qual Jakob comenta que esse lance de ficar à toa, tal qual o velho na ilustração de Daumier, pode trazer consigo a dor da existência. Jakob defende que ficar sem fazer nada e mesmo assim preservar o sentido da existência exige muita energia de uma pessoa. Para a personagem, quem permanece ocupado com alguma tarefa usufruiria paradoxalmente de uma vida mansa, em comparação. Na sequência, para complementar, lembro que o narrador de Nancy Mitford, no livro The Pursuit of Love — essencialmente uma obra que retrata riquinhos ingleses de 1940's, uma quase autoficção dos Mitford — denuncia que aqueles ricos (extrapolo por minha conta: virtualmente todos os ricos) nunca adquiriram o hábito da concentração, portanto não toleram o tédio. Tempestades e dificuldades? Tranquilo, só jogar e eles matariam no peito. Contudo, dia após dia de uma existência ordinária era, para eles, uma tortura entediante. A narrativa de Mitford aponta para a chave: eles, os ricos, não tinham a disciplina mental (a tal energia referida por Jakob) para tolerar o tédio, para não fazer nada. Posto isto, como esperar que os Roy usem o enorme tempo de que dispõem para sentar sob castanheiras? Para ficar a olhar o mar, não é, Kendall? Se importar com belas vistas de janelões, não é, Lukas? Achar que algo acontece em NY, não é, Lukas?
A maioria dessas narrativas sobre ricos, tão na moda atualmente, são, em larga escala, estudos sobre o tédio. Sylvia Plath, creio, concordaria comigo. Quem sabe a predisposição de Roman seja outra?
💰
Para encerrar, um breve comentário relacionado ao último quadro, aquele que envolve Shiv em seu momento apoteótico (?):
Também com a ajuda da
@meelzonart, descobri que esse quadro foi concebido pela artista Elizabeth Castagna e intitula-se
This. Bom, de novo me oponho à análise de
@meelzonart (
"Shiv ultimately looks out for herself and her child" -
link para o vídeo dela aqui: X), e focarei em minha leitura, a qual sustenta-se numa fortuita casualidade literária.
Meu ponto de partida foi esta ominosa escolha de palavras feita pela secretária ainda dentro do avião, ao lado do corpo do chefe:
Ou seja, o cara morreu, então é hora de
juntar os ossos. Ok. Logo em seguida, retomei a leitura da coletânea
Extração da Pedra da Loucura, de Alejandra Pizarnik e, já no finalzinho, esbarrei com estes versos:
(...) - falo do irremediável,
peço o irremediável -, o corpo desatado e os ossos
espalhados no silêncio da neve traidora. (...)
— Alejandra Pizarnik; Noite compartilhada na lembrança de uma fuga (Tradução: Davis Diniz)
Pronto, agora basta parear o quadro da sala de votação e o quadro na sala em que Shiv revela sua decisão ao irmão, e fica fácil deduzir aonde cheguei:
Não, Shiv não permitiria a patacoada de juntar os ossos de Logan. Dessa maneira, vale reconhecer que dois coelhos se vão com a cajadada única de Shiv:
- o pai estava morto, e ela garante que assim ele permaneceria — aniquila-se a bobajada de que Logan (seu legado) seguiria vivo mediante a sucessão por um de seus filhos;
- em conversa com Roman era apenas uma piada, no entanto Shiv de fato assassina o irmão, espalhando os ossos de Kendall no silêncio da neve traidora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário