20/08/2023

日本海

A Grande Onda de Kanagawa - Hokusai

Em Fragmentos de um Discurso Amoroso, Roland Barthes escreve que a pessoa apaixonada recebe tudo que é novo e incômodo não como fato, mas como signo que é preciso interpretar. Certo; então assumo que mais uma vez bancarei a tola apaixonada, pois afirmarei que o Mar do Japão está me chamando. Quer dizer, ao menos é assim que interpreto as recorrências marítimas japonesas em meu percurso. Nesta postagem, porém, evitarei o modo apaixonada hard, pois não acrescentarei outras interpretações, não elaborarei significados. Por enquanto, me sinto compelida a somente anotar o convite que recebo, numa espécie de preparação para um encontro que, se a vida permitir, ocorrerá — em outras palavras, as quais Barthes talvez acrescentasse: tentarei me permitir o gozo.

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A primeira vez que pensei conscientemente acerca do mar japonês foi durante a final de surf das Olimpíadas de 2020, a qual ocorrera na praia Tsurigasaki, em Ichinomiya, prefeitura de Chiba (costa leste do Japão, oceano pacífico). Não, é lógico que não entendo bulhufas de surf, mas eu estava de bobeira e havia um brasileiro no páreo, Ítalo Ferreira, daí acabei assistindo. Antes de devanear qualquer coisa, recapitulemos a transmissão da disputa:

Conforme adiantei, não manjo nada de surf, porém foi fácil perceber que aquele mar não estava pra surfista. Era um mar muito, muito mexido, agitado, irritadiço, meio amarronzado, com ondas inconsistentes e mal formadas. Posso estar errada, contudo os comentários do vídeo sustentam minha leitura. Some-se a isso aquele tempo nublado e a areia acinzentada e pronto: fiquei hipnotizada. A primeira impressão, admito, foi a de uma feiura repulsiva, no entanto a imagem rapidamente girou 180 graus diante de meus olhos, e me peguei tomada por uma beleza paralisante. Senti medo daquele mar, porém um medo tão intenso quanto a vontade de nele mergulhar para nunca mais voltar. [*Cabe confessar que me lembrou demais o mar enfezado e feioso de Fortaleza — onde cresci —, o que talvez tenha contribuído para minha forte reação.] Como sou lerda, demorei a atinar que aquele mar, na companhia daquele céu e daquela areia, era a imagem da sombra à qual louva Junichiro Tanizaki. As peculiares cores nos enquadramentos dessa final de surf refletem aquelas dos aposentos japoneses, do tokonoma, da laca, da comida, do chá, do tom da pele/olhos/cabelos daquele povo. 

A propósito, meses depois acabei assistindo a um filme japonês lindo que inclui a temática do surf, chamado O mar mais silencioso daquele verão - Ano natsu, ichiban shizukana umi (1991), de Takeshi Kitano. O "silencioso" do título alude em especial ao protagonista, um rapaz surdo-mudo, mas curiosamente acho que o adjetivo descreve bem o mar que vi no filme, um mar em tudo antagônico àquele de Ichinomiya (infelizmente não lembro nem encontrei o local exato da filmagem). O mar apresentado pela obra de Kitano é super calminho, oferecendo ao aprendiz de surfista apenas umas marolinhas desengonçadas e sem ânimo. A julgar pelo desfecho da obra, no entanto, cheguei à conclusão de que jamais podemos subestimar o mar, nem mesmo um mar silencioso daquele. [E desejo explicitar: essa reflexão também vale para o protagonista — e para qualquer ser humano, não?].
O mar mais silencioso daquele verão (1991)
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Avalio que a experiência durante as Olimpíadas de 2020 me ajudou a melhor entender o trecho próximo ao final de O Pavilhão Dourado, de Yukio Mishima, no qual Mizoguchi anseia desesperadamente rever o mar; momento em que o protagonista se encontra num turbilhão de emoções, desnorteado quanto ao que pensar e fazer. Mizoguchi viaja em busca do mar da infância e fica frustrado quando se depara com a intervenção americana no espaço que lhe era tão familiar, o que toma por uma vil e inútil tentativa estrangeira de domar o mar japonês. A personagem decide prosseguir a busca mais adiante, até que finalmente se encontra com o que julga ser o verdadeiro Mar do Japão: "(...) o mar encapelado, sempre irritadiço, o mar raivoso da costa interna do Japão. (...) um mar (...) imperioso e dominador. (...) Sim, esse era o Mar do Japão! A fonte de toda a minha infelicidade e de todos os meus pensamentos sombrios. A fonte de toda a minha feiura, (...) As águas estavam agitadas." (Tradução: Shintaro Hayashi) Ou seja, o mar e personagem enquanto imagens especulares, profunda conexão. E no aperto, a ele se recorre. Embora essa descrição concebida pela personagem se adeque perfeitamente àquelas cenas das olimpíadas, o mar sobre o qual escreveu Mishima corresponde, na verdade, àquele da costa oeste japonesa, na baía de Maizuro, perto de Quioto.

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É curioso que Mishima e Kitano tenham usado o mar japonês como reflexo da paisagem interna de suas protagonistas, sobretudo quando as respectivas imagens assumem extrema oposição. No entanto, a leitura cuidadosa dessas obras facilmente apreende que tanto o delicado silêncio quanto a raiva agitada integram esse mesmo mar (e personagens). Um livro que, a meu ver, destaca muito bem essa ambiguidade é  Naufrágios, de Akira Yoshimura. 

No primeiro volume dos Diários de E. Renzi, Piglia registra que, se ele lembra das circunstâncias em que estava com um livro, é prova de que a obra foi decisiva. Transcrevi essa precisa assertiva porque me recordo vivamente do início da leitura de Naufrágios. Eu estava deitada sonolenta na cama, pronta para dormir, todas as luzes apagadas exceto pela luz débil do abajur, e mal pude acreditar no belo quadro que as palavras de Akira Yoshimura (via tradução de Sylvio Deutsch) começaram a pintar em minha frente: costa rochosa contra a qual as ondas do mar quebram com força, faixa de areia estreita, tempo chuvoso, cortejo fúnebre, Japão. Embora eu seja avessa a superlativos, sou forçada a garantir que esse é um dos livros com as mais belas descrições que já li. (Obrigada, tradutor.) A história se passa durante o período medieval japonês, retratando a vida dos habitantes de um vilarejo praiano, que lutavam contra a fome. As minúcias da rotina daquelas pessoas, primorosamente narradas por Yoshimura, demonstram bem a personalidade dúbia do mar, a ambiguidade com que esse enorme volume d'água trata aqueles que decidem viver próximo a ele. A onda que afaga e traz oferendas (ainda que por vias tortas - O-fune-sama), é a mesma que noutra hora é fonte de privação e calamidades. As descrições sobre os perrengues da pesca, atividade ardilosa, foram pra mim um grande destaque, sobretudo a pesca de saurys. 

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Richard Parry, num dos breves artigos inclusos no livro The Passenger - Japão, me fez lembrar o último momento de máxima raiva e violência expressos por esse mar que ora me intriga: o Tsunami de 11 de março de 2011. Segundo o autor, após a incomensurável tragédia seguiu-se uma série de aparições de fantasmas das pessoas que se afogaram no tsunami, inclusive casos de possessão. O país foi tomado por um "enxame de fantasmas". Aqui, vale lembrar o valor à ancestralidade presente na cultura japonesa e a relação distinta que eles têm com a morte, a qual lhes representa quase uma variante e não uma negação da vida. Retornando ao livro de Yoshimura, há uma passagem onde se diz que, com a morte, o espírito parte para um lugar distante nos mares, retornando à vida da aldeia após um tempo. Ou seja, na vila de Naufrágios, a morte é apenas um período de sono profundo, portanto as lápides dos túmulos são posicionadas de frente para o mar, a fim de guiar os espíritos no momento de despertar e retornar. Para além disso, esta fala de Ayane, moça cujo pai falecera vítima do tsunami, também expõe outro lado relevante acerca do fenômeno: "Quando pessoas veem fantasmas, estão contando uma história, uma história que foi interrompida. Elas sonham com fantasmas porque então a história continua ou chega a um desfecho. Se isso lhes traz conforto, é uma coisa boa." (tradução: Érika Vieira) Chamou-me particular atenção a fala do sacerdote budista Kaneta, segundo a qual as histórias fantasmagóricas posteriores à tragédia sempre têm uma conexão com a água. Por exemplo, Parry comenta que, numa comunidade de refugiados de Onagawa, uma antiga vizinha falecida sempre aparecia na sala de estar das casas, a almofada em que se sentava ficando ensopada de água do mar. 

Dado aquele trecho de O Pavilhão Dourado, fiquei pensando sobre o que Mishima acharia das muralhas de contenção de tsunami que o Japão construiu ao longo do litoral. De minha parte, não consigo evitar a pergunta: é possível conter esse mar?

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Para encerrar, incluo a leitura de The Waiting Years (女坂 - tradução: John Bester), livro que me fez ter certeza de que o mar do Japão me convoca à sua presença. Dando asas à imaginação, confabulei que possivelmente a escritora Fumiko Enchi leu As Irmãs Makioka, do Tanizaki, e teria refletido consigo mesma qualquer coisa do tipo: legal esse livro, gostei tanto que escreverei a minha versão, uma que aborde outro tipo de sororidade e de realidade vividas pelas mulheres japonesas. Para dar uma melhor ideia do que quero dizer, descreverei brevemente o pontapé inicial da narrativa: final do período Meiji (colo na minha memória e estimativas), homem de 39 anos manda a esposa para Tóquio, acompanhada da filha do casal, encarregada de comprar e trazer pra casa uma amante de quinze anos. A patifaria não encerra aí, é ler para crer. O livro é espetacular — em especial a surpreendente serenidade e delicadeza da narrativa, em contrapartida à vida fatídica das mulheres da história — e não teria espaço neste específico post, não fosse o surpreendente recado final que a esposa, então convalescente, manda para o marido: "Diga a ele que despeje meu corpo no mar. Despeje-o..." [*Vale recordar que, em Naufrágios, é dito que a vila só lançava ao mar os corpos de suicidas.] Segundo o narrador de Enchi, esse recado golpeou o marido com a força plena das emoções que a esposa esforçou-se em reprimir durante os últimos quarenta anos, choque suficiente para dividir o ego do homem em dois. 

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Afinal, que mar é esse, Japão? Quando ele quebra na praia, também é bonito feito o nosso? Parece que sim, ainda que de uma maneira particular. E quando quer ser feio, aparentemente ele não mede esforços para atingir a máxima feiura, não é? Mar silencioso e delicado, tão generoso, no entanto arredio, raivoso e sombrio; infelizmente propenso a momentos de fúria avassaladora. Vida e Morte. É isso, Japão? Sinto-me tocada a ponto de dividir com vocês uma música favorita, um lugar bem juntinho ao mar. Adoraria receber, em troca, uma música japonesa que cante o mar daí. Aguardarei o encontro. 
**ATUALIZAÇÃO EM 21/09/2023: PQP!; acabo de descobrir que a banda japonesa Kikagaku Moyo fez uma excelente versão (2022) para essa música do Erasmo! AAAAAHHHHAAAAAHH!!! E eles mantiveram o título em português! AAAAHHH! Meu deus do céu, estou sem palavras (talvez chorando um pouquinho). E não é que o encontro, então, ocorreu?! Puxa, não conhecia a banda, mas salvei para explorar sua discografia. Então, para a linda versão japonesa de Meu Mar, é só apertar o play: [*crédito da informação: Barcinski]

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