18/07/2023

Oh you can get lonely, and animals help with that

Num exercício de impertinência, resolvi publicar este post em resposta não solicitada à newsletter Outra Cozinha, da autora Carla Soares; especificamente à edição intitulada Bestiário (link aqui). Nessa carta de 11/06/2023, Carla escreve sobre os bichos que lhe aparecem na chácara onde mora, registrando as lembranças dessas relações em pequenos trechos de diário. O texto, como habitual da escritora, é uma preciosidade e, após lê-lo, senti comichão para escrever brevemente sobre os bichinhos com os quais cruzo durante os passeios que faço pelo parque do bairro. Naquele que é um de meus posts favoritos deste blog — What do guinea pigs do?! (link aqui) —, compartilhei reflexões relacionadas à observação de animais; portanto esta postagem também dá continuidade àquela conversa. No breve comentário escrito por Wisława Szymborska a respeito do livro Book of Mysteries, de Thomas de Jean, acredito haver uma boa explicação do porquê eu [e Szimborska, e possivelmente Carla, e os autores citados em meu primeiro post e aquelas que citarei a seguir] me perco observando animais. Szymborska diz que Book of Mysteries é um compilado daqueles mistérios que, de tão recorrentes, talvez já tenham virado meras banalidades: manifestações fantasmagóricas, pessoas abduzidas à lua, visitas alienígenas, monstro do lago Ness, ovnis. A poeta polonesa, no entanto, esclarece que seu enfado com o livro não significa que ela seja uma racional cabeça-dura incapaz de conceber a possibilidade de coisas estranhas ocorrendo no mundo; mas exatamente o contrário, uma vez que Szymborska não crê na ideia de uma Terra ordinária. Para a autora, uma árvore crescendo com folhas farfalhantes é enigma suficiente. Quanto a mistérios, portanto, assim ela finaliza o texto (tradução Polonês → Inglês: Clare Cavanagh; Inglês → Português: minha):

"Outros podem requerer temperos mais pungentes, como, por exemplo, o sapo de Liverpool que supostamente rastejou para fora de um bloco de granito quebrado e sobreviveu por várias horas. Um sapo na grama já está bom para mim."


Szymborska tem razão, pois os animais com quem convivo no parque apresentam-me mais mistérios do que jamais serei capaz de desvendar. Contudo, em vez de me apoquentar com isso, deixo que a paz me invada, enquanto me abismo nas charadas que lançam.

🐱

Antes de prosseguir com minhas próprias lembranças, gostaria de anotar dois outros livros que Bestiário me trouxe de volta à memória. Carla começa a newsletter nos contando sobre seis gatos da região que gradativamente começaram a visitá-la e que, aos poucos, foram se aconchegando; destacando-se aqueles que ela nomeia Caju e Cajá (ótimos nomes, por sinal). Nunca convivi com gatos, portanto o pouco que sei a respeito deles provém das muitas horas gastas vendo vídeos, fotos e gifs de gatinhos na internet. Do que aprendi, o que mais me fascina é a doçura com que os donos narram as diferentes personalidades de cada um de seus gatos; relatos sempre repletos de detalhes suficientes para que minha imaginação construa toda uma concreta e palpável subjetividade. A maneira com que Carla descreve as diferenças dos jeitinhos de Caju e Cajá me lembrou um dos textos mais marcantes do livro The Summer Book, de Tove Jansson (autora dos Moomins). Numa pequena ilha escandinava, moram Sophia e sua avó e, tal qual ocorrera com Carla, um gato ainda filhote se aproxima da casa das duas e vai ficando. Sophia morre de amores pelo gato — a quem chama Moppy —, porém, para sua tristeza, o felino não lhe dá a menor bola. O diálogo da criança com a avó é de uma ternura esmagadora (tradução Sueco → Inglês: Thomas Teal; Inglês → Português: minha):

"— É engraçada essa coisa de amor. Quanto mais a gente ama, menos somos amados de volta.
— É verdade. E o que fazer?
— A gente segue amando — diz Sophia com ar ameaçador — A gente ama cada vez mais e mais intensamente." A avó suspira e nada diz. 

Contudo, quando Moppy cresce e começa a caçar pela ilha, frequentemente trazendo presentinhos ensanguentados pra dentro de casa, Sophia fica furiosa e passa a desprezá-lo. A criança não entende por que Moppy mata pássaros - tão agradáveis e bonzinhos -, em vez de ratos - tão repugnantes; chegando a desejar que o gato nunca tivesse nascido. Daí, um barco ancora na ilha e os amigos tripulantes se queixam de que o gato que adotaram para caçar ratos simplesmente não caça nada. Ou seja, faz-se a oportuna troca e finalmente Sophia tem para si um gatinho meloso, que sempre dorme e ronrona satisfeito no colo. Fim da história? Na verdade não, pois a menina rapidamente se enfastia diante da personalidade morosa do novo gato. O diálogo final com a avó é outro primor:

"— Eu quero Moppy de volta!
— Mas você sabe como será.
— Vai ser horrível - diz Sophia com ar austero -, mas é Moppy que amo."

🐱

Um livro que, a meu ver, alinha-se bastante à proposta do texto de Carla (e à desta postagem, espero) é o Pilgrim at Tinker Creek. Nessa obra, Annie Dillard quase aparenta falar da suposta floresta encantada referida inicialmente no texto de Carla, mas a realidade é que Dillard mal dá um passo para além de sua residência urbana, tão somente relatando de forma impressionante — olhar super atento, uma escrita elaborada e poética — os encontros que estabelece com os bichos de um pequeno córrego em Virgínia, nos Estados Unidos. Quer dizer, de fato a premissa de Szymborska procede, pois basta olhar pro lado com um pouquinho de atenção, para perceber que a chácara de Carla no interior do Brasil (MG?), o córrego americano de Dillard e meu pequeno parque em Brasília oferecem mistérios suficientes para transformá-los, sim, em verdadeiras florestas encantadas. Conforme diz Dillard, estamos cercados por um espetáculo atrás do outro, no entanto é somente um show por cliente e, se piscar, perdeu. (Inclusive, Dillard é parcialmente culpada por eu ter comprado uma câmera fotográfica.) As histórias que Carla conta sobre os insetos que cruzam seu caminho foram o que provavelmente me catapultou de volta ao texto de Dillard, pois Pilgrim at Tinker Creek é repleto de histórias acerca desses animais; algumas bem assustadoras — aqui, falo no sentido  "puta merda, a existência pode ser uma coisa muito, muito maluca". Para ilustrar este post, escolho o singelo causo das aranhas, pois a reflexão compartilhada por Dillard — simples, mas tão provocadora — mexeu bastante comigo (tradução minha):

 "Deixo as aranhas correrem livres pela casa. Calculo que um predador que espera sobreviver de quaisquer pequenas criaturas que possa encontrar num espaço de 0,1 m², no canto do banheiro onde a banheira alcança o piso, precisa de meu apoio."

Em retrospecto, suponho que eu não deveria ter jogado pela janela a pequena lagartixa que apareceu no banheiro de casa dia desses. Pensando bem, o texto de Dillard não mexeu tanto comigo? Em minha defesa, ~teoricamente~ não a matei, logo...


🐱

Certo, agora relatarei meus breves encontros. Incluirei uma foto e/ou vídeo para todos os animais mencionados — para provar, pois, do contrário, suspeitarão que falo de um zoológico, e não de um minúsculo parque de BSB —, contudo são todas realmente de péssima qualidade, visto que foram feitas com um celular pebinha que carrego na rua, tendo sempre de ser ligeira o suficiente para tirá-lo da pochete e capturar as cenas. Além disso, os animais do parque se comportam como o Moppy: são todos da mesma cor do espaço que habitam.  Ao observá-los, espero que também eu adquira as cores do parque. 

🐾 CARCARÁ
Soará estapafúrdio, mas confesso que comecei a me interessar por carcarás depois que esbarrei na aparição desse pássaro no livro Os Miseráveis, de Victor Hugo. Eu sei, não faz nenhum sentido a ave ser citada nessa obra, porém garanto que ela aparece, e minha antiga anotação de leitura está na mão para atestar:
"O Brasil aparece no livro! Quero dizer, mais ou menos: Victor Hugo cita um grupo de saltimbancos que possuíam "(...) um desses temíveis abutres do Brasil que o nosso Museu Real não conseguiu adquirir senão depois de 1845 (...) os naturalistas chamam-no, creio eu, de Caracara polyborus (..)" 
Assim, foi pela superação dessa improbabilidade que Victor Hugo me ajudou a voltar os olhos para esse magnífico animal. O encontro registrado por minha foto foi especial, porque, além de ser um casal (nunca antes o tinha visto em dupla), os dois pareciam me acompanhar — eu sei, eu sei, estou bancando a maluca que se julga a encantadora de carcarás, mas o que posso fazer, se eles me seguiram?! Supus que me acompanharam porque, embora eu me distanciasse dos dois, eu me aproximasse de um possível ninho, entretanto no dia seguinte não localizei nada, logo ficarei com a satisfatória versão Daniela, a encantadora de carcarás.
🐾 MACACO SAGUI
Tem sim um sagui nessa foto, e a quem encontrar, Deus proverá. Veja bem, esses bichinhos são muito desconfiados e lépidos, então é difícil fotografá-los. Na primeira vez que o vi, fiquei apreensiva, pois, burra que sou, achei que só havia sagui na Mata Atlântica. Em outras palavras, não sabia como ele sobreviveria num minúsculo parque seco de Brasília. Fiquei mesmo me perguntando se deveria carregar uma banana para alimentar o pobre macaquinho. Pois enquanto persistia na ignorância  [*há espécies habitantes do cerrado brasileiro*], me vi certo dia chorando enquanto caminhava (quem não chora em parque não sabe o que está perdendo), quando dois saguis atravessaram do nada meu percurso, logo à frente. Eu sei, eu sei; agora engato a versão Daniela, a encantadora de saguis, porém, naquela ocasião, tive a certeza de que eles cruzaram de supetão meu caminho para me dizer: Daniela, eu estou bem, tenho até um amiguinho, está vendo? Então, se eu consigo me virar nesse parque seco, você também consegue. Deixa de choro, e boa sorte. Se panz, eles agora aparecem para checar se parei de chorar — e pra ver se eu não trouxe uma bananinha.
 
🐾 CORUJA BURAQUEIRA
 
Essas corujinhas são a coisa mais linda, e as vejo com bastante frequência. Meu encontro favorito com uma delas ocorreu à noite. Eu a avistei pousada numa árvore baixa e, encantada por vê-la tão perto, não me contentei e fui me aproximando. No entanto, quanto mais eu me aproximava, mais a danada girava o pescoço, virando a cara pro outro lado. De imediato, saquei a mensagem e dei meus passos para trás, ao que ela rapidamente voltou-se pra mim, então permitindo que a observasse em toda sua majestade. É sempre uma lembrança pertinente: o show (palavra adotada por Dillard) é nos termos deles, e não nos nossos.

🐾 MARITACA

Mais as escuto do que as vejo — pense num pássaro barulhento —, porém vê-las é sempre um deleite que me deixa muito feliz. Gosto do fato de que estão sempre em dupla [este post está me fazendo perceber que a mensagem que recebo é o número 2, hein], e pude identificar que, quando se alimentam, uma delas fica de tocaia, enquanto a outra vira de ponta-cabeça para beliscar uma frutinha ou, conforme ilustrado por minha foto, invadir um vespeiro (acho? rs). Tive a sorte de ver isso duas vezes e mal pude acreditar na audácia da ave. É lógico que o ninho estava ocupado, pois havia inúmeros insetos voando ao redor. (~comidinha~)


🐾  QUERO-QUERO
Esses eu apelidei de Drama Queens, pois é um tremendo bicho estressado. Se eu ficar mais de três segundos olhando pra eles, param qualquer coisa que estejam fazendo (coitados, só fazem uma coisa: procurar comida), me encaram de soslaio, começam a berrar escandalosamente e se afastam o quanto antes. Justamente por isso costumam me abrir um sorriso e, de minha parte, tento não estressá-los. Simpáticos, gosto um bocado deles. E olha só, outra cena de duplinha. Juro que só percebi agora. Na hora de apostar, é dois na cabeça. Haveria alguma outra mensagem nisso?


🐾 CANÁRIO

Puxa vida, esses passarinhos são incrivelmente fofos. Não andam em duplas, mas costumeiramente em largos bandos, e identifiquei que a hora mais propícia de vê-los, desse jeito no chão, se alimentando e revoando todos juntos quando passamos (tão bonito), é em torno das 15:30h-16h — ah!, creio que é a hora em que os cupins alados voam, né? O intenso laranja no topo da cabeça, em contraste com o amarelo vibrante, me mata demais.

🐾 LIBÉLULA
O parque é empestado de libélulas. Nunca liguei para esse inseto, porém Dillard me fez virar os olhos para ele, pois é outro que sofre nesta vida maledetta, enganado por superfícies brilhosas que fazem as vezes de espelho d'água (é tudo ilusão nesta merda, amiguinhos). Primeiro, me deparei com essa libélula pousada no galho; depois, tive a sorte de ver o instante exato em que uma delas dava as voltas no preciso galho, para nele pousar graciosamente. Desde então, chamo esse galho especial de Aeroporto das Libélulas.

🐾 TUCANOS

Fui agraciada uma única vez por essa formidável imagem (momento em que atinei o quanto aquele parque é especial), porém foi suficiente para me deixar maravilhada. Era fim de tarde, e o belo tucano parecia estar encantado pela beleza do sol se pondo no céu de Brasília, perdido em seus próprios pensamentos, tão sereno e contemplativo.

🐾 CAPIVARA

O que eu poderia dizer sobre capivaras que já não se tenha dito? Quando cruzo com elas, sou lembrada de que estresse nenhum nessa vida vale a pena. É bater os olhos, e pensar: taí uma figura que sabe viver. Nessa foto, certa está a danadinha que sequer levanta a bunda do chão para comer — novamente, Deus proverá, a quem localizar a esperta a quem me refiro.

🐱

Pronto, esses são alguns de meus colegas de passeio. Fiquei triste por não ter nenhuma foto de um joão-de-barro, os quais estão por toda parte do parque (e suas casinhas bem erguidas e arquitetadas). Poxa, só porque são tantos, são menos especiais? Eu sou mesmo idiota. Faltaram também os pica-paus (estonteantes, mas algo difíceis de ver e captar), e aguardo ansiosa a chegada dos tesourinhas. É, suspeito que esta história não acaba aqui, sobretudo porque, conforme disse Sophia, a gente persiste amando mais e mais.

Por fim, não posso encerrar sem agradecer à Carla Soares pela inspiração para este post e por me mostrar que esse tipo de registro merece ser feito. Novamente, segue o link para a newsletter Outra Cozinha: clique aqui.

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